Luta Indígena
Marçal de Souza: líder indígena Guarani assassinado por defender diretos dos povos originários
Por Janelson Ferreira
Da Página do MST*
A violência foi um elemento estrutural da colonização européia na América Latina e faz parte da constituição do Brasil enquanto país. Esta violência se impôs com mais força, desde a chegada do primeiro europeu branco ao “novo mundo”, principalmente aos povos indígenas que aqui já habitavam. Se esta dominação se apresentou de forma severa, a resistência indígena também demarcou a história latinoamericana. No Brasil, uma das figuras de maior destaque nesta resistência foi Marçal de Souza, liderança indígena Guarani Ñandeva, covardemente assassinado, em 1983, por um latifundiário que não admitia a mobilização de um povo na reivindicação de seus direitos inerentes.
Tupã-Y nasceu em Rincão de Júlio, região de Ponta Porã, na fronteira do então estado de Mato Grosso com o Paraguai, na véspera do Natal de 1920. Aos três anos de idade, sua família muda-se para a aldeia Tey’kuê no município de Caarapó, Mato Grosso do Sul. Em 1926, ao ser picado por uma cobra, teve que ser transferido para Dourados, junto com toda a família, para tratamento junto à Missão Evangélica Caiuá. Um ano depois, torna-se órfão e passa a morar no orfanato da Missão. Com 12 anos foi adotado por uma família presbiteriana e mudou-se para Campo Grande. Apesar da oportunidade de avançar em seus estudos, durante este período passou a trabalhar como empregado doméstico da família que o adotara. Entre 1938 e 1940 viveu em Recife, PE, devido à transferência de seu pai adotivo, que era militar.
O início da luta de Tupã-Y
Em 1940, retorna para Dourados e começa uma peregrinação pelas aldeias da região, demonstrando-se um exímio pregador do evangelho cristão. Esta experiência deu condições de se aprofundar nos dilemas e miséria que vivia o povo guarani. Devido ao destaque obtido com suas pregações, é enviado pela Missão Caiuá para aprofundar seus estudos religiosos em Minas Gerais.
Na década de 1950, o contato que obteve com antropólogos, entre eles Darcy Ribeiro, contribui para uma mudança em sua trajetória de vida. “Em contato com esse grande amigo meu, Dr. Darcy Ribeiro, apesar de não ter quase preparo – mas Tupã, que abre as mentes, abriu a minha mente – reportou-me ao meu passado muito distante”, afirmou Marçal no Seminário sul-mato-grossense de Estudos indigenistas, realizado em 1980.
Em seu relato, o indígena afirma que o contato com Darcy Ribeiro o ajudou a descobrir a riqueza que era a cultura, a crença, a vida e a organização dos guaranis. “Desde então, propus em minha vida viver toda a vida, viver entre meus irmãos, para pelo menos sentir seu sofrimento, a sua vida, o seu viver. Então revendo todos, a glória de meu povo já perdida no século, propus, em meu coração, batalhar pelo menos pela restauração da nossa cultura, da nossa crença, da nossa organização social, que só nós entendemos”, explicou.
Marçal tornou-se auxiliar de enfermagem em 1959 e passou a trabalhar no Hospital Porta da Esperança, na aldeia Jaguapiru, em Dourados. Em 1963 é eleito Capitão da Reserva Indígena da cidade. Como Capitão, passa a incentivar o retorno dos indígenas “não aldeados” para a Reserva, além de estimular a feitura de lavouras e a retomada de práticas religiosas tradicionais.
Em meados de 64, a Reserva foi visitada por uma comissão do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que anunciou a construção de uma serraria para os índios trabalharem. Marçal questionou as boas intenções do órgão, mas, mesmo assim, a serraria foi implantada. Em seis meses, apenas duas casas foram construídas na aldeia. Em contrapartida, uma média de cinco caminhões saíam por dia, levando aroeiras e perobas da comunidade.
A postura adotada por Tupã-Y não agradou nem aos funcionários do SPI, mais interessados em vender as madeiras da Reserva Indígena, nem a Missão Evangélica Caiuá, que não via com bons olhos a realização de festas, cantos e danças da religiosidade tradicional dos Guarani. Desse modo, é afastado do cargo em 1972.
Os ataques à liderança Guarani
Já em 1974, por conta de sua atuação em defesa dos Guaranis, Tupã-Y foi agredido e ameaçado por Capitão Ramão enquanto trabalhava no ambulatório do Posto Indígena de Dourados. Com o aumento das ameaças, a liderança indígena teve que se mudar para Campo Grande e, em seguida, foi para Caarapó, na aldeia Tey’i Kuê.
Em Tey’i Kuê, Marçal mantém sua postura de denunciar todo tipo de violência ao povo Guarani. Laerte Tetila, historiador que pesquisou a vida de Marçal de Souza, descreve este momento da vida do indígena. “Em Tey Kuê, onde morava, novamente Marçal se depara com atos de corrupção praticados por agentes da FUNAI [Fundação Nacional do Índio]. Nessa área indígena, denuncia a venda indevida de madeira, de erva-mate e de gado, e, mais grave ainda, a venda temporária de meninas índias, em idade entre 12 e 15, para serem exploradas sexualmente”, explica. Por conta das denúncias, em 1980 ele tem que deixar a aldeia e ir para o município de Antônio João, MS, viver na aldeia Campestre.
Durante a Assembléia de Chefes Indígenas, realizada em 1977, nas Ruínas de São Miguel no Estado do Rio Grande do Sul, Marçal lança um discurso convocando os povos indígenas à união. “De esperar, nós estamos cansados. Todos aqui temos essa experiência. Nossas reservas estão devastadas, sem madeira, quem tirou? Foi o índio para fazer suas casas? Não, foi o próprio branco. Não podemos ficar mais de braços cruzados. Esta talvez seja a última oportunidade para nós erguer a nossa tribo, erguer a voz das nossas tribos”, afirmou.
No mesmo ano, em entrevista ao jornal Diário de Notícias de Porto Alegre, o Guarani disse que o seu povo não tinha mais pátria, vivendo ao léu da sorte. “O índio vive a vida amedrontado, as aldeias continuam uma miséria, não tem remédio. O índio está cercado, amordaçado por uma burocracia que não funciona. Por isso nós vamos a campo”, destacou.
A luta de Tupã-Y ganha repercussão internacional
A partir da década de 1980, Marçal de Souza começa a participar de encontros e assembleias nacionais e internacionais indígenas, que culminaram na criação da União das Nações Indígenas (UNI). Ainda em 1980, o então Papa João Paulo II realizou uma série de visitas à cidades brasileiras. Marçal de Souza, devido ao destaque que suas denúncias tinham ganhado, foi escolhido para falar ao Papa em nome dos povos indígenas.
Em uma assembleia de preparação para o encontro com o sumo pontífice, as lideranças indígenas se recusaram a dançar para ele, alegando que não havia motivo para dançar, mas para “chorar os nossos mortos”. “Nós temos que teimar, meus irmãos, teimar e bater e bater e lutar e lutar para poder sobreviver neste país tão imenso e tão grande que foi nosso e que foi todo roubado de nós”, disse Marçal nesta assembleia.
A fala de Tupã-Y ao Papa, feita de improviso, representou um dos marcos da luta indígena na história. “Este é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto, o Brasil não foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Esta é a verdadeira história”, disse à João Paulo II. Além do discurso, o representante dos indígenas entregou ao pontífice uma carta com os nomes de políticos e autoridades consideradas inimigos dos índios no Brasil. A amplitude gerada pelas acusações e denúncias do Guarani fez com que as ameaças e perseguições a ele aumentassem significativamente.
O assassinato da liderança Guarani já era alertada pelo próprio. Em carta endereçada à Antônio Brand, antropólogo, historiador e indigenista, em janeiro de 1983, Marçal denunciava a violência cometida contra ele. “Na aldeia um policial a paisano me espancou sem que eu tenha dado motivo para isso. Chegou a dar vários socos na altura dos rins. Estou sentindo muita dor no local. Talvez tenha provocado até lesão interna. Há várias noites não posso nem virar e deitar de tanta dor”, declarou. Além disso, a ditadura militar considerava a conduta dele como “subversiva” e as elites agrárias do país e a FUNAI estavam bastante incomodadas com sua postura.
Vivendo na aldeia Campestre a partir de 1980, Tupã-Y passou a lutar pela demarcação das terras do Pirakuá, onde vivia um grupo de 30 famílias Guarani e Kaiowá, no município de Bela Vista, MS, fronteira com o Paraguai. Esse grupo de indígenas estava em conflito com o fazendeiro vizinho, Astúrio Monteiro de Lima, que pretendia expulsá-los dali com o intuito de desmatar e utilizar as terras, declaradas como suas, para ampliar sua área produtiva. No começo de 1983, Marçal foi procurado por pessoas que lhe ofereceram dez milhões de cruzeiros para que retirasse os índios da aldeia de Pirakuá. Marçal recusou a proposta.
Tupã-Y tombou na luta
Como que pressentindo a proximidade da morte, durante um debate no Rio de Janeiro, em setembro de 1983, junto com Darcy Ribeiro e Dom Tomás Balduíno, Marçal afirmou: “Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas por uma causa justa a gente morre. Alguém tem que perder a vida por uma causa”!
Menos de um mês depois desta fala, em 25 de novembro, dois homens foram até a casa de Tupã-Y pedir remédio contra malária. No entanto, o objetivo deles era outro: Tupã-Y foi assassinado em sua própria casa, na aldeia Campestre. Conforme apontou sua filha, Édina de Souza, foram “cinco tiros, um primeiro na boca, e quando ele já estava caído no chão, deram mais dois tiros, um em cada rim”.
A morte do Guarani teve repercussão internacional. Diversas figuras públicas, entidades e organizações exigiram a apuração rigorosa dos fatos e condenação dos culpados. Álvaro Tukano, liderança indígena nacional, afirmou: “vamos fazer de Marçal o herói de nossa luta, porque todos os líderes que os fazendeiros que matam nunca serão esquecidos”. Darcy Ribeiro enviou, na época, um telegrama ao governador do Mato Grosso do Sul, Wilson Barbosa Martins dizendo que “o sangue do líder indígena, que foi o mais alto intelectual do Mato Grosso, emporcalhará sua memória se seus assassinos não forem descobertos e entregues à justiça”.
Na direção contrária o governo do Estado tentava minimizar o crime. O chefe da casa civil da época, Plínio Soares da Rocha, divulgou nota apontando a primeira mulher de Marçal como mandante do crime, para caracterizá-lo como sendo passional e não político. A mídia na época reforçou a versão, retratando o assassinato como uma ”briga entre índios”.
Os dois acusados de serem os mandantes do crime, Líbero Monteiro, filho de Astúrio Monteiro de Lima, e Romulo Gamarra, foram a julgamento somente dez anos depois. Apesar das inúmeras provas contra eles, foram absolvidos. Em 2008 o crime prescreveu e ninguém foi responsabilizado pela morte de Tupã-Y. Postumamente, Marçal de Souza foi condecorado como Herói Nacional do Brasil.
Luta indígena segue legado deixado por Tupã-Y
Após 39 anos do assassinato de Marçal de Souza, os povos indígenas seguem em resistência no Brasil. Segundo o relatório “Violências contra os povos indígenas no Brasil”, elaborado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), “o segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da Covid-19. E pela omissão do governo federal em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas”.
De acordo com a pesquisa, em 2020, foram registrados 263 casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio que atingiram, pelo menos, 201 terras, de 145 povos, em 19 estados”. Em 2019, foram contabilizadas 256 ocorrências e, em 2018, 111 – o que demonstra um aumento de 137% em dois anos. Em 2020, 182 indígenas foram mortos no país; em 2019, foram registrados 113 assassinatos. Isto representa um aumento de 63%. Só no Mato Grosso do Sul foram 34 indígenas assassinados.
De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de 43 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19 e, pelo menos, 900 morreram por complicações da doença em 2020. Esses números refletem, segundo a Apib, “a falta de assistência do poder público a esses povos, especialmente na área de saúde”.
Com este grave cenário, a luta dos povos indígenas segue sendo necessária. Apesar dos ataques do Governo Bolsonaro e do latifúndio, indígenas de todo país mantém firmes suas retomadas de terra, além de, cada vez mais, ocuparem Brasília para pressionar os três poderes a defenderem os direitos indígenas. O crescimento da luta indígena demonstra que o legado de Tupã-Y e de todos os indígenas que foram assassinados defendendo suas terras segue vivo e alimentando as novas gerações para seguirem na defesa de seus territórios.
*Texto originalmente publicado em 2021
**Editado por Solange Engelmann