Internacionalismo
Haiti. Quais perguntas?
Por Mireille Fanon-Mendés-France e Boubacar Boris Diop
Da Página do MST
Com o silêncio cúmplice da grande mídia, a chamada comunidade internacional discute a possibilidade de enviar militares ao Haiti como forma de “ajuda humanitária”. Algumas questões sobre essa proposta internacional e seus possíveis efeitos.
Por muitos anos, o Haiti tem passado por uma grande instabilidade, como resultado de uma crise política à qual se somam também crises humanitárias, sociais, econômicas e de segurança. Ao ponto do atual primeiro-ministro, Ariel Henry (nomeado dois dias antes do assassinato do então presidente Jovenel Moïse), lançar em setembro do ano passado um apelo à comunidade internacional para a criação de uma força armada internacional para garantir o desbloqueio do Terminal de Combustíveis de Varreux, bloqueado por gangues após a decisão do governo de aumentar substancialmente o preço dos combustíveis.
A pedido do FMI, desde 2018, várias tentativas de reduzir os subsídios estatais aos produtos petrolíferos paralisaram o país e colocaram o povo haitiano nas ruas. Para conter esta pressão popular, o atual primeiro-ministro decidiu, em julho de 2022, responder às exigências do FMI no sentido de obter um empréstimo em troca da realização de mais reformas econômicas.
A pobreza extrema atinge grande parte da população, a cólera reapareceu, os sistemas de saúde e educação são totalmente deficientes e as empresas de produção praticamente não existem. Mas o pragmático e cínico FMI conta com o fluxo contínuo de remessas de dinheiro da diáspora para pagar os empréstimos. Não importa se a aplicação de políticas de ajuste estrutural já tenha mostrado sua ineficácia em muitos países do Sul.
O país vai continuar afundando, sua soberania vai se erodindo ainda mais, as políticas públicas serão ainda mais reduzidas, e o Estado e seus patronos não terão problemas em continuar infantilizando o povo haitiano. Os únicos ganhadores serão as ONGs, algumas das quais se beneficiam de fundos dos contribuintes, ao ponto do jornal Le Monde, em artigo datado de 9 de janeiro de 2020, intitular “Como o Haiti se tornou a República das ONGs”. Num contexto de pobreza, insegurança e desumanização imposta por atores externos, aumentou o número e o poder das quadrilhas criminosas no cenário social e político e sua violência parece não ter limites.
Se a comunidade internacional realmente quiser ajudar o Haiti de outra forma que não seja com declarações compassivas, deve trabalhar pelo cancelamento total e imediato da dívida pública externa do país e pelo abandono definitivo das políticas econômicas liberais. E também exigir o reembolso imediato da divida ilegal paga pelo Haiti à França, assim como a devolução dos 500 mil dólares (em valores da época) que constituíam as reservas de ouro do Banco Nacional da República que foram roubadas pelos Estados Unidos em dezembro de 1914, depois de dez anos de ocupação ilegal do imperialismo.
Se esta mesma comunidade internacional realmente defendesse um dos princípios fundadores da Carta das Nações Unidas, exigiria a efetiva aplicação de “(…) direitos iguais (…) de grandes e pequenas nações” e impediria consentir na proteção de determinados países por organismos financeiros internacionais ou por seus antigos colonizadores. Deveria também deixar de apoiar a neoescravidão dos Estados, que afeta seu direito à autodeterminação e sua soberania, um princípio que deve ser inegociável.
Enquanto isso, as ruas queimam e a crise pesa ainda mais na vida dos haitianos. O secretário-geral da ONU endossou o pedido do primeiro-ministro e pediu ao Conselho de Segurança para enviar uma força armada internacional para restaurar a ordem “pela força”, com a justificativa de “fornecer serviços essenciais”.
Este apelo também foi bem recebido pela Representante Especial da ONU para o Haiti, Helen La Lime. A ONU acha que pode neutralizar a crise haitiana enviando uma força armada estrangeira? É este o caminho para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030, segundo documento da própria ONU?
Ao apoiar a intervenção de uma força armada, como esta instituição e a comunidade internacional ajudarão a “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, facilitar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas para todos os níveis” (Objetivo 16 do documento)? A situação no Haiti ressalta ainda mais os paradoxos mortais que esta instituição e suas agências enfrentam, assim como a comunidade internacional, algumas ONGs e a sociedade civil.
Essa intervenção resolverá os problemas estruturais enfrentados pelos haitianos, que se opõem esmagadoramente à interferência estrangeira? Eles ainda se lembram da experiência desastrosa dos exércitos americano, francês e canadense que vieram “ajudar” após o terremoto.
Em Janeiro de 2010, as forças norte-americanas mobilizaram mais de 550 homens, reforçando as forças militares já presentes – cerca de 2.200 fuzileiros navais – para garantir o espaço público, incluindo o aeroporto, mas também para que as ONGs permitissem à MINUSTAH continuar a sua missão de “estabilização”. Conhecemos o papel desta última última e sua responsabilidade na propagação do cólera, que já fez mais de 10.000 vítimas.
Essas forças foram destacadas sob o comando do Comando Sul, do qual o Haiti depende; sua contraparte na África é o AFRICOM. A França não ficou de fora, enviando elementos da Força Aérea e da Marinha e trabalhando para a União Europeia no envio da European Gendarmerie Force (FGE) para também participar na operação de segurança.
Cabe questionar sobre a relevância da intervenção de forças armadas estrangeiras para se encarregar da segurança de um país no contexto de uma crise humanitária. Da mesma forma, a intervenção armada de um país em outro em nome da “democracia” é altamente problemática. É tempo de a ação humanitária não ser militarizada ou usada como pretexto para uma longa ocupação dos territórios.
Desde 2001, sob o pretexto da “segurança global”, a única resposta tem sido o envio de forças armadas estrangeiras ao terreno, na maioria dos casos em violação dos princípios fundadores da própria Carta das Nações Unidas. Vimos isso no Afeganistão, Iraque, Mali, Burkina Faso e muitos outros paíse.
Tal decisão seria catastrófica para o povo do Haiti e poderia levar a assassinatos em massa nos confrontos entre esta força armada internacional e as gangues, que certamente não permitirão que suas armas, territórios e poder lhes sejam tirados.
Desde 17 de outubro do ano passado, o Conselho de Segurança instaurou, por meio da resolução 2653, um regime de sanções contra os líderes das gangues, incluindo a mais poderosa, a G9+ e aliados. Como foi feito em 2017 no Mali e recentemente contra alguns oligarcas russos. Não é incoerente propor soluções idênticas para situações totalmente diferentes?
Por um lado, os militares no contexto de um golpe, os oligarcas no contexto de uma guerra ilegal -segundo o direito internacional, incluindo o artigo 2§4 da Carta da ONU- e, por outro, os membros de gangues em contexto de uma crise interna, ainda que dramática. Por que não enviar uma força armada internacional a todos os países com presença de gangues?
Voltar para esse apelo da intervenção armada externa certamente não reduzirá o impacto das gangues na vida dos haitianos, nem resolverá o problema da ilegitimidade do primeiro-ministro ou da ineficácia dos serviços públicos.
Sim, o país está enfrentando o reino das gangues, e isso não é novidade. Na época da queda do ditador Jean-Claude Duvalier em 1986, os bandos armados se transformaram em estruturas paramilitares e se tornaram um importante ator da vida social e um interlocutor privilegiado das autoridades.
Algumas gangues são protegidas e financiadas por membros da polícia e de sucessivos governos, o que lhes permite controlar agora mais de um terço do país e às vezes bairros inteiros dentro da capital Porto Príncipe.
Por enquanto, as forças armadas dispostas a ir “resgatar” o Haiti – a primeira república negra a se libertar da escravidão e da colonização – ainda não parecem estar no chão, mas estarão em breve. Autoridades dos EUA e do Canadá declaram que “aviões militares dos EUA e do Canadá chegaram a Porto Príncipe, Haiti, para transportar equipamentos de segurança críticos adquiridos pelo governo haitiano. O equipamento inclui veículos táticos e blindados, bem como suprimentos. A entrega dos equipamentos fez parte de uma operação conjunta envolvendo aeronaves da Royal Canadian Air Force e da US Air Force”. Chegam também, sem dúvida, vários instrutores militares e forças de intervenção junto a esses equipamentos.
Em caso de necessidade, a República Dominicana poderá dar uma mãozinha para este dispositivo de intervenção, já que acaba de adquirir uma série de veículos e aeronaves militares, como destacou o presidente Luis Abinader em 9 de outubro: “Estamos fazendo muito em diferentes áreas, tanto para a Força Aérea como para o Exército, para fortalecer as capacidades de defesa do nosso país.”
Dados os maus-tratos que os migrantes haitianos sofrem na República Dominicana, é fácil ver o verdadeiro propósito dessas compras militares. Desde o início deste ano foi construído um muro de mais de 200 quilômetros de extensão na fronteira entre os dois países e, nas palavras do presidente dominicano, “essa equipe de retaliação e vigilância servirá para cuidar de nosso território e para que o mundo saiba que o solução para o problema do Haiti é um trabalho coletivo da comunidade internacional e não apenas da República Dominicana.”
No momento, o Estado dominicano se limita a caçar, maltratar e perseguir implacavelmente os migrantes haitianos para cumprir a vontade dos Estados Unidos de deter o fluxo migratório. Essa crise também pode fornecer a eles um meio potencial de pressionar outros Estados caribenhos tentados a seguir os exemplos de Brasil, Chile e Colômbia. Também lhes dá o direito de sonhar em adicionar uma nova estrela à sua bandeira depois de Porto Rico.
Tudo isso é consistente com o desejo de adicionar um componente “humanitário” à sua doutrina militar, mesmo que isso signifique desafiar o direito internacional e o direito internacional. Apesar desses perigos, as Nações Unidas, apesar de seus objetivos aparentemente opostos, não parecem capazes de se opor a esse projeto assassino. Prova, se é que faltava, de que é urgente reformar esta instituição internacional que só serve os interesses do imperialismo e das classes dominantes.
Enquanto isso, o bravo povo haitiano, que luta por sua soberania, se afoga em crises estruturais. A colonialidade do poder e a colonialidade do Estado continuam a se expressar em um país que foi o primeiro a fundar uma república negra.
O Haiti é involuntariamente punido por esse insulto à supremacia branca? Temos todo o o direito de perguntar por que os princípios fundadores da Carta da ONU são praticamente inaplicáveis lá. É importante lembrar que tudo isso acontece durante a Década Internacional dos Afrodescendentes, lançada em 2015 pela comunidade internacional para combater o racismo estrutural.
Por isso é tão desconcertante o quase silêncio dos afrodescendentes e africanos sobre a situação do Haiti. O país já passou para o outro lado da realidade e é invisível aos nossos olhos? No entanto, é claro que o que acontece com os haitianos diz algo sobre africanos e afrodescendentes. Assim como a independência africana, conquistada com sangue e lágrimas, esta nação está sendo pisoteada pelo sistema financeiro liberal e pelas corporações transnacionais. Também sublinha o fato de que o racismo estrutural ainda está presente em todos os mecanismos erstícios de um sistema que constantemente nega a dignidade dos africanos e afrodescendentes.
Tal constatação nos obriga, se quisermos abolir o paradigma da dominação branca, a enfrentar juntos esse mesmo racismo estrutural. No caso do Haiti, isso significa exigir reparações e a devolução do dinheiro da dívida colonial e do ouro roubado pelos estadunidenses em 1914. É a luta comum contra a colonialidade do direito internacional e nacional. A dignidade de milhões de pessoas e a soberania de muitos Estados estão em jogo.
*Mireille Fanon-Mendés-France é Co-Presidente da Fundação Frantz Fanon (Martinica/França). Boubacar Boris Diop é um renomado jornalista e escritor senegalês.