Aromas de Março
É pecado ser feminista?
Por Valéria Cristina Vilhena*
Da Página do MST
É pecado votar? É pecado ser dona de sua própria terra/casa? É pecado ter igualdade jurídica em relação aos homens? E a licença-maternidade de 120 dias é pecado? Criminalizar as violências contra as mulheres, seria pecado também? É pecado acessar, como os homens, o mercado de trabalho? E ter direitos civis, sociais e econômicos, seria pecado também? É pecado ter direito de educar e cuidar dos filhos, compartilhando do pátrio poder podendo requerer/ficar com a guarda em caso de separação? A maioria dessas conquistas, nós mulheres só obtivemos ou efetivamos, a partir da incorporação desses direitos à Constituição Federal, de 1988.
Alguns direitos tão recentes, outros ainda por serem conquistados. Mas, todos, sem exceção, resultados de muita luta das mulheres ao longo da história, inclusive da história recente na estratégia utilizada e conhecida como Lobby do Baton, na constituinte de 1988; mulheres corajosas, inteligentes e aguerridas articulando politicamente um sistema criado para silenciá-las e invisibiliza-las.
Logicamente que as lutas e conquistas das mulheres não se iniciam na década de 1980. Feminismos vão para além de teorias e desdobramentos conceituais e teóricos, os feminismos atravessam nossas vidas, mudam nossas expectativas, desejos, intimidades, identidades, mobilizam, desnaturalizam.
Portanto, não é coisa de mulher branca que teve mais condições de acessar espaços sociais e políticos. Mas de todas as mulheres ancestrais, indígenas, negras, afro-indígenas empobrecidas, miscigenadas por violências, latinizadas, vulnerabilizadas. Logo, feminismos são plurais e capilarizados na, com e pela vida de muitas mulheres, inclusive para aquelas que nunca se nomearam dessa maneira ou até renegam tais mobilizações de lutas.
E, no que diz respeito às mulheres cristãs, quero pedir licença para, daqui em diante, me dirigir especialmente, mas não exclusivamente a elas, mulheres crentes evangélicas, pentecostais e neopentecostais para apontar alguns pontos que, a meu ver, são inerentes ao legado histórico da Reforma Protestante.
Vivemos tempos sombrios, dos quais fomos levadas a pensar que, religião e política não se misturam, no sentido de não serem compatíveis, ou que, qualquer busca por direitos, igualdade, justiça social é “coisa de esquerdista, comunista, feminista”, logo antibíblico, anticristão, pecado. Será mesmo?
Quero, sem medo, afirmar o oposto. E por quê? Exatamente pela minha anterior afirmação de que lutas por direitos são mobilizações inerentes ao protestantismo, legado do movimento da Reforma Protestante. Calvino, um dos reformadores, dizia que era preciso defender o “direito à resistência contra toda e quaisquer tiranias”.
Estavam nos fundamentos teológicos da reforma, a força popular camponesa contra a exploração que se avistava e que já estava sendo vivenciada, nos séculos XIV, XV, XVI, isto é, nos anos de 1300 a 1500, quando da transição do sistema de exploração feudal para o sistema que aprofundou ainda mais a exploração, o sistema capitalista.
Essa força popular fincava-se na não aceitação do poder religioso da época, mas não só. Nas entranhas dessa luta estavam a defesa aos direitos às terras comunais às florestas e águas, contra a privatização de terras, contra a implantação de altos impostos aos trabalhadores. Era base de pensamento popular, considerar Leis injustas, que retirassem a dignidade humana, roubo contra o próprio Deus. Protestantismo, historicamente é o legado da insurgência, da resistência ao poder tirano, opressor e injusto.
Desse modo, historicamente, ser evangélica está ligado a não se assujeitar às injustiças, às desigualdades, às ações indignas, advindas por violências e tiranas mãos do Estado ou daqueles que se fizeram superiores por sua ganância e, assim, retiram a dignidade da vida, seja ela de ordem social, patriarcal, machista, racista, política, legislativa ou religiosa.
Interessante que vivemos tempos de negação desse legado, ou por ignorância ou por interesses escusos e imorais de uma liderança que não se compromete com o legado da reforma protestante, mas que se aliou e se alinhou ao capitalismo tão contrário ao legado protestante.
Entretanto, a verdade histórica é que muitas mulheres protestantes antes de nós já lutaram, resistiram e conquistaram vários direitos, que nem elas mesmas puderem experienciar, mas que são, no mínimo inspiradoras. A professora e pesquisadora Claudete Beise Ulrich[1] resgata a história de algumas delas, como Katharina von Bora Lutero, Elisabeth de Meseriz, Elisabeth de Calenberg-Göttingen, Argula Stauff, Katharina Schütz.
No entanto, quero destacar o nome e legado de outra mulher: Sojouner Truth (Peregrina da Verdade). Pregadora pentecostal abolicionista, mulher negra e defensora dos direitos das mulheres. Sojouner Truth nasceu escravizada em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em 1797. Tornou-se uma mulher livre, em 1787, com a abolição da escravidão nos Territórios do Norte dos Estados Unidos.
Proferiu um discurso memorável [2] aos 54 anos, na Women’s Rights Convention (Convenção dos Direitos da Mulher), em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851. Sua fala foi após ouvir alguns pastores presentes argumentarem que as mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque eram frágeis, instáveis e intelectualmente inferiores, além de ser Jesus um homem e a primeira mulher, Eva, uma pecadora. Vejam o que disse a irmã Sojouner Truth:
Muito bem crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem. Eu acho que com essa mistura de negros do Sul e mulheres do Norte, todo mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho. Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso… [alguém da audiência sussurra, “intelecto”). É isso querido. O que é que isso tem a ver com os direitos das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu está cheio, por que você me impediria de completar a minha medida? Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso. Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem. Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer4.
“De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher!”, na religião cristã, a salvação vem pelo corpo de uma mulher, pelos sentimentos, pela dor, pela sensibilidade, pelo olhar de uma mulher. Assim cantou Maria, mãe de Jesus: “Olhou para a humilhação de sua serva”, “Encheu de bens os famintos e despediu os ricos sem nada”. Lucas 1. 46ss. Não haveria salvação sem uma mulher! Segundo a narrativa da criação, lembrada no discurso por Sajourner, bastou uma mulher para pôr do avesso a história da humanidade. Encerro com suas palavras: “todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo, colocando-o do jeito certo novamente”. As mulheres cristãs feministas são as margens pressionando o centro para o que é justo, “é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem”.
*Valéria Cristina Vilhena é teóloga cristã feminista, mestra em Ciências das Religiões, doutora em Educação e História da Cultura. Fundadora do Movimento EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero.
[1] ULRICH, Claudete Beise. A Participação Ativa das Amulheres na Reforma Protestante do Século XVI. In ZWETSCH, Roberto E. (Org.). Resgatando a Radicalidade da Reforma Protestante (1517-2017). São Leopoldo -RS: Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, 2019.
[2] Versão registrada pela abolicionista e feminista branca Frances Gage e publicada em 1863.