Agroecologia é o Caminho
A vitória da Agroecologia nos 40 anos do MST
Por Virgínia Mendonça Knabben
Da Página do MST
Em maio de 2006, Ana Maria Primavesi, engenheira agrônoma radicada no Brasil e expoente maior da Agroecologia, aceitou prontamente o convite da equipe da ELAA* (Escola Latino-Americana de Agroecologia) para ministrar aulas junto a Turma 1 no Curso de Tecnologia em Agroecologia no assentamento Contestado, município da Lapa, estado do Paraná.
Trabalhando como voluntária (o que normalmente fazia), Ana participou da primeira etapa do primeiro curso de graduação em Agroecologia no Brasil. Gratidão e encantamento eram sentimentos que se mesclavam naquele ambiente de partilha entre os que a assistiam. No terceiro e último dia, concluído o trabalho, ainda no pátio da escola, ela parou, voltou-se e contemplou o casarão colonial onde estivera parte do tempo trabalhando com as os educandos. Logo ela disse em voz baixa e embargada para José Maria Tardin, um dos participantes e que se tornou, depois, seu grande amigo: “Agora eu sei que a Agroecologia não tem volta.”
Tardin conta que o silêncio, o entardecer e a fala de Ana fizeram daquele momento algo mágico, inesquecível. Palavras proféticas de uma mulher que nem sabia o quanto aquilo seria pura realidade.
Ana Primavesi viajou muitas outras vezes a convite de agricultores do MST para dar assistência técnica aos assentados. Acreditando que as pessoas que recebem terras pela reforma agrária precisam de ajuda em todos os sentidos, ela participou inúmeras vezes de encontros, dando palestras e prestando assessoria técnica. Era solidária às pessoas, desejosa de que a terra fosse bem cuidada e frutificasse. Sua presença era muito festejada: ela dava palestras, assessoria técnica e participava ativamente de Encontros de Agroecologia. Seus livros e cartilhas tornaram-se a base de estudo e aprofundamento, porque fazer parte do Movimento os obriga a estudar. Sua contribuição científica proporcionou às pessoas ligadas ao Movimento a base sobre a qual puderam, em muitos pontos do país, organizar escolas de Agroecologia e desenvolver experiências práticas que lhes proporcionassem autonomia: tornavam-se mestres de si mesmos.
Em Minas Gerais, por exemplo, a Pastoral da Terra se incumbia de cuidar dos assentados, pois muitos deles não tinham o menor convívio com o campo. Ao fim de seis meses, muitos tinham deixado a terra pela qual tanto lutaram. Para piorar, os solos não eram dos melhores e chovia pouco. “Mas a sabedoria antiga diz que variedades adaptadas ao clima e ao solo da região se dão bem. Mostrei a eles como saber se o solo podia produzir, como eram as raízes das plantas e como deveriam plantar. Passamos por toda a região e descobrimos as plantas que cresciam bem, e antes de tudo, cobrimos o solo com todo tipo de matéria orgânica, até de galhos de árvores picados. Plantamos feijão guandu e cana como quebra-ventos e também para economizar água, e de repente tudo começou a funcionar: a terra produzia, e nenhum assentado foi mais embora. Agora sim podiam se dizer agricultores – ela escreveu.”
Era com o pequeno agricultor que Ana mais gostava de estar, “porque os agrônomos e estudantes de agronomia acham que sabem de tudo e depois não vão praticar Agroecologia na vida real”, – dizia. As críticas que recebia por ajudar as pessoas do Movimento não a demoveram. E lá ia ela, transparências a tiracolo (Ana usava muito o retroprojetor com transparências naquela época, talvez o antepassado do power point de hoje) e muita disposição para ajudar a quem quisesse, precisasse e pedisse. Em sua biografia, lançada em 2016, há um capítulo só para este tema, cujo título é “Com terras, sem nada”. Ela mesma redigiu um trechinho:
“Terra não é fonte de lucro, nem dádiva social, nem objeto de especulação ou modalidade de poupança. Terra é a base vital da humanidade. A reforma agrária não está levando isso em consideração. A terra tem de garantir a segurança alimentar. Diz-se que alimentação é um direito humano, mas não significa a posse de terra com a agricultura terceirizada produzindo mercadorias exportáveis. Obriga-se os assentados a produzir alimentos para que todos tenham o direito de se alimentar. O que está errado nos assentamentos e nessa reforma agrária? A entrega da terra a colonos não é o fim de um processo, mas o início. Eles necessitam de uma tecnologia melhor do que a convencional, que lhes permita ficar na terra, além de atendimento técnico, social e espiritual, e também de conhecimentos administrativos. Deveriam ser associados a cooperativas de compra e venda de produtos e insumos, formar mutirões para diversas atividades como a manutenção do gado, a colheita e talvez até o plantio, e finalmente ter máquinas em conjunto, o que lhes permitiria fazer os serviços mais urgentes com maior rapidez.”
Sobre o MST, escreveu: “Muitos os atacam porque dizem que gostam de bagunça, mas eu os admiro porque tentam organizar um movimento de agricultores, embora a maioria sejam filhos ou netos de agricultores que perderam sua terra tempos atrás.” O maior problema, segundo ela, é que as pessoas querem ser agricultores, mas não conhecem mais o campo e perderam a ligação com a terra. E só recebem críticas: “Em vez de ajudá-los, os criticam. Decerto há aqueles que causam alguma confusão, que não entendem nada de agricultura e que só querem bagunça, mas não é farra. É muito sério, e toda nossa sobrevivência depende que entendamos o solo e sua importância vital a tempo, antes que tudo caia em cacos. E que se chame a atenção para a Agroecologia, que é o manejo consciente do solo e das culturas para que também as gerações futuras tenham a possibilidade de viver e sobreviver.”
Nestes 40 anos do MST, vemos um movimento maciço em direção à Agroecologia. A defesa das águas, das matas, do solo, das populações tradicionais, dos saberes ancestrais é a força geratriz de um movimento que se agigantou. A larga produção de alimentos do Movimento, embasada nos ensinamentos de Ana Primavesi, mostra que a Agroecologia é o único caminho para produzir alimentos de alto valor biológico, que preservam o solo. “A terra não é fonte de lucro”, como ela escreveu, ela é fonte de vida, e entendendo isso como ninguém, o Movimento bate recordes de produção, cria escolas (muitas com o nome de Ana), fábricas de bioinsumos, cooperativas, e replica um modelo de cuidado com a terra que gera vida em todas as esferas.
Não é exagero dizer que Ana foi a grande professora desse Movimento, a professora que os ensinou a tratar a terra com amor e respeito e que ela tem vida. Como contrapartida, o MST devolve à sociedade um modelo de agricultura que vai garantir a comida biodiversa de que tanto precisamos, preservando a natureza. Imagine o que produziriam se contassem com a reforma agrária.
Testemunha que sou de alguns encontros da Mestra com seus discípulos da terra, encerro aqui com uma história que ela se emocionava em compartilhar: certa vez agricultores muito pobres do norte da Bahia queixavam-se de que não conseguiam nada, que eram isolados, e que o pessoal da Universidade que era instruído e que eles não sabiam nada, e que era difícil plantar. Ana ouviu e disse: “Não, vocês têm de acreditar em vocês. A agricultura deu certo por 4.000 anos e não precisou de nada disso”. (ela referia-se a venenos, insumos, maquinários). Passados uns cinco anos lá estava Ana num Encontro de Agroecologia na Bahia e eis que os mesmos agricultores vão a seu encontro: bem vestidos, com carro, família formada. Ana os reconheceu, e perguntou: “Ué, vocês saíram da agricultura? Estão tão chiques! O que fizeram?” Um deles se aproximou e disse, pegando nas mãos dela: “Fizemos o que a senhora mandou: acreditar em nós.”
* A ELAA é uma escola criada pela Via Campesina, sendo a primeira escola a oferecer uma graduação em Agroecologia no Brasil, tendo realizado seu ato público fundacional em 27 de agosto de 2005. Acolhe educandas e educandos da América Latina, e constitui a rede de Institutos de Agroecologia Latino-Americanos – IALA da Via Campesina
**Editado por Fernanda Alcântara