Luta pela Terra
“Olhares Cruzados pela Terra”: projeto intergeracional conta a história dos 40 anos do MST
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
A arte da fotografia e das palavras é uma poderosa ferramenta capaz de eternizar instantes, de capturar a essência de um momento e imortalizar a trajetória de comunidades e movimentos. E em meio a essa capacidade transformadora, o projeto “Olhares Cruzados pela Terra” traz uma observação sensível e apaixonada pela memória e história do MST nestes 40 anos.
O projeto “Olhares Cruzados pela Terra” surge a partir dessa experiência, buscando resgatar a memória intergeracional, destacando sua luta pela reforma agrária e explorando soluções agroecológicas e sustentáveis. A abordagem “intergeracional” envolve crianças e jovens na coleta de relatos dos mais velhos, criando uma teia narrativa que une passado, presente e futuro.
Dirce Carrion, uma das idealizadoras do projeto, traz consigo não apenas a experiência na área da fotografia, mas também uma conexão profunda com as raízes do MST desde os anos 80. A sua trajetória se entrelaça com a ocupação da fazenda Annoni, marcando o início de um compromisso com os movimentos sociais emergentes no final da ditadura. No início dos anos 2000, juntamente com um coletivo de diferentes áreas de conhecimento que desenvolvia trabalhos com países da África, fundamos a Imagem da Vida.
Um exemplo é a experiência no Polo de Educação Amazônia, realizada em outubro de 2023, trouxe desafios como a falta de recursos e o curto prazo de produção, mas que não impediram a equipe de seguir adiante. Ao abordar questões socioeconômicas, climáticas e ambientais ao longo dos 40 anos do MST, o projeto destaca a interdependência entre as comunidades camponesas e a natureza.
O projeto culminará em julho deste ano, no 7º Congresso Nacional do MST em Brasília, em que um livro ilustrado, um documentário e uma exposição envolvente serão apresentados, resultado de uma colaboração entre educandos, fotógrafos, documentaristas e pesquisadores. Esses produtos não apenas contaram a história do MST, mas também ecoará a voz das/os Sem Terra.
Confira abaixo a entrevista com Dirce Carrion e a equipe do projeto:
Como surgiu a ideia de criar o projeto “Olhares Cruzados pela Terra” e mostrar o papel do MST na luta pela reforma agrária e as soluções agroecológicas e sustentáveis no Movimento?
Dirce Carrion: Surgiu em abril de 2023, quando retornei no assentamento da fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, depois de 38 anos e fiquei impressionada com a transformação do que era uma terra nua e improdutiva em um exemplo de produção agropecuária, de alimentos, cooperativas, agroindústrias, escolas, o Instituto Educar que tem curso superior na área de Ciências Agrárias. Conversando com educadores do Instituto Educar, veio a ideia de realizar uma edição dos Olhares Cruzados para contar essa trajetória de 40 anos do MST.
A partir daí fomos amadurecendo uma proposta que envolvesse assentamentos de diferentes regiões do Brasil no resgate da memória do MST numa perspectiva intergeracional e, ao mesmo tempo, trabalhasse a percepção e preparação para os desafios atuais, com atenção especial para os impactos da crise climática nos territórios, e a importância das práticas agroecológicas para as gerações presentes e futuras. Também vale mencionar a Vitória Barros da Silva, que é um apoio fundamental à Imagem da Vida e meu braço direito para tudo.
Para abordar a temática da mudança climática buscamos a parceria com a Resama (Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais), com experiência na área de pesquisa e na busca de soluções para o enfrentamento da crise climática, que cada vez mais impactam a produção e os meios e modos de vida das populações do campo e da cidade.
No final de junho apresentamos o projeto para a coordenação dos 40 anos do MST, que compartilhou com a coordenação nacional de Educação. O Setor gostou da proposta e deu início a articulação com os polos regionais de educação do MST, que também acolheram a ideia.
Mesmo não estando ligada diretamente ao MST, acompanho e apoio as ações do Movimento desde o início nos anos 80. Em 29 de outubro de 1985, participei da ocupação da fazenda Annoni no Rio Grande do Sul. Naquele tempo, éramos um coletivo de universitários gaúchos que documentava os movimentos sociais emergentes no final da ditadura.
Poderia explicar sobre a abordagem “intergeracional” do projeto, onde as crianças e jovens colhem relatos dos mais velhos e lideranças da comunidade sobre a trajetória dos assentamentos, memórias climáticas e impactos nos territórios?
Dirce Carrion: “Olhares Cruzados” é um projeto da Imagem da Vida, OSC que teve início em 2004, com a perspectiva de valorizar a contribuição dos povos africanos para a formação da identidade brasileira, promovendo intercâmbio de conhecimentos entre crianças e jovens comunidades de países africanos e quilombolas no Brasil.
Desde a sua criação, o projeto teve como base de pesquisa registros visuais e a tradição oral, desenvolveu metodologias baseadas em registros fotográficos e entrevistas protagonizadas por crianças e jovens com as pessoas mais velhas das suas comunidades.
A memória da ocupação da terra é fundamental para dar significado à luta e permanência nos territórios, da mesma forma como o trabalho no campo e a observação das mudanças no clima ocorridas ao longo de décadas são fundamentais para a mitigação dos impactos e para a adaptação dos territórios aos efeitos da crise climática, uma realidade cada vez mais presente em todas as regiões e biomas brasileiros.
Com o objetivo de pesquisar a própria história, os mais jovens vão exercitando a escuta atenta e ativa, contextualizando e dando significado às lutas, valores e saberes transmitidos pelas gerações mais antigas, o que contribui para incentivar o diálogo intergeracional e a valorização do Movimento.
O “Olhares Cruzados pela Terra” é o primeiro projeto realizado em um assentamento do MST, e a 16a edição desse projeto que já contemplou cerca de 80 mil educandos de escolas e comunidades em Angola, Moçambique, Haiti, Senegal, Congo RDC, Bolívia, Guiné Bissau, Paraguai, Mali, Etiópia, Cabo Verde e Ghana, que compartilharam conhecimentos e saberes locais com crianças e adolescentes brasileiros do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Maranhão, Pernambuco, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Amazonas, Piauí e Minas Gerais.
O resultado das atividades desenvolvidas nas oficinas está registrado em 15 livros publicados e 10 documentários e dezenas de exposições.
Quais foram os principais desafios enfrentados durante a realização da experiência no Polo de Educação Amazônia, realizada de 19 a 30 de outubro de 2023? Já foram realizadas as outras previstas para 2023?
Dirce Carrion: Como o projeto teve início no segundo semestre de 2023 com o objetivo de apresentar um livro, um documentário e uma exposição no 7º Congresso Nacional do MST que ocorrerá em julho de 2024 em Brasília. O maior desafio tem sido a falta de recursos somada ao pouco tempo de produção e uma equipe reduzida, dado que as oficinas se realizam em assentamentos nas cinco regiões do Brasil.
Seguimos buscando apoio financeiro para a continuidade do projeto, que envolve a produção de um livro, um documentário e uma exposição.
Para não inviabilizar o lançamento dos produtos nas comemorações dos 40 anos, demos início às oficinas arcando com recursos próprios os custos das viagens, dos materiais pedagógicos e com apoios locais dos assentamentos. Contamos com profissionais altamente qualificados, parceiros da Imagem da Vida, que abraçaram o projeto e se engajaram de forma voluntária entre eles Ricardo Teles (fotógrafo), Nilton Pereira (documentarista), Vitória Barros da Silva (voluntária), Érika Pires Ramos e Ariana Monteiro (pesquisadoras da RESAMA). Além disso, estamos no processo de articulação e capacitação de um grupo de jovens universitários ligados ao coletivo socioambiental Clima de Mudança interessados em participar do projeto.
Com o apoio do Polo de Educação Amazônia, do MST, e das companheiras e companheiros do assentamento Vila Diamante, realizamos, em outubro de 2023, oficinas com os educandos da Escola Luzia Mendes em Igarapé do Meio, no Maranhão. Em novembro, foram realizadas as oficinas do Polo Nordeste, na Escola João Sem Terra, no assentamento 25 de Maio, em Madalena, no Ceará.
No Polo Sudeste, as oficinas vão ocorrer em fevereiro no assentamento Otaviano Rodrigues de Carvalho, em Ponto Belo, no Espírito Santo e, em março, estão agendadas as do Polo Sul, na Escola 29 de Outubro, no assentamento da antiga Fazenda Annoni em Pontão, no Rio Grande do Sul. Resta definir a realização das oficinas no Polo Centro Oeste.
Como o projeto aborda as questões socioeconômicas, climáticas e ambientais que impactam os territórios ao longo dos 40 anos do MST? De que forma esses aspectos são abordados nas diferentes regiões brasileiras representadas?
Erika e Arianas, co-idealizadoras da Resama: Devido à forte conexão das comunidades camponesas com a natureza, a dependência da terra e a defesa dos seus territórios, seus recursos naturais e da agricultura familiar, essa edição do projeto traz também um olhar sobre a saúde do planeta em que vivemos.
Esse olhar demanda readequar discursos, demandas e estratégias frente ao impacto do sistema socioeconômico global de desenvolvimento neoliberal e sobretudo àqueles que estão na linha de frente da mudança climática: comunidades camponesas, povos sem terra e sem teto, mulheres e crianças, comunidades indígenas, quilombolas e uma diversidade de povos e comunidades tradicionais, população negra e periférica, por exemplo. Em tempos de crise climática, a reforma agrária cresce de importância com a percepção da redistribuição da terra e defesa dos territórios com preservação e em um estado de harmonia com a natureza.
A soberania alimentar depende da saúde dos territórios (saúde aqui entendida tanto das populações quanto a saúde da terra) e demanda uma abordagem de justiça climática que faça parte do vocabulário e estratégia de luta da reforma agrária, já que os impactos da crise climática atingem de forma desigual, desproporcional e com mais intensidade as populações, comunidades e territórios mais vulnerabilizados.
A lente da justiça climática também demanda a luta pela transformação do sistema econômico global através da redistribuição de recursos, assumindo que as mudanças climáticas são resultado e sintoma de um sistema disfuncional e insustentável. As elites do agronegócio, corporativa e industrial criam as crises e lucram em cima delas através do controle de todo o sistema de produção de alimentos: da desapropriação de terras às sementes que serão plantadas, dos defensivos que serão utilizados, dos recursos hídricos e da produção de energia à comida que será processada e a porcentagem de tudo isso que será exportada para outros países.
Este projeto é uma oportunidade de tecer coletivamente uma trama de saberes e conhecimentos, puxando fios de memórias ambientais e climáticas ao longo dos 40 anos do MST, conectando territórios e biomas, sonhos e visão de futuro. Também se espera contribuir para que a mudança climática, seus impactos e desafios sejam temas presentes nas práticas educativas e formativas e nas estratégias de luta do Movimento.
Nesse sentido, os relatos coletados em campo representam um primeiro esforço de mapear impactos e desafios enfrentados com as mudanças climáticas pelo Brasil e as soluções e estratégias de cada território para lidar com esses desafios emergentes, com foco na agroecologia, socio-biodiversidade, agroindústrias, escolas do campo, economia solidária, economia circular e com o respeito, resgate e celebração dos conhecimentos e da cultura tradicional típicos de cada região do país.
Isso mostra que as comunidades camponesas estão sim na linha de frente do enfrentamento à crise climática e que desenvolvem soluções para se adaptarem aos impactos dessa crise, para remediar e mitigar seus efeitos, ao mesmo tempo em que aumentam a resiliência de suas comunidades frente às desigualdades nos sistemas alimentares.
Pode compartilhar mais detalhes sobre a proposta de apresentação dos resultados desse trabalho de pesquisa, incluindo o lançamento do livro, do documentário e da exposição programados para julho de 2024 no VII Congresso Nacional do MST?
Dirce Carrion: Estamos buscando apoio financeiro para viabilizar os seguintes produtos com os resultados das oficinas:
- Edição de um livro, ilustrado com imagens produzidas pelo fotógrafo Ricardo Teles e relatos colhidos pelos educandos sobre o histórico de luta do MST e a memória ambiental e climática de cinco assentamentos que representam os polos de educação do MST na região Amazônica, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro Oeste.
- Produção do documentário com as imagens coletadas pelo documentarista Nilton Pereira, que vem acompanhando as atividades do projeto nos assentamentos.
- Montagem da exposição com os materiais produzidos nas oficinas pelos educandos e os registros das atividades pela equipe de pesquisa do projeto e dos Polos de Educação dos Assentamentos do MST participantes.
Confira algumas fotos do Projeto já realizadas em espaços do MST:
*Editado por Wesley Lima