Cultura Brasileira
A voz que revolucionou o Samba
Por Simone Magalhães e Wesley Lima*
Da Página do MST
“Eu não sou daqui / Marinheiro só / Eu não tenho amor / Marinheiro só / Eu sou da Bahia / Marinheiro só / De São Salvador / Marinheiro só”. A composição “Marinheiro Só”, de Caetano Veloso e Padeirinho, foi imortalizada na voz rouca e grave da sambista Clementina de Jesus.
Clementina de Jesus da Silva nasceu no ano de 1901, na cidade de Valença, no Vale do Paraíba, região importante no cultivo de café no estado do Rio de Janeiro. Sua música é fruto das vivências africanas preservadas pela cultura jongueira de sua região, da influência da capoeira de seu pai, o violeiro Paulo Batista dos Santos, bem como da sabedoria de sua mãe, a parteira e lavadeira Amélia de Jesus dos Santos.
Suas raízes se firmaram no terreno fértil das rezas jeje nagô e dos cânticos em dialetos do iorubá falado nos terreiros de candomblé. Essas origens desaguam na Folia de Reis, que Clementina frequentou quando adolescente, e nas rodas de samba do bloco As Moreninhas das Campinas, o qual daria origem posteriormente à Escola de Samba Portela.
Antes de ser reconhecida como cantora profissional, Clementina trabalhava como lavadeira e empregada doméstica. Ela ganhou os palcos aos 63 anos, após ter impressionado o artista e futuro produtor musical Hermínio Bello de Carvalho. O produtor musical ficou maravilhado com o tipo de voz de Clementina, rouca e grave, e passaria a prepará-la para o espetáculo Rosa de Ouro, no show que a consagrou em 1965.
Com o pé na estrada da carreira profissional, Clementina referenciou o seu trabalho artístico na sua memória ancestral, em suas vivências familiares e comunitárias, nos conhecimentos tradicionais herdados de seus antepassados e fundamentados na cultura africana, o que lhe conferiu um estilo autêntico. Assim, teve um repertório genuíno e singular que lhe possibilitou a gravação de 13 LPs e participações em álbuns com grandes nomes da música popular brasileira.
O samba de Clementina refletia as culturas, canções, ritmos e vozes daqueles pretos e pretas que resistiram de diferentes formas nos cativeiros onde estavam submetidos ao trabalho forçado nas lavouras de cana-de-açúcar ou café. Sua voz foi respiro para aquela ancestralidade sufocada, e essa diáspora negra – em forma de arte – influenciou grandes nomes do samba como Beth Carvalho, Clara Nunes e Martinho da Vila.
Rainha Quelé
Moro na roça iaiá
— Clementina de Jesus
Nunca morei na cidade
Compro o jornal da manhã
Pra saber das novidades
Moro na roça iaiá
Nunca morei na cidade
Compro o jornal da manhã
Pra saber das novidades”
Rainha Quelé, como ficou conhecida Clementina de Jesus, era neta de africanos escravizados, que preservou a memória oral de seus ancestrais e soube honrar o seu legado por meio de um repertório que apresentava ao Brasil a potência da cultura popular criada e sustentada pelo povo preto em resistências ao trabalho forçado dos latifúndios coloniais.
Quelé vadiou em samba de partido-alto, ritmo que foi gestado nos batuques e tambores, marcado pela sua forma de desafio e do improviso, caracterizando-se por esta particularidade. Na qualidade de partideira, imprimiu uma força contundente às canções, cantando as bonitezas que o samba criava, os encantos e as cantigas de terreiro, o modo de viver nos morros, mas também as cantigas de lutas e resistências:
“Tava durumindo cangoma me chamou
Tava durumindo cangoma me chamou
Disse levante povo cativeiro já acabou”
Dotada de vasto repertório e preservando seu estilo de cantar e sua estética originais, Clementina ajudou a pavimentar o caminho para que artistas negros pudessem criar seu trabalho artístico independente do que era imposto pela indústria cultural estrangeira. Conseguiu ainda abrir brechas no samba para que mulheres pudessem expressar sua arte num campo que por muito tempo foi hegemonizado por homens.
Por isso, Clementina se tornaria uma das maiores referências da música popular brasileira, como ressalta Magnu Sousá, integrante da dupla de irmãos sambistas Prettos: “imagine uma mulher nos anos 1970, pensando na probabilidade de 80% de machismo no Brasil, e principalmente dentro do ambiente do samba, cantar ‘Não vadeia Clementina, fui feita pra vadiar’”, comenta.
Um ritmo ancestral
O samba é um gênero musical oriundo dos batuques e tambores realizados pelos africanos escravizados nas fazendas coloniais. Assim, tanto na região do Recôncavo baiano quanto no Rio de Janeiro do século XIX é possível localizar manifestações que remontam à origem do samba.
Contudo, o estilo musical tal como conhecemos hoje teve seu surgimento atribuído ao Rio de Janeiro do começo do século XX, já que o primeiro samba registrado e gravado, em 1916, foi “Pelo Telefone”, de autoria de Ernesto Joaquim Maria dos Santos (Donga). A popularização do samba se deu por meio dos desfiles das escolas de samba e pela difusão do rádio no Brasil.
O samba é um dos símbolos da cultura nacional mais conhecidos nacional e internacionalmente, mas também é reconhecido como uma dança que é realizada quando o ritmo está sendo tocado.
*Simone e Wesley integram o Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
**Editado por Fernanda Alcântara