Aromas de Março
Vó Luzia e a ocupação das mulheres Sem Terra em Lagoa Santa
Da Página do MST
Vim de longe, vou mais longe…
Aroeira, de Geraldo Vandré
Há mais de 50 anos, o crânio de Luzia foi encontrado em Lagoa Santa. Essa mulher, que teria morrido com cerca de 20 anos de idade, e com seus 1,5 metros, há mais de 11 mil anos atrás, foi nomeada para homenagear – ou caminhar junto com o passado – de Lucy, fóssil de uma hominídea de 3,2 milhões de anos, encontrado na Etiópia. Ambos os vestígios das duas mulheres foram encontrados em 1974. Os estudos de Lucy trazem informações de como conseguimos caminhar em duas pernas, e os de Luzia, sobre como a humanidade surgiu no Brasil, e nossas ligações com o continente africano, com a Oceania e sudeste asiático.
Esses raros vestígios mudam como nos entendemos: não chegamos dos Estados Unidos! Viemos de diversas possibilidades e migrações, teoria que depois ficou mais firme, com os estudos genéticos de povos do litoral do Oceano Pacífico. Luzia se parece com os povos aborígenes da Austrália e Nova Guiné.
No entanto, provas genéticas mais recentes indicaram que Luzia teria mais proximidade com povos atuais da região do Sul da Bahia e das bacias dos rios Doce, Mucuri e Pardo. O fenótipo desses povos, descendentes de ondas migratórias que chegaram da Ásia, é bem distante daquele dos originários de Austrália e Nova Guiné. A última palavra ainda não foi dada. Seguimos com o mistério.
Mas nossa imaginação voa com Luzia. É importante rememorar, entender e reconstruir nossa história, encontrar os caminhos ancestrais. Saber como os nossos viviam a 11.500 anos. Como era a vida de Luzia? Caçadora, pescadora, cozinheira?
Saber que até hoje tem descendentes na região é encorajador. Significa que a maneira que os povos tradicionais respiram e vivem hoje em Minas Gerais é fruto da maneira de estar no território, que propicia desde milhares de anos a reprodução da vida e o equilíbrio com os outros seres, convivas na mesma terra. E conseguiram permanecer, mesmo depois da invasão pelos europeus, mesmo a despeito das teorias, ideias e genocídios que tentam nos apagar.
Desde o Dia Internacional da Mulher trabalhadora deste ano de 2024, 8 de março passado, 500 famílias Sem Terra, encabeçadas por suas mulheres, ocuparam a fazenda Aroeiras, de 235 hectares, em Lagoa Santa. Afinal de contas, as mulheres caminham e lutam pelos seus territórios desde sempre em Minas Gerais! Nossas Luzias e Marias.
O território deve ser vivo, deve alimentar, ser casa, ser abrigo, ser festa, ser luta.
As mulheres observaram que a ocupada fazenda Aroeira não cumpre com nenhuma das três condições que a própria legislação brasileira exige:
– NÃO é produtiva há mais de 7 anos
– NÃO respeita as leis ambientais
– NÃO cumpre a função social
A ocupação em Lagoa Santa segue viva e resistindo em outros território de luta, está enraizada, e teve papel fundamental nas negociações junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para o assentamento das mais de 500 famílias, dos 11 acampamentos que constituem o Quilombo Campo Grande. E das mais de 230 famílias do acampamento Terra Prometida, localizado no município de Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha, em que em 20 de novembro de 2004, ocorreu um massacre com o assassinato de cinco trabalhadores Sem Terra, realizado por jagunços que invadiram o acampamento, liderados pelo fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy.
Justiça seja feita: função social da terra é Reforma Agrária!
Quando se ocupa uma terra, se pensa na continuidade da nossa história. Ocupar com a vida, continuando a história de nossas mulheres: que lutam, que plantam sementes, que cuidam da vida, que ensinam, que cozinham, que cuidam, que dirigem, que planejam o futuro.
As mulheres de Lagoa Santa podem bem invocar a ancestral desse território, a Vó Luzia, e dizer: “Vim de longe, vou mais longe…”.
*Editado por Fernanda Alcântara