Encontro Nacional
Os povos de terreiro reafirmam seus direitos e a luta contra o racismo religioso
Por Iris Pacheco e Dijna Torres
Da página do MST
Com apoio e participação ativa de militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o evento reuniu mais de 500 povos de terreiros de todo o Brasil com o intuito de debater sobre políticas públicas, resistência e combate ao racismo religioso. O encontro, cujo tema desta edição é “Nós Somos”, é uma iniciativa do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileiro (Cenarab) e tem como coordenação geral a Makota Celinha Gonçalves.
Além do combate ao racismo religioso, temas que versam sobre a juventude nos terreiros e os saberes sagrados e ancestrais também permearam o evento, que contou com a presença de pensadores, intelectuais e lideranças do movimento negro brasileiro. Estiveram presentes: Bukassa Kabengele, Dulce Pereira, Edelamare Melo, Hédio Silva, Joelzito Araújo, Cida Bento, Sandra Manuel e Sheila Walker, entre outros nomes de grande destaque no cenário de luta pela garantia de direitos da população negra do país.
A participação de cerca de 20 integrantes vinculados ao MST em diversos estados, mas também praticantes das tradições religiosas nos segmentos de Umbanda, Nação Nagô de Pernambuco, tendo o orixá Xangô como rei da bandeira nagô, Tambor de Mina do Maranhão e as Nações de Ketu e Angola do Candomblé, tem provocado o movimento para que a população de terreiro seja identificada e reconhecida nas áreas de Acampamentos e Assentamentos. Uma vez que, os territórios de axé, como são denominados os espaços de culto afro-brasileiro, são forças vivas que já existem e se desenvolvem autonomamente nessas áreas. Além disso, é uma forma de fortalecer as articulações com os terreiros externos ao MST, mas que cumprem papel central na luta e resistência desses povos.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra já dialoga com os territórios de povos e comunidades tradicionais a partir das linhas políticas do mesmo, tais como, meio ambiente, cultura, terra e território, saberes populares e tradicionais, soberania alimentar, entre outros. O desafio apresentado a partir das discussões e debates ao longo dos dias Ègbé é o de avançar junto à organização e a compreensão sobre essas tradições, do mesmo modo que ocorre a construção da resistência, autonomia e a forma organizativa destes povos, para a melhor condução e alinhamento político dos processos.
Ainda no encontro, o MST partilhou 500 mudas de Baobá, uma simbologia de resistência e de compromisso ancestral em defesa da natureza. As raízes vieram do Viveiro da Reforma Agrária “Guardiões dos Baobá”, situado no Assentamento Che Guevara, em Moreno (PE), um projeto que leva o debate da ancestralidade e da necessidade de uma Reformas Agrária Popular para assentamentos, acampamentos, quilombos e regiões urbanas.
Durante a atividade ficou nítido os desafios dos povos de terreiro no que se refere ao tema dos direitos humanos e combate ao racismo religioso, a incidência no cenário político eleitoral para que esses povos e territórios sejam devidamente respeitados, bem como o debate sobre a crise climática. Sem folha não tem Orixá, não tem Nkisi, não tem Voduns. Portanto, os terreiros são centrais na proteção e preservação do meio ambiente. Mas, quando impactados em tragédias e crimes ambientais, como ocorreu no Rio Grande do Sul, são os últimos a receberem auxílio.
Um levantamento realizado pelo Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul (CPTERGS) aponta que aproximadamente 750 terreiros, de 65 mil terreiros em todo o estado, foram afetados. Autoridades religiosas denunciam que estes Povos não estão na lista de prioridades dos governos, nacional e estadual, e mesmo com todas as perdas materiais e espirituais que tiveram na medida em que retomam os locais, estes se transformam em um espaço de apoio para os povos de terreiros afetados, sendo referência para a doação de cestas básicas, água e kits de higiene.
Nesse sentido, o Ègbé – Nós somos, definiu ainda a construção de uma campanha de doação para os Povos de Terreiro do Rio Grande do Sul, onde o valor das inscrições do evento em uma parceria com o MST será revertido em cestas básicas para essas populações.
Confira abaixo o documento final do Encontro.
Reunidos no III ÈGBÉ – Encontro Nacional da Cultura dos Povos de Matriz Africana, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, sob a proteção e regência da nossa ancestralidade e da Iyá Oxum – a força das águas e do feminino, fonte de toda a vida e princípio fundamental da unidade planetária -, nós, povos da terra, povos de Terreiro, povos que dançam e celebram a existência, manifestamos à nação brasileira nosso compromisso com a defesa inegociável do direito a existirmos plena e dignamente, afirmando nossas diferenças e superando as desigualdades históricas frutos do racismo colonial, construído para nos inferiorizar, invisibilizar e negar nossos saberes civilizatórios.
Para tanto, exigimos do Estado e da Nação Brasileira o irrestrito cumprimento dos princípios constitucionais que garantem a cidadania com igualdade e liberdade, na forma de políticas públicas de proteção, reconhecimento e valorização das nossas comunidades, recusando-nos a sermos reduzidos à dimensão religiosa e nos afirmando como POVOS TRADICIONAIS, construtores de singularidades étnicas traduzidas em cosmovisões, estéticas, artes, ciências e culturas próprias.
Nossa luta vem de longe, muitas e muitos sacrificaram suas vidas para que pudéssemos resistir. Todavia, o momento atual se apresenta como uma verdadeira encruzilhada na qual Exu nos requisita a tomada de decisões históricas, sem as quais o futuro de nossos povos fica comprometido, em função de nos vemos imersos em uma guerra espiritual e secular, na qual fomos tornados inimigos sem sermos consultados se queríamos dela participar.
Nesse contexto, à medida que a extrema direita internacional e nacional alarga seu poderio político, assistimos a nação brasileira ser sequestrada por uma frente política conservadora, antidemocrática, reacionária e autoritária, decidida a revogar direitos duramente conquistados nas últimas décadas. No campo econômico, tais grupos tentam aprofundar a lógica neoliberal no Brasil, aprofundando a submissão econômica e política da nação aos interesses dos oligopólios do capital especulativo-financeiro transnacional.
No plano ideológico, a sustentação das políticas neoliberais se dá mediante a tentativa de tomada do aparelho de Estado, objetivando a redução da democracia a uma teocracia fundamentalista lastreada na visão de mundo polarizada de segmentos evangélicos neopentecostais anti diversidade, que demonizam nossos povos e nos expõem à violência racista como nunca visto em nossa história republicana.
No que toca às políticas de Estado, essa perspectiva ideológica se materializa na tentativa de retomada e de aprovação, no parlamento brasileiro, de projetos de leis anti diversidade, cuja evolução foi interrompida com a vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2023.
Assim, vemos o avanço de propostas que atentem contra a soberania dos povos originários em relação aos seus territórios, como também a tentativa de monopólio fundamentalista cristão sobre os corpos das mulheres, sobretudo negras, a exemplo do Projeto de Lei PL1904 que criminaliza mulheres estupradas que abortam – em relação ao qual manifestamos nosso absoluto repúdio -, revogando direitos já consolidados historicamente pelos movimentos feministas. Na esfera educacional, afronta-se a liberdade de pensamento e cátedra na atividade docente, tentando instituir o patrulhamento ideológico e a criminalização de educadoras e educadores.
No tocante aos povos tradicionais de matriz africana, prevalece a retórica da liberdade religiosa para impedir que pessoas de todos os credos tenham acesso ao ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras e ameríndias no currículo escolar, conforme determina a lei 10.639/03 e 11.645/08, em um movimento de boicote sistemático à sua efetivação, que vai do parlamento até a gestão escolar, a mercê de educadores neopentecostais que não hesitam em criar toda a sorte de dificuldade para a incorporação dessas temáticas no ensino. De fato, o que se avizinha é a possibilidade de destruição das políticas públicas na forma de ações afirmativas, duramente conquistadas pelo Movimento Social Negro e que tem tensionado o próprio projeto civilizatório da nação brasileira, trazendo para a esfera pública a maioria da população preta e parda que fora historicamente relegada à invisibilidade e exclusão, contrastando, com nossos corpos e presenças, os privilégios naturalizados da branquitude.
Compreendemos que toda essa movimentação antidemocrática e anti diversidade compromete a governabilidade do governo Lula, em um momento em que se propõe a RECONSTRUÇÃO da nação diante do tsunami neoliberal e fundamentalista que se implantou desde o golpe que violou o legítimo mandato da presidenta Dilma Roussef. Nesse sentido, a realidade se agrava ainda mais com o sequestro do orçamento público federal, realizado por um parlamento fisiologista e hegemonicamente dominado pela extrema direita. Esse contexto coloca o governo do Presidente Lula em uma encruzilhada que se, por um lado, exige capacidade de negociação e diálogo com setores de oposição, por outro lado, entendemos que exige também o fortalecimento daquelas e daqueles que estiveram e estão ao seu lado nos piores momentos, como o da sua prisão e o da última eleição presidencial, entre os quais se colocam os povos de matriz africana, especialmente nós, os macumbeiros de esquerda.
A polarização ideológica e política é uma realidade estabelecida, não fomos nós que a criamos, pois somos povos circulares, conectivos e integrativos. Todavia, entendemos que a encruzilhada acima citada não pode significar a negligência ou silenciamento em relação à nossa existência e às nossas demandas pelo aperfeiçoamento e ampliação das políticas antirracistas no país. Durante o III ÈGBÉ debatemos sobre como essa invisibilidade se reflete exemplarmente em momentos como das recentes enchentes no Estado do Rio Grande do Sul, quando nossos povos tiveram seus sagrados submersos nas águas junto com suas dignidades igualmente submersas na ausência de políticas de assistência emergencial que atendessem suas necessidades, pelo que exigimos a imediata implementação de políticas que garantam assistência não apenas material às comunidades dos terreiros rio grandenses, mas, principalmente, recursos necessários à restauração e proteção de seus espaços e patrimônio cultural material e imaterial sagrado.
Da mesma forma, nos causa estranhamento que a presidência da República ignore a realização do ÈGBÉ desde sua primeira edição, ao ponto de sequer nos direcionar uma missiva presidencial que manifeste, pelo menos, o respeito às nossas singularidades e direitos, enquanto, em contrapartida, valoriza publicamente a chamada Marcha para Jesus com a representação do Ministro da Advocacia Geral da União (AGU), Jorge Messias, representando oficialmente a presidência da república e portando uma carta presidencial especialmente dirigida aos segmentos evangélicos-cristãos que, há pouco tempo atrás, faziam arminhas em seus templo e direcionaram suas orações aos piores propósitos contra nós, os diferentes, os progressistas, os democratas e macumbeiros de esquerda.
Finalizamos dizendo que a crise política atual reflete uma crise mais profunda, a crise civilizatória, com o aprofundamento de um projeto de dominação colonial que não hesita em aprofundar a barbárie, a miséria em escala planetária e a exclusão das populações empobrecidas e exploradas que há séculos resistem a ser dizimadas.
Nesse contexto, exigimos o lugar de direito que legitimamente conquistamos na história brasileira, o de povos que, mesmos diante das tentativas epistemicidas de aniquilação dos nossos saberes e visões de mundo, resistiram e resistem, mas que não pretendem mais continuar apenas resistindo, pois queremos viver plenamente. Isso significa que não podemos mais ser tratados secundariamente no plano das relações de poder dentro e fora do aparelho de Estado.
Com isso, exigimos nossa presença efetiva nas instâncias de decisão, nos poderes legislativo, executivo e judiciário, para que não apenas nossos corpos sejam índice de novas construções simbólicas inclusivas, mas para que nossos saberes também contribuam fraternalmente na reconstrução da educação, da economia, da ciência e da cultura nacional. Exigimos, ainda, a ampliação das políticas públicas de ações afirmativas, como também das políticas assistenciais e filantrópicas em todas as esferas da administração pública, saúde, educação, geração de emprego e renda, cultura e combate ao racismo, com transparência através de editais e de mecanismos de acesso desburocratizados, que contemplem nossas singularidades e formas de nos expressarmos, adequando seus objetivos às nossas realidades.
Coerentes com essa visão, invocamos neste III ÈGBÉ a força feminina das águas, em profundo respeito com nossas Iyás, nossas mães, por compreendermos que delas vem a vida e que nelas a vida se expressa. Por isso, deliberamos unanimemente pela inclusão de três mulheres de terreiro que devem nos representar na comissão organizadora da Marcha das Mulheres, que deverá ser realizada em novembro de 2024, reforçando uma aliança das mulheres de terreiro contra o racismo religioso e ambiental. Da mesma forma, reiteramos a importância de investirmos esforços na incidência política das mulheres de terreiros na Cúpula Social Mundial durante a reunião do G-20 no rio de janeiro e na COP 30, em Belém do Pará, no ano de 2025. Reforçamos essa perspectiva, convocando e mobilizando nossos povos a participarem da Marcha Zumbi +30, a ser realizada em novembro de 2025.
Somos tradicionais porque conservamos o poder da oralidade, do ser e estarmos juntos, numa perspectiva socialista-comunitarista não eurocêntrica. Portanto temos muito a contribuir na RECONSTRUÇÃO política de uma verdadeira sociedade democrática, capaz de superar o hiper individualismo neoliberal, base de toda a miséria “meritocraticamente” destinada a nós, os povos da terra, os povos que dançam, os povos que não desaprenderam a conversar com as folhas, com os animais, com as pedras, com as águas e os ventos.
Portanto, a verdadeira RECONSTRUÇÃO da nação não pode nos incluir secundariamente, sob pena de repetirem os mesmos erros históricos dos que buscavam construir o novo, todavia, ancorados em valores e cosmovisões ainda eurocêntricas, coloniais e exclusivistas. O racismo estrutural não conhece limites entre direita e esquerda, por isso só pode ser superado com a ação efetiva dos contra-coloniais, daquelas e daqueles que desenvolveram sabedoria e conhecimento no enfrentamento a esse mesmo racismo. Por isso dizemos em alto e bom som a toda a nação, exigimos respeito e dignidade. Respeitem nossos corpos, respeitem nossos territórios, respeitem nosso sagrado, pois é nele e por ele que NÓS SOMOS !!
III ÈGBÉ, Belo Horizonte, 16 de Junho de 2024