Agronegócio
O agro é tudo? Pacto do agronegócio e reprimarização da economia
Por Guilherme C. Delgado e Sergio Pereira Leite*
Do Le Monde Diplomatique Brasil
Este artigo, dividido em duas partes, aborda a economia agrária contemporânea do Brasil tendo em vista o processo mais geral de condicionamento do sistema econômico como um todo pelas tendências de reprimarização da economia, fortemente observáveis em seu comércio exterior. Esse processo afeta também a indústria, que tende a declinar de peso econômico ou a se limitar a funções coadjuvantes da chamada “economia do agronegócio”.
O tema da reprimarização da economia requer esclarecimentos, principalmente sobre suas implicações ocultas, visto que no tratamento midiático e ideológico do sistema agrário hegemônico todo esse processo é vendido como uma espécie de sucesso incontroverso de uma entidade mágica – o “agronegócio”[1].
A abordagem do texto está dividida em dois tópicos principais, que ao final se encontram numa seção de síntese a título de conclusão. A seção inicial trata de fazer certa dissecação temporal dessa economia reprimarizada, tomando por referência o início dos anos 2000, quando se (re)articulam os mecanismos de política econômica e social tendentes a converter as exportações de commodities agrícolas e minerais em espécie de carro chefe do comércio exterior brasileiro. Essa situação se configura não apenas como política econômica convencional de governo, mas adquire status de política de Estado por duas décadas até o presente, com consequências socioeconômicas e ambientais graves, mas de certa forma interditadas ao debate público. O diagnóstico macroeconômico e ambiental desse período revela indicadores empíricos críticos que convém ressaltar até para melhor caracterizar qualitativamente o processo em curso, bem como a rápida financeirização da agricultura, convertendo ativos reais, como commodities e terra em alvo de investimentos especulativos que conferem novos significados à dinâmica dessa economia agrária nacional.
Na seção seguinte destacamos o sentido da expressão “especialização primária” no comércio externo. Ao contrário do que sugere o senso comum, essa especialização não melhora a autonomia em nossas relações econômicas externas. Antes, acentua a dependência do conjunto do sistema econômico relativamente ao setor especializado em exportações, expelindo paulatinamente todos os demais, principalmente as exportações de manufaturados.
Afora o significado da dependência econômica, que pode ser medida pelo forte crescimento do déficit em “serviços e rendas pagos ao exterior” e pela virtual expulsão das manufaturas da Balança Comercial, tais processos aumentam ainda mais o peso de meia dúzia ou pouco mais de commodities agrícolas e minerais na economia brasileira; commodities que, para gerar os valores que delas requer o ambíguo conceito de “equilíbrio externo”, combinam mecanismos de dilapidação ambiental com outros de concentração fundiária de renda e riqueza.
Esse processo de especialização primário-exportadora afeta negativamente as estratégias alternativas de desenvolvimento rural baseadas na sustentabilidade agroecológica e no combate às desigualdades socioeconômicas. Nas Considerações Finais, reservamos algumas reflexões sobre a necessidade de mudança de rumos desse sistema de especialização primário exportador antiecológico, predatório, produtor de desigualdades e gerador de dependência econômica externa.
Commodities, comércio exterior, financeirização: uma revisão crítica
Nas duas últimas décadas, as transformações econômicas, sociais e políticas na paisagem agrária nacional foram particularmente marcantes, especialmente quando vistas a partir de uma perspectiva mais ampla. Ao lado de conquistas importantes, em particular durante a década de 2000 – como a criação de um conjunto inovador de políticas agrárias e alimentares diferenciadas e a redução das desigualdades sociais e da fome (indicadores que seriam rapidamente revertidos a partir de 2016) -, também assistimos a um conjunto de processos que aprofundaram as contradições estruturais da sociedade brasileira e caracterizaram um forte viés regressivo no meio rural, ainda pautado pela alta desigualdade do acesso à terra. Com efeito, os dados do Censo Agropecuário de 2017 mostram que os estabelecimentos agropecuários menores do que 10 hectares, apesar de representarem metade do total de unidades, respondiam por apenas 2,28% da área total, enquanto os estabelecimentos com 1.000 ou mais hectares eram somente 1% do número total, mas detinham 47,52% da área (IBGE, 2019)[2].
Nesta seção, revisitaremos rapidamente esse quadro privilegiando dois aspectos: a expansão da produção de commodities e suas implicações no comércio exterior, bem como a intensidade do processo de financeirização do campo.
Especialização primário-exportadora e o modelo de expansão da produção agrícola
Como destacam Flexor, Kato e Leite (2022: 11)[3], “a dinâmica econômica global caracterizada pelo vigoroso crescimento econômico dos países em desenvolvimento, a expansão do comércio e a baixa inflação global tiveram um efeito significativo sobre o padrão de comércio brasileiro. Em particular, a ascensão da China à condição de potência econômica global impactou as relações comerciais brasileiras. […] em duas décadas o país passou a ser o principal mercado para as exportações brasileiras que, entre 2000 e 2020, teve seu valor aumentado em 6.048%, passando de um pouco mais de US$ 1,08 bilhões para mais de US$ 67,68 bilhões. A China, que representava o destino de somente 1,97% do valor total das exportações brasileiras em 2000, correspondia a quase um terço (32,40%) deste em 2020. As importações de produtos chineses seguiram trajetória semelhante. Em 2020, chegaram a US$ 34,77 bilhões, isto é 21,9% do valor total importado, representando um aumento de 2.752% em 20 anos”.
Figura 1 – principais setores exportadores e os respectivos valores das exportações brasileiras em 2020 – em us$ bilhões fob
Essa concentração no mercado chinês foi ainda acompanhada por uma mudança radical na estrutura das exportações brasileiras, visto que até 2000 ainda era relativamente diversificada a pauta de comércio exterior, que vai dando lugar ao predomínio dos produtos básicos ao longo de 20 anos. Como exemplifica a Figura 1, a soja, o minério de ferro e o petróleo integram esse maior peso das exportações de bens primários intensivos em recursos naturais e o concomitante crescimento relativo das importações de produtos manufaturados. Como informado pela Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), a partir de 2018 o Brasil volta a contar com mais de 50% das suas exportações baseadas em produtos básicos, após décadas e décadas de diversificação da corrente de comércio externo.
O caso da soja merece destaque. Em 2000, o valor das exportações da cadeia oleaginosa representava 5% do valor total exportado pelo Brasil, passando para 16,8% em 2020, explicado pelo aumento expressivo das importações chinesas, que representavam mais de 70% do valor total de soja exportada pelo Brasil neste último ano. O mesmo aconteceria com o minério de ferro. É importante sublinhar que o setor rural (incorporando os setores industriais adjacentes) tem mantido uma performance superavitária na sua corrente de comércio ao longo do período aqui analisado, como atesta a Figura 2. Enquanto a balança comercial geral alternou momentos deficitários e momentos timidamente superavitários, a balança do “macro setor agrícola” abriu importante diferença entre exportações e importações, corroborando o processo de reprimarização da pauta de exportações[4].
Figura 2 – balança comercial do “macro setor agrícola” (exportações, importações e saldo) – 2000/2020 (em us$ fob)
O aumento dos preços das commodities e sua capacidade de geração de divisas levaram Maristela Svampa a caracterizar o período como o “Consenso das Commodities”[5], em contraste com o “Consenso de Washington”, cunhado para retratar o ajustamento estrutural das economias latino-americanas. Esse ciclo impactou diretamente o uso de recursos naturais, em particular a terra, pressionando seus custos, assim como áreas destinadas à preservação do meio ambiente e aquelas objeto da posse de populações originárias, em particular nos biomas da Amazônia e do cerrado, abrindo espaço para novas disputas territoriais fartamente noticiadas pela imprensa. Outro efeito do mesmo movimento é a diminuição da área destinada ao plantio das culturas alimentares, em particular aquelas que integram a cesta básica e são comercializadas em âmbito local e/ou regional. Como demonstram Flexor et al. (2022), arroz e feijão perderam terreno consideravelmente nesses vinte anos, o que foi relativamente compensado pelo aumento da produtividade em determinados anos. Resultado dessa equação é o encarecimento dos preços dos bens que integram a alimentação de boa parte da população e o retorno impressionante da fome no país, associado ao desmonte de políticas agroalimentares nos últimos cinco anos. Dados produzidos pela Rede PENSSAN informam que praticamente 60% da população brasileira encontra-se atualmente no grupo de insegurança alimentar, sendo 33 milhões de pessoas na categoria de insegurança alimentar grave[6].
*Guilherme C. Delgado é pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e membro da Direção Colegiada da Associação Brasileira de Reforma Agrária. Sergio Pereira Leite é professor Titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Referências:
[1] Sobre uma discussão mais aprofundada a respeito do emprego e do significado do termo “agronegócio”, ver DELGADO, G. 2012. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Ed. UFRGS, 142 p.; e HEREDIA, B.; PALMEIRA, M.; LEITE, S.P. 2010. Sociedade e economia do agronegócio no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25 (74): 159-196.
[2] Ver INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019. Censo Agropecuário 2017. Rio de Janeiro: IBGE.
[3] FLEXOR, G.; KATO, K.; LEITE, S.P. 2022. Transformações na agricultura brasileira e os desafios para a segurança alimentar e nutricional no século XXI. Textos para Discussão, 82. Rio de Janeiro: Fiocruz. (Projeto Saúde Amanhã).
[4] Cf. FLEXOR, G. et al., 2022. Op. cit.
[5] SVAMPA, M. 2013. Consenso de los commodities y lenguajes de valoración en America Latina. Nueva Sociedad, no. 244 (30:46), mar/abr.
[6] REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (Rede PENSSAN). 2022. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid 19 no Brasil – II VIGISAN: Relatório Final. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert, Rede PENSSAN.