Soberania Popular
Privatizações contra a transição energética
Por Beatriz Almeida*
Para Página do MST
O colapso climático bate à porta e, por trás dos 50 anos de ambiciosas metas de descarbonização, a fome de lucro do mercado tem consumido a capacidade de realização de uma transição energética.
Frente aos fatos, não é possível acreditar que as grandes corporações e seus Estados são capazes de manter nossas casas livres de enchentes e nossa comida segura de secas. Para sobrevivermos ao colapso climático, precisamos de um programa de transição ecossocialista que priorize a soberania energética popular.
O primeiro passo é retomar nossas estatais.
Após seis anos de negociações, em 2021 foi concluída a privatização da Eletrobrás. Temer e Guedes podem não ter conseguido o mesmo com a Petrobrás, mas venderam boa parte dos seus ativos: de refinarias a usinas eólicas. Esse processo nos conta como a desintegração de um complexo energético nacional, que poderia garantir o planejamento de uma transição energética, deu lugar a uma política coordenada por lobistas do setor petrolífero.
O mercado promete eficiência produtiva, diversificação energética e maiores investimentos. No entanto, a diversificação aponta para maior dependência de fósseis, a eficiência esconde demissões e precarização dos serviços, e os maiores investimentos precedem o desmonte dos investimentos públicos por políticas neoliberais.
A privatização da Eletrobrás
A crise que justificou a privatização da Eletrobrás foi uma combinação de retirada de investimentos públicos e gestão energética que prioriza lucros privados.
Uma análise dos dados históricos de investimentos públicos na Eletrobrás mostra que, após o golpe de 2016, a crise já colocada em curso foi aprofundada vertiginosamente. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a queda nos investimentos foi provocada “com a intenção deliberada de reduzir o tamanho da estatal e sua
relevância para a sociedade brasileira”.
O investimento caiu, os custos aumentaram.
No início de 2021, meses antes da privatização da Eletrobrás, uma crise hídrica na bacia do Paraná trouxe grandes prejuízos para a produção de energia nacional. Estudos indicam que o governo não elaborou um plano para prevenir irregularidades pluviométricas e estiagens prolongadas, usando a crise para beneficiar usinas privadas e justificar o acionamento de termelétricas (Castilho, 2022).
As crises hídricas têm de fato piorado, mas também têm sido fabricadas desde antes da privatização para justificar o uso de termelétricas e hidrelétricas privadas, que custam caro: 3,8 vezes o valor do MWh vendido por hidrelétricas da Eletrobrás. Ao invés de provocar políticas de contenção, o colapso climático tem servido de justificativa para implementação de políticas nefastas contra a população.
Desde a década de 1990, o grande capital tem visto na privatização das estatais uma das muitas estratégias de recuperação das taxas de lucro frente às crises de sobreacumulação. Estatais lucrativas, construídas com bilhões de dinheiro público em pesquisa, desenvolvimento e infraestrutura hoje são vendidas pelos milhões.
A quem interessa expandir o consumo de combustíveis fósseis?
Desde a privatização do pré-sal, grandes oligopólios têm buscado expandir a demanda nacional de gás metano sob o discurso de garantir soberania energética em tempos de crise hídrica. Hoje existem mais de 74 novos projetos de termelétrica a gás natural (metano), que totalizam 17GW de
potência.
Em 2021, a Natural Energia iniciou em Caçapava (São Paulo) a tramitação do projeto da primeira das três termelétricas “jabuti” previstas pela privatização da Eletrobrás2. A lei atribuiu ao Legislativo a atividade de planejamento técnico, interferindo no papel dos órgãos públicos responsáveis pelo planejamento energético. Essa interferência mina o planejamento de longo prazo e a implementação de políticas de transição energética. O resultado é uma dependência contínua de fontes de energia poluentes, como o gás natural fóssil, em detrimento de investimentos em energias renováveis, cruciais para mitigar o impacto do colapso climático.
A construção da termelétrica no Vale do Paraíba avança rapidamente, apesar da forte oposição e mobilização popular. A proliferação de termelétricas no Brasil só não é maior devido à falta de infraestrutura. Em 2021, um leilão de termelétricas fracassou pelos altos investimentos necessários para viabilizar o transporte do gás. No ano passado, Carlos Suarez tentou incluir um “jabuti” na
lei de modernização do setor elétrico para aplicar o projeto Brasdutos, existente desde 2015, usando R$ 100 bilhões do fundo do pré-sal — atualmente investido em saúde e educação. O projeto de construção de gasodutos, defendido por distribuidoras de gás, terceiriza ao Estado e à população os altíssimos investimentos decorrentes da inviabilidade de alguns trechos, podendo aumentar a tarifa de transmissão em 30% e a conta de luz em 5%.
O remédio para a crise é o colapso?
As grandes corporações vendem que precisamos aumentar o consumo de petróleo para reduzir as incertezas causadas pela crise climática. Limpam os países centrais dos problemas humanos e ambientais do capitalismo enquanto sujam os países periféricos. Eles nos fazem remessas de lixo, nós enviamos remessas de lucros.
Hoje, as decisões da nossa política energética são comandadas por acionistas e lobistas. A consequência? Demissões em massa, redução dos investimentos produtivos e violação dos limites ambientais. Essa receita sempre cria o mesmo bolo. A Vale privatizada poluiu o Rio Doce (MG) com metais pesados e Barcarena (PA) com fumaça de enxofre; a água de São Lourenço (MG)
privatizada secou uma fonte; o sal-gema privatizado afundou Maceió.
A questão não se resume à propriedade das mega obras. Mineradoras e hidrelétricas causam impactos socioambientais sejam ela construídas pelo Estado ou empresas privadas. Contudo, se pretendemos construir uma transição energética que nos permita sobreviver as próximas décadas, precisamos fortalecimento de estatais e de um modelo de gestão radicalmente distinto do imposto pelo neoliberalismo. Esse é – e deve ser – apenas o primeiro passo.
O que fazer?
É preciso recuperar a soberania da Petrobras e reestatizar as estatais privatizadas, como a Eletrobrás e Sabesp. Recuperar matas, descarbonizar a matriz energética e gerir recursos hídricos de maneira racional demandam uma política integrada.
Segundo a Federação Única dos Petroleiros (FUP), o petróleo deveria financiar a transição energética, mas não o petróleo da Shell, e sim o da Petrobras, a fim de descarbonizar a matriz energética. Ou seja, a Petrobrás deve financiar a obsolescência do petróleo com o dinheiro de petróleo. A FUP ainda propõe revitalizar a Petrobras Biocombustíveis, expandir a geração solar e eólica e investir em pesquisas para desenvolvimento do hidrogênio verde.
A retomada da Eletrobrás também é fundamental para a descarbonização da matriz energética. Não deveria ser o lucro de empresas privadas a pautar a escolha das fontes produtora de energia. As termelétricas não são necessárias para mitigar a imprevisibilidade energética causada pelo colapso climático.
Precisamos de boa gestão hídrica e diversificação energética verde.
O povo não quer energia suja e cara, quer soberania energética e maior poder de decisão sobre como e o que se produz. Assim, não basta lutar por estatais fortes, é necessário construir condições de participação popular nos espaços de decisão. É o que pede a luta contra a termelétrica de Caçapava, protagonizada por movimentos sociais e moradores do Vale do Paraíba paulista.
O mercado e o Estado não podem nos salvar do fim do mundo. O modelo de produção capitalista sempre colocará os lucros acima das vidas. Se nosso horizonte é uma sociedade justa e abundante, precisamos andar a passos largos. Precisamos de um projeto de transição ecossocialista que priorize a soberania energética popular.
*Beatriz é analista de Relações Internacionais, mestranda em América Latina, especialista em Geografia Agrária. É militante do coletivo Subverta/PSOL e da Frente Ambientalista do Vale do Paraíba.
**Editado por Wesley Lima