Internacionalismo

Artigo | Entre a ilusão e a esperança: as razões para o golpe no Chile em 1973

Não podemos esquecer que antes mesmo de tomar posse, Allende já era alvo dos Estados Unidos. Foto: Reprodução/AFP

Por Giovani del Prete*
Da Página do MST

Neste mês de setembro de 2024, que marca os 51 anos do golpe contra a Unidade Popular (UP) e da morte do presidente Salvador Allende, temos muito o que aprender com a experiência histórica do primeiro governo socialista eleito no mundo. São muitas as razões que explicam tanto o triunfo e o apoio popular ao projeto da UP. Igualmente, foram muitas as sabotagens – internas e externas – que incendiaram as ruas do Chile naquele 11 de setembro de 1973, impactando não só o povo chileno, como também todo o projeto terceiro mundista, da América Latina à Ásia.

Salvador Allende era médico de formação, de uma família da alta classe média chilena e, acima de tudo, um militante socialista. Em 1933, é um dos fundadores do Partido Socialista do Chile, em 1937 é eleito deputado, em 1939 é nomeado para chefiar o ministério da saúde do governo de Aguirre Cerda e a partir de 1952 concorreu à presidência do país para ser eleito na quarta tentativa, em 1970, com um pouco mais de 36% dos votos. Durante toda esta trajetória, Allende publicou livros, implementou políticas e lutou para garantir vida digna ao povo chileno, entendendo que não haveria condições de melhorar a saúde da população se não houvesse a superação da desigualdade social no país.

Em apenas 6 meses de governo Allende, foi reduzida de 60% para 8% a porcentagem de crianças hospitalizadas por desnutrição, fruto da política de fornecimento de meio litro de leite ao dia para as crianças nas escolas. Em 1971, o governo socialista lidera uma votação de emenda constitucional, que é aprovada de forma unânime no Parlamento, pela nacionalização e estatização do cobre, elemento crucial para o desenvolvimento da economia chilena e que até então contava com o domínio de capitais estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos.

Não faltam exemplos que evidenciam o corte humanista e revolucionário deste governo. 

O caso da arte e da cultura também foram elementos indispensáveis para o aprofundamento das transformações em curso, colocando o povo trabalhador e os mapuches no centro da história nacional, destacando a importância do povo para a construção do porvenir socialista que estava em pleno desenvolvimento. Só o projeto editorial Quimantú – que significa “sol do conhecimento”, em língua mapuche – foi responsável pela produção e distribuição de 12 milhões de livros e revistas, dos mais variados gêneros (esporte, infantil, cultura, política, etc), para um país que na época tinha cerca de 9,8 milhões de habitantes.

Sem sombra de dúvidas, outro legado fantástico de todo este processo é o movimento sociocultural Nueva Canción Chilena, que tem suas raízes nos anos 1950 com Violeta Parra e na força da Revolução Cubana, como um referencial de afirmação da cultura popular e de um novo mundo, mais justo e solidário. Em outros países, este movimento inspirou tantos outros, como na Argentina (Nuevo Cancionero), Brasil (MPB) e Cuba (Trova).

Em termos táticos, diferentemente do que foi a Revolução Cubana, Chinesa ou Bolchevique, a via chilena para o socialismo se caracterizava pela tentativa de provar a viabilidade de não ter que recorrer às armas, mas sim desenvolver uma forma pacífica de construção do socialismo, através de uma maioria política que aprovava reformas estruturais que gradualmente iam substituindo políticas pró capitalistas pelas políticas aqui já mencionadas. Ainda que contasse com muito apoio popular e, exatamente por isso também, o golpe no Chile revela a intransigência das classes dominantes e do imperialismo estadunidense com qualquer projeto político que não seja o fortalecimento do imperialismo.

O golpe em 1973 foi dado precisamente porque a direita e os Estados Unidos sabiam que nas eleições de 1976 eles perderiam novamente para a UP. Não podemos esquecer que antes mesmo de tomar posse, Allende já era alvo dos Estados Unidos. Como mostram as dezenas de milhares de arquivos secretos que foram publicizados décadas depois, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, havia dado ordens ao seu embaixador no Chile para impedir a posse de Allende, para “fazer nada menos do que uma ação do tipo dominicano”. 

Isso significava repetir o modus operandi na República Dominicana, que foi invadida pelos EUA em 1965 para derrubar o governo eleito de Juan Bosh e, na sequência, instalar o governo de Joaquin Balager, um grande amigo de Washington. Os Pinochet FIles mostram o fulminante apoio de Henry Kissinger à ditadura chilena. Como Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança da Casa Branca, Kissinger foi o maior advogado da ditadura, tratando de garantir o fornecimento de milhões de dólares e equipamentos militares para Pinochet. Quando questionado por seu apoio a um governo que cometia flagrantes violações de direitos humanos, Kissinger respondeu que “devemos entender nossa política de que, por mais desagradável que seja sua atuação, o governo [de Pinochet] é melhor para nós do que Allende foi”.

Portanto, houve uma unidade entre as forças golpistas, internas e externas ao Chile, para derrotar a via pacífica de construção do socialismo, como também para golpear fortemente a América Latina e o Terceiro Mundo, enfraquecendo o projeto da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). 

A NOEI é uma proposta encabeçada pelos países do Terceiro Mundo e liderada pelo economista Raúl Prebisch, reunindo o chamado Movimento dos Países Não Alinhados, para reestruturar o sistema econômico internacional com a ruptura das relações neocoloniais entre os países do Norte e Sul global. Cabe aqui recuperar o estudo publicado pelo Instituto Tricontinental sobre o golpe no Terceiro Mundo que representou a imposição da ditadura chilena.

Nos anos 1970, cerca de 60% da produção mundial de cobre estava concentrada nas mãos de um conjunto de seis empresas com sede nos Estados Unidos, Inglaterra e Bélgica. A nacionalização e estatização do cobre no Chile representava uma dessas políticas propostas no bojo da NOEI, pois ela também figurava como uma das políticas de fortalecimento e emancipação econômica e política dos países do Terceiro Mundo.

Além do triunfo dos socialistas chilenos, o imperialismo estadunidense também amargou derrotas importantes em outras partes do Terceiro Mundo neste período. Como com a Guerra no Vietnã e o avanço do internacionalismo proletário da Revolução Cubana, que fortalecia os processos de libertação nacional em Angola e Moçambique e as lutas para derrotar o apartheid na África do Sul com a Operação Carlota. Ou seja, aqui entendemos a dimensão internacional e imperialista do golpe no Chile, pois o projeto socialista da UP atacava precisamente os interesses de uma poderosa burguesia em um contexto de acúmulo de forças do campo socialista e terceiro mundista. 

Traindo o povo chileno, em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet foi o responsável direto pela morte de Allende e liderou o golpe que bombardeou o palácio presidencial, colocou tanques nas ruas, perseguiu, torturou e assassinou chilenos durante os 17 anos em que esteve no comando do país, além de prestar contas aos seus chefes do Norte. 

Afinal, com o apoio da burguesia chilena e do imperialismo estadunidense, a ditadura de Pinochet desmantelou todas as políticas desenvolvidas pelo governo da UP e tratou de empregar os economistas egressos das universidades estadunidenses, colocando no centro das decisões econômicas do país os Chicago Boys e outros seguidores de Milton Friedman. Ou seja, de um governo socialista que concretizava a marcha para a transformação e afirmação do povo chileno como dono de seu próprio destino, o Chile foi submetido à terapia de choque para, violentamente, ser convertido em um laboratório do neoliberalismo.

Regionalmente, o 11 de setembro de 1973 também marcou um aprofundamento do intercâmbio e articulação entre as várias ditaduras militares em curso na América do Sul. Sob o contexto da Guerra Fria e orientadas ideologicamente pela Doutrina de Segurança Nacional dos Estado Unidos, as ditaduras no Paraguai (1954), no Brasil (1964), na Bolívia (1971), no Uruguai (1973), no Chile (1973) e na Argentina (1976) organizaram um esquema de colaboração e trocas de informação entre os países. De novas técnicas de tortura ao fornecimento de informações estratégicas para a repressão continental, o chamado Plano Condor materializou esta cooperação entre os distintos regimes autoritários e subordinados ao imperialismo – da CIA, Mossad, MI5, etc –, os quais são responsáveis por crimes contra a Humanidade.

Com o objetivo de extrair algumas lições deste potente processo de construção do socialismo no Chile e analisando, politicamente, os desafios e oportunidades atuais de nossa região, há um arsenal de elementos que seguem vigentes para o acúmulo de força anti-imperialista e socialista em Nuestra América. Primeiro, há que se destacar a importância do compromisso com o povo, em lutar por reformas socialistas que garantam os direitos básicos, os Direitos Humanos à classe trabalhadora.

Segundo, é imprescindível o fortalecimento da integração latino americana e caribenha para criar as condições de desenvolvimento e soberania dos nossos países. Temos muito trabalho pela frente para promover esta unidade continental, principalmente no que diz respeito à construção de laços de amizade, de solidariedade, de cooperação e de lutas entre as organizações populares (entre partidos, movimentos populares e sindicatos). 

E, terceiro, que não podemos alimentar expectativas de que as Forças Armadas, que são doutrinadas pelos manuais elaborados nos Estados Unidos, terão um inequívoco compromisso democrático. É um desafio vivíssimo para a maior parte dos governos da região este tema da “questão militar”, com expressivos setores do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e, inclusive, das polícias estaduais sendo militantes da direita ou extrema-direita. A união cívico-militar na Venezuela é um exemplo de como é fundamental o aprofundamento de uma cultura democrática nas forças de segurança do Estado para defender a pátria e respeitar a soberania popular.

Acumular forças, dentro e fora de nossos países, a partir de uma unidade popular em torno de políticas socialistas, esta é a grande tarefa que a história segue nos convocando.

*Giovani del Prete é militante do Movimento Brasil Popular e membro da Secretaria Continental da ALBA Movimentos

**Editado por Fernanda Alcântara