Entrevista

“O Ministério Público tem que sair dos seus gabinetes para escutar as pessoas”

Membro do Ministério Público Federal defende atuação focada nas demandas de grupos sociais mais vulneráveis

 José Godoy Bezerra de Souza. Foto: Rawide Hícaro

Do Jornal A União

O procurador da República José Godoy Bezerra de Souza atua no Ministério Público Federal na Paraíba (MPF-PB) há 16 anos. Natural de Pernambuco, de uma família de agricultores, sua experiência no órgão da Justiça é marcada pela defesa de direitos humanos, junto a diversas populações, como indígenas, quilombolas, ciganos e comunidades periféricas e ribeirinhas. O impacto de sua atuação levou ao seu reconhecimento como cidadão paraibano e de diversas outras cidades do estado. Em entrevista ao Jornal A União, o membro do MPF conta sobre sua trajetória e comenta temas como reforma agrária e o avanço da extrema direita no Brasil.

Como deve ser a atuação do Ministério Público Federal na defesa dos direitos humanos?

Essa é uma atuação bastante inovadora no Brasil e até no mundo. O Ministério Público (MP), historicamente, tem a função de processar criminalmente as pessoas, mas também está atuando na defesa dos direitos humanos. E isso é bastante inovador no Brasil, porque não só é a primeira vez que a gente tem o MP com essa atribuição; é a primeira vez que a gente tem uma Constituição com direitos humanos, especialmente de segunda geração. Esses são os direitos sociais, em que é preciso o Estado fazer uma ação para que o direito seja efetivado. Por exemplo, para o direito de ir e vir, basta que o Estado não prenda as pessoas. Mas, para o direito à moradia, precisa-se construir uma casa; para o direito à saúde, precisa-se de uma rede hospitalar, e por aí vai. Então, eu diria que, hoje, o Ministério Público tem uma expertise muito grande na área criminal, mas, quando vai atuar na defesa dos direitos assegurados na Constituição, nós temos uma dificuldade, por falta de produção de conhecimento e de experiências históricas. De minha parca experiência, de 16 anos atuando no MPF, eu vejo que é essencial a gente entender que nós estamos defendendo o direito de outrem. Existe um titular, um dono do direito, que não é nem o Ministério Público, muito menos o membro do Ministério Público. Então, se eu vou defender o direito de outra pessoa, como a moradia de uma comunidade periférica, tenho que ser alguém que dialoga com aquela comunidade. Assim, o Ministério Público tem que abrir suas portas ou sair dos seus gabinetes para escutar as pessoas. O nosso desafio atual é porque a instituição vem no caminho inverso. Como o MPF é um órgão do sistema de Justiça, ele buscou parecer o máximo com o Judiciário e se encastelar o máximo possível, ficando longe da sociedade. Isso é o contrário do que deveria ser.

O senhor tem uma trajetória no movimento social rural e uma experiência como agricultor. Como isso influenciou sua atuação no MPF, especialmente na defesa dessas comunidades tradicionais?

Eu sou filho de agricultores familiares e fui agricultor familiar até os 20 anos de idade. Depois, saí e atuei em trabalhos informais, principalmente como ambulante, até entrar em um trabalho formal, como bancário, em dois bancos públicos. Só depois de muitos anos, eu entrei no MPF. E o tempo de universidade, a formação do Direito e toda a preparação para os concursos fazem com que a gente busque uma linguagem parecida com a do Direito, como os trejeitos e o olhar, até para que a gente se sinta pertencente àquele novo grupo a que a gente faz parte. Então, eu cheguei ao concurso de procurador da República tentando performar o procurador da República e levei um tempo até buscar minhas origens. Mas é muito mais fácil o caminho de volta. Dialogar com as comunidades, para quem viveu nelas e sabe um pouco das dificuldades, é um pouco mais fácil do que para quem tem uma trajetória inteira na classe média alta. E eu trabalho com a perspectiva de como me vestir, como me portar, em movimentos corporais, como falar, como escutar. São testes necessários para que as pessoas se sintam à vontade, tragam seus problemas, e a gente possa discutir, de modo que elas se sintam realmente no plano horizontal, porque é assim que tem que ser.

Que outros desafios o senhor encontra na defesa dessas comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas?

Defender essas comunidades é visto como uma tarefa “bonitinha”. Mas, a expectativa do grupo dominante hegemônico é que o membro do Ministério Público ou da Defensoria Pública que dialoga com essas comunidades seja um porta-voz da elite para elas, alguém que vai ganhar a confiança delas para convencê-las a fazer ou a não fazer aquilo que interessa para a classe dominante. E quase todo membro do Ministério Público que eu conheço aceitou esse papel de ser um porta-voz, alguém que chega e os convence a não fechar uma estrada; alguém que, quando eles estão muito irritados, diz: “Olha, não faça isso”; alguém que é escutado pelos grupos vulneráveis e, por isso, usa esse trânsito para acalmar o grupo e manter tudo como está. Quando você deixa de fazer esse papel e realmente escuta de verdade o grupo vulnerável, passa a ser uma pessoa indesejada, porque um grupo dominante não aceita nada além de tudo. Então, só pelo fato de você chegar numa reunião e dizer: “Esse grupo vai falar e eu quero que ele seja ouvido”, já é considerado radical, uma pessoa de uma ousadia absolutamente abominável. E o ódio que se tem das classes vulneráveis é transferido para você. Esse é o grau de dificuldade que a gente enfrenta.

Na sua dissertação de mestrado, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o senhor estudou conflitos fundiários coletivos no sistema de Justiça Federal da Paraíba. Baseado nessa pesquisa e na sua experiência no MPF, como vê a temática da reforma agrária no Brasil?

A reforma agrária é uma questão absolutamente necessária e existencial, mesmo porque não é só no campo que as famílias estão sendo vilipendiadas e expulsas, é na cidade também. Na minha dissertação de mestrado, eu falo sobre o que chamo de “Teoria do enxotamento”: sempre que algum lugar é valorizado, as famílias são expulsas para outro, e chega a um ponto em que não há mais lugar para elas. E, hoje, a gente vive esse caminhar. No campo, a disparada das commodities, como cana-de-açúcar, soja e outras, fez com que se buscassem todas as áreas possíveis e imagináveis para plantar essas monoculturas, retirando as comunidades, inclusive das áreas para reforma agrária. No Semiárido, a corrida pelas energias, de uma forma absolutamente distante da realidade dessa população, fez outra corrida de expulsar as pessoas para as pequenas cidades, que não as comportam. No Litoral, vem a especulação imobiliária e o turismo avançando em massa. Isso fez um negócio interessante, que eu chamo de quebra do pacto intergeracional. Você encontra comunidades que diziam: “O avô dele disse que a gente podia ficar aqui, e a gente está aqui há 50 anos”. Mas, agora, o neto chegou lá e disse: “A gente vai ter que sair”. Então, há um “espremer” desses grupos. Não há um espaço para as pessoas pobres viverem, porque todos os lugares ficaram valorizados. E [isso afeta] mais do que a dignidade humana, mas a existência, porque, para você existir na Terra, como ser humano, precisa de um lugar para dormir, para circular. Mas as cidades precisam estar limpas, lindas — e precisam tirar as pessoas, porque elas as enfeiam. Não existe um projeto que diga: “Vamos fazer a partir dessas pessoas que estão aqui”. A Vila de Tambaú, em João Pessoa, era uma vila de pescadores, que foram expulsos para formar a comunidade de São José. Os mais velhos viraram alcoólatras e formaram um bloco de pessoas que perderam seu contato com o mar, e os mais jovens foram ficando e usando outras drogas. A reforma agrária é uma política que requer custos. Requer você adquirir uma terra e criar a estrutura para as pessoas viverem lá. E a reforma se tornou impossível de acontecer no Brasil.

Por quê?

Tinha sido criada uma Constituição com direitos, que é a de 1988, com a população participando e dizendo que quer esses direitos. Mas, no início da década de 1990, vêm dois presidentes neoliberais, o Fernando Collor e o Fernando Henrique [Cardoso], que adotam o estado mínimo e dizem: “Vamos destruir o Estado, porque o Estado não é bom, e vamos diminuir tributos”. Mas o Estado é o único capaz de criar esses direitos. Só que Fernando Henrique fez um pacto com a elite para conter a inflação. A elite brasileira lucrava muito com os chamados overnights: com a inflação galopante, o dinheiro nunca parava e ela ia explorando os mais pobres. Qual pacto aconteceu? Foi o de dizer: “Vocês param de lucrar com o overnight, com essa especulação no mercado através da inflação, e vão lucrar com o Estado. Eu vou dar os recursos estatais para vocês”. E o que aconteceu a partir dali? Um processo em que se controla a inflação por meio da alta dos juros. Em 2024, nós tivemos juros entre 13% e 14% ao ano e inflação de 4%, ou seja, houve de 8% a 9% de gap, com [a elite] lucrando em cima do Estado. Isso foi uma transferência de R$ 960 bilhões do dinheiro do povo brasileiro para essa elite. Sem esses recursos, o Estado não consegue fazer a reforma agrária, e nós condenamos a nossa população à pobreza.

O senhor teve uma atuação vasta na área da Saúde, inclusive com a defesa do uso medicinal da maconha. No período em que esteve envolvido nas ações judiciais, entre 2014 e 2016, quais foram os principais obstáculos enfrentados na luta para legalizar o acesso aos medicamentos à base de cannabis na Paraíba?

O [principal foi o] preconceito, que, hoje, está cada vez mais forte. A extrema direita resolveu fazer a política de criar grupos de ódio; inclusive, várias vezes, os pais que tinham seus filhos e que precisavam da maconha para o uso eram taxados como maconheiros, traficantes etc. Quando a gente entrou com a primeira ação aqui, em 2014, falou-se: “O Ministério Público está defendendo o uso da maconha”. Hoje, quebrou-se bastante isso, mas, mesmo assim, a extrema direita continua dentro do Congresso Nacional e da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], barrando os avanços. Mas, não é só o preconceito, é o preconceito e a necessidade. Porque a extrema direita trabalha com a política da violência, de criar inimigos, e as pessoas que precisam da maconha para fins medicinais também são inimigos deles. Assim, uma das bandeiras desse grupo político, para ter votos, foi essa. Eles travaram, dentro do Congresso Nacional, a aprovação de leis razoáveis, e, dentro da Anvisa, a aprovação de regulamentações aceitáveis. Quem vem conseguindo vencer essa batalha é o Judiciário, criando decisões que permitem às pessoas usarem.

Como esse fortalecimento dos grupos de extrema direita interfere na atuação do Ministério Público e na defesa dos direitos humanos?

Em primeiro lugar, a gente precisa compreender por que a extrema direita cresce tanto. Ela cresce porque o neoliberalismo, instalado a partir da década de 1990, fez com que o Estado de Direito prometido em 1988 se tornasse um sonho impossível. Sem sonhos, as pessoas perdem a esperança e, sem a esperança, elas recorrem ao que melhor lhe aparecer. E apareceu a extrema direita, diante desse processo brutal de exploração do povo brasileiro, em que nós temos que trabalhar de sol a sol para que os super-ricos possam andar de foguete fora da atmosfera. Então, para a extrema direita, os culpados são os negros, as mulheres, a população LGBTQIAPNb+, a população indígena e todos os grupos que eles chamaram de identitários. Aí ficou fácil de trazer o povo para eles, porque a população não tem esperança. Que esperança você vai dar para qualquer cidadão brasileiro, sabendo que, ao fim de 2025, nós vamos pagar R$ 1 trilhão de juros para 0,1% da população brasileira? Mas atuar dentro da extrema direita é um processo muito duro. Eu costumava brincar que [o Governo Bolsonaro] era um período de depressão. Todos os órgãos eram contra órgãos. A Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], que deveria trabalhar pelos indígenas, colocava pessoas que odiavam e perseguiam os indígenas. O Meio Ambiente tinha um ministro que dizia: “Vamos passar a boiada”. O [ministro] da Saúde era contra vacinas. Então, você lidava com um processo da existência da destruição. Era um período depressivo, você ia ajuizando a ação, tentava conseguir uma liminar… Mas aqui, minimamente, o meu trabalho sempre foi buscar parcerias com os órgãos públicos, buscar caminhos, sempre respeitando muito, porque os órgãos públicos são a referência da democracia, especialmente os eleitos, então eu tenho que legitimar quem passou pelo voto. Inclusive, um dos desafios do Ministério Público, na atuação de direitos humanos, é entender que a gente não é o protagonista. Os protagonistas são os donos do direito e o [representante] eleito, enquanto a gente é o intermediário que busca o melhor caminho de negociar. Mas, como você vai negociar diante de órgãos que existem exatamente para destruir?

O senhor coordenou a campanha Leite Fraterno, junto com a UFPB e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), durante a pandemia de Covid-19. Como essa iniciativa ajudou a combater a fome e a vulnerabilidade social na Paraíba?

Aquilo dali foi pelo desespero mesmo, da gente entendendo que tinha que fazer alguma coisa — e até saía um pouco das nossas atribuições. De um lado, eu tinha o desespero dos produtores, que, com a pandemia, não conseguiam levar seus produtos para a feira e estavam perdendo esses produtos. Do outro lado, grupos e grupos estavam entrando em contato conosco, porque estavam com fome: as prostitutas, a população LGBTQIAPNb+, os quilombos, as periferias. E a gente fez um trabalho que foi muito bacana, com colaboração enorme de vários órgãos e de voluntários, como Iris Porto e Carol Andrade, que fez as artes. As pessoas doavam para a conta de uma associação e era distribuído o leite. Então, esses recursos faziam com que os agricultores que estavam passando fome escoassem seu produto e tivessem dinheiro para repor suas necessidades, e aí chegava leite na outra ponta. Eu tenho um carinho muito grande por aquela campanha e por todos que nos auxiliaram.