Modelo econômico que privilegia o agronegócio empurra a população para a fome, dizem pesquisadores
Incentivos fiscais, perdões de dívidas e créditos subsidiados têm produzido mais desigualdade e menos comida aos brasileiros, aponta estudo
Por Erick Gimenes,
de O joio e o trigo

Os privilégios econômicos concedidos pelo Estado brasileiro ao agronegócio empurram a população à fome e à miséria, aponta estudo publicado hoje, 18, conjuntamente pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e pela Fundação Friedrich Ebert Brasil (FES).
Os autores, Yamila Goldfarb e Marco Antonio Mitidiero Junior, defendem que o setor é um mau negócio para o país, à medida que drena muito dinheiro público e não gera contrapartidas significativas – ao contrário, aprofunda as desigualdades, destrói o meio ambiente e esgana a produção interna de comida.
O estudo dá continuidade ao debate iniciado pelos mesmos autores no artigo “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo”, publicado em 2021, no qual eles questionam qual é o real papel econômico e social do agronegócio para a sociedade brasileira.
Nas últimas décadas, o setor tem sido o principal beneficiário de isenções de impostos, créditos subsidiados e perdões de dívidas públicas, em um pacto que põe em risco o futuro do país, diz Goldfarb, em entrevista ao Joio. “É um modelo baseado em drenagem de recursos públicos, que não gera empregos, não desenvolve tecnologia interna e reforça a desigualdade de renda”, explica Goldfarb, presidenta da Abra e professora visitante da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Os privilégios são geralmente justificados com a propaganda de que o agronegócio sustenta o país economicamente. Os autores, no entanto, demonstram como a ideia é enganosa. O estudo aponta que, a agropecuária representa 7,9% do Produto Interno Bruto (PIB), 3% dos empregos formais da economia e paga menos de 1,5% da arrecadação total de tributos. “É o único setor que abocanha uma fatia dos benefícios tributários (13,5%) maior do que sua contribuição ao PIB”, pontuam no texto.

Outro aspecto que os autores apontam é o suposto sucesso do agronegócio, “com as vultosas toneladas em produção e os vultosos lucros nos últimos 20 anos. Mas essa é a aparência, mas não é a essência”, afirma Mitidiero, professor do departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Na realidade, explica, é o setor econômico que menos contribui com a produção de riqueza, em relação ao PIB “Se é o setor que menos contribui para o PIB e é que mais recebe recursos do Estado, algum problema tem”, conclui.
Uma das principais propagandas do setor, os números da balança comercial superavitária, é vista pelos pesquisadores como uma “cortina de fumaça”, porque não engloba todas as despesas com serviços e renda. Quando se leva em conta o saldo total das transações correntes com o exterior em 2024, por exemplo, houve déficit de US$ 56 bilhões em 2024, segundo dados do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial.
O número é parecido com os anos anteriores, também com registros deficitários, como é possível observar na tabela abaixo:

“O equilíbrio da balança comercial não representa um equilíbrio das contas externas. Fora isso, é feita às custas do meio ambiente. A gente devasta, avança fronteira agrícola, avança áreas de mineração em biomas importantíssimos, para produzir produtos que acabam exportados. Boa parte do lucro não fica no país”, afirma Goldfarb.
Mais commodity, menos comida
O incentivo à exportação de commodities tem transformado o campo e impulsionado o país a uma especialização “primário-exportadora”, classificam os pesquisadores. Ou seja, prioriza-se a produção de matérias-primas com pouco ou nenhum processamento.
Assim, os produtores deixam de plantar comida e se dedicam à produção de produtos para exportação, porque naturalmente gastam menos e lucram mais. A consequência é que faltam alimentos e os preços sobem.
“Isso se reflete de forma desigual na sociedade brasileira, porque as classes de menor renda vão buscando alternativas alimentares, como comprar produtos inferiores ou deixar de comer algum dos alimentos que tradicionalmente eles comiam. Gera fome e insuficiência alimentar”, explica Mitidiero.
Como exemplo das consequências do incentivo governamental à produção de commodities, Mitidiero cita o caso do arroz e do feijão, símbolos da cultura alimentar brasileira, cuja produção caiu. “O produtor de arroz e de feijão deixou de produzir para o mercado interno para produzir soja para exportação, porque a taxa de lucro é maior. Passamos a ter que comprar de fora. Para um território do tamanho do brasileiro, com a quantidade de terra farta, água e insolação para produzir comida, isso é uma vergonha”.
Goldfarb defende que o Estado mude o modelo econômico urgentemente, a fim de subsidiar a produção de alimentos, não a de produtos para o exterior. “A agricultura é um setor que deve ser subsidiado pelo Estado, justamente porque é um setor produtor de alimentos. O incentivo serve para garantir alimento barato. E quem produz alimento está em pequena e média propriedade. Ou seja, tem que existir um crédito voltado a essa realidade, assistência técnica e seguro agrícola adaptada a essa realidade”.
Ao usar o dinheiro público para beneficiar produtores rurais mais ricos, que produzem para o mercado externo, em detrimento dos produtores menores, que plantam grande parte do que chega à mesa dos brasileiros, o Estado cumpre um papel de “Robin Wood às avessas”, apontam os autores.
Uma das consequências ao se privilegiar recursos para os produtores do agro é o aumento da violência no campo , afirma Mitidiero. “Toda essa captura do Estado pelo agronegócio produz violência, porque é o setor em busca de mais terras, o que significa expulsar indígenas, quilombolas, camponeses, agricultores familiares, ribeirinhos. Os incentivos fiscais tensionam os conflitos no campo e, por isso, impulsionam a violência”.
O gráfico “distribuição dos planos safras pelo governo federal” exemplifica a estratégia Robin Hood às avessas, aponta o estudo. No Plano Safra (2023/2024), foram oferecidos 435 bilhões de reais em créditos, sendo 364 bilhões para o agronegócio e somente 71 bilhões para a agricultura familiar. “O questionamento é elementar: não deveriam receber mais crédito e em melhores condições os produtores voltados ao mercado interno de alimentos?”, pontuam os autores.

A solução: reforma agrária
A reforma agrária e a garantia de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais são o caminho para transformar o atual modelo econômico de privilégios, afirmam os pesquisadores. Só assim é que se pode garantir comida no prato.
“Precisamos de uma reforma agrária completa, que traga condições de ter um desenvolvimento soberano – ou seja, um desenvolvimento voltado para as necessidades e interesses do país, que respeite os territórios, que seja coerente com os biomas em que a distribuição de terras está inserida, que garanta direitos territoriais”, diz Goldfarb.
A perspectiva, no entanto, é ruim, diz ela. “O que vemos é um projeto político que só aprofunda o extrativismo agrícola e minerário. Isso está avançando sobre os territórios produtores de alimentos e protetores do meio ambiente, sobre as terras devolutas, sobre terras públicas. Infelizmente, vivemos um momento rumo a um ‘agrofundamentalismo’, em que as pessoas não questionam esse modelo e quem questiona é recebido com violência. A perspectiva é das piores”.
Os autores reforçam o pessimismo na última frase do estudo: “O Brasil parece reproduzir a fábula do escorpião e da tartaruga ao carregar o agronegócio nas costas. O escorpião pede que a tartaruga nele confie e o ajude a atravessar o rio, mas é da sua natureza dar a ferroada, inclusive em quem o está ajudando.”