Política Mundial
BRICS: de sigla de mercado a bloco político que redesenha a ordem global
Com expansão recente e mecanismos financeiros próprios, o grupo consolida-se como contraponto à hegemonia ocidental e à supremacia do dólar

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Em 2001, o economista Jim O’Neill, então no banco Goldman Sachs, publicou um relatório que viria a marcar o início de uma nova percepção sobre o peso econômico global. Naquele documento, O’Neill destacava quatro potências emergentes — Brasil, Rússia, Índia e China — agrupando-as em uma sigla simples, mas poderosa: o BRIC. Essa sigla era pensada para chamar a atenção de investidores, sem qualquer intenção de se tornar uma diretriz política oficial.
No entanto, o que era apenas um marco analítico logo transcendeu suas origens. Os próprios países, atentos ao simbolismo da sigla, começaram a se reconhecer como parte de um mesmo movimento, e em 2006, à margem da Assembleia Geral da ONU, seus chanceleres protagonizaram o primeiro encontro oficial do grupo.
O caminho para uma união mais sólida, porém, ainda estava por ser trilhado. Em 2009, os líderes das quatro nações se reuniram em Ecaterimburgo, na Rússia, em um encontro que simbolizou o início da institucionalização do bloco. No ano seguinte, a adesão da África do Sul ampliou o grupo para cinco membros e fortaleceu a ideia de que o BRICS já não era mais uma simples coincidência estatística, mas o embrião de um projeto político com ambições globais claras.

Esse bloco emergiu em um momento de desgaste do sistema de governança internacional estabelecido após a Segunda Guerra Mundial, especialmente das instituições de Bretton Woods, criadas em 1944 para fomentar a cooperação econômica global. No centro desse sistema estão o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. O FMI, com sua missão de garantir a estabilidade do sistema monetário internacional, combina assistência financeira a aconselhamento econômico, enquanto o Banco Mundial se dedica à redução da pobreza e ao desenvolvimento, sobretudo por meio do financiamento de grandes projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento.
Paulo Nogueira Jr., que durante oito anos foi diretor executivo do FMI representando o Brasil e outras nações em Washington, conhece de perto a dificuldade de transformar esse sistema. O economista esteve no Curso de Formação BRICS e relata que essas instituições tinham muita dificuldade para se adaptar. Embora tenha havido algum progresso desde a crise global de 2008, ele diz acreditar que ainda é um avanço tímido diante das necessidades do século XXI.
Por sua vez, os Estados Unidos entendiam que a legitimidade e a relevância do FMI dependiam de uma reforma estrutural, que adaptasse a governança do fundo à nova realidade econômica global. Naquele cenário, países emergentes e em desenvolvimento, especialmente da Ásia, cresciam numa velocidade inédita e exigiam maior participação e influência. Assim, a reforma do FMI passou a ser uma das principais bandeiras desse grupo, e o BRICS pressionava para que a distribuição de votos refletisse mais devidamente o novo mapa econômico.
A contestação da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos está presente nas discussões sobre a origem do BRICS e, principalmente, desta nova ordem mundial. O professor Mauricio Metri, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também destacou em debate na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que desde o fim da Guerra Fria a hegemonia ocidental foi sustentada não apenas por valores políticos e econômicos, mas também pela expansão militar e a supremacia do dólar.
“Os cinco diretores executivos dos BRICS no FMI começaram a se reunir com muito mais frequência, buscando coordenar posições sobre os temas em pauta na diretoria e as nossas iniciativas”, relata Paulo Nogueira Jr., em seu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém. Para ele, cada avanço desse grupo exigia meticulosa preparação e articulação, revelando que o BRICS não era apenas um conceito econômico, mas um movimento estratégico de negociação global.
Fortaleza, 2014: uma nova perspectiva

O avanço mais tangível da cooperação entre o BRICS aconteceu em 2014, durante a cúpula realizada em Fortaleza, Brasil. Foi ali que os países lançaram o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado para financiar projetos de infraestrutura e promover o desenvolvimento sustentável. Paralelamente, surgiu o Arranjo Contingente de Reservas (ACR), um mecanismo de apoio mútuo destinado a enfrentar momentos de instabilidade cambial.
Segundo Paulo Nogueira Jr., o significado dessas iniciativas pode ser resumido na ideia de que foi dado um passo importante em direção a um mundo mais multipolar. Segundo ele, apesar das diferenças econômicas, políticas e históricas, os onze países que compõem o BRICS atualmente (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã) compartilham características em comum: são economias emergentes de grande porte econômico, territorial e populacional, com capacidade de atuar de forma autônoma — algo que não ocorre com a maioria das demais nações em desenvolvimento ou de economia emergente.
“No governo Dilma, a atuação conjunta com os demais BRICS tornou-se uma das principais vertentes da política externa brasileira. Isso culminou na cúpula dos BRICS em Fortaleza, em julho de 2014, quando foram assinados os acordos que estabeleceram o ACR e o NBD. Esses dois mecanismos são complementares às instituições multilaterais de Washington e podem inclusive cooperar com elas. Mas foram concebidos para serem autoadministrados e atuar de forma independente”, recorda Nogueira Jr.
O encontro, ocorrido em Brasília, também marcou um momento inédito: a reunião dos líderes dos BRICS com 11 presidentes da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Este acontecimento seguiu-se ao anúncio feito em Fortaleza sobre a criação do NBD, dotado inicialmente de um capital de US$ 50 bilhões, com o objetivo de apoiar projetos de infraestrutura em economias emergentes, estendendo suas ações para além dos próprios países-membros.
Com o passar do tempo, a atuação do BRICS ganhou amplitude. Além das tradicionais cúpulas anuais, passaram a ocorrer diversos fóruns ministeriais e encontros setoriais, ampliando a agenda para questões como comércio, inovação tecnológica, segurança, saúde e meio ambiente. Em um contexto histórico marcado por um vazio diplomático percebido na política externa dos Estados Unidos durante o governo Obama, os BRICS buscaram firmar novas bases de apoio político e econômico na região, tradicionalmente sob forte influência norte-americana.
Expansão pelo mundo
Dentre os gestos simbólicos e práticos desta cooperação financeira, o fundo de reservas do BRICS, criado como mecanismo de solidariedade preventiva, representa uma ferramenta importante para os momentos de dificuldade entre os países do grupo. Com reservas combinadas que ultrapassam os US$ 4 trilhões, os onze membros dispõem de uma base financeira robusta para dar respaldo a essa iniciativa, reforçando a capacidade de enfrentar crises com união e autonomia.
Em 1º de janeiro de 2024, o Egito, juntamente com Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos, formalmente se tornaram membros do BRICS, que já passava por mudanças e discussões significativas nos últimos anos para adotar um processo gradual de expansão. Posteriormente, em 6 de janeiro de 2025, a Indonésia também ingressou oficialmente, consolidando a expansão do grupo e reforçando sua estratégia de ampliar a representatividade no cenário internacional. Além de abrir espaço para novos países-membros, o grupo também passou a incluir nações convidadas como ouvintes em suas cúpulas, sinalizando a intenção de ampliar sua influência geopolítica e econômica.
Esse movimento reflete até hoje a busca por maior representatividade no cenário internacional e pela construção de alternativas à ordem global dominada pelas potências ocidentais, mas não eliminou desafios internos. A China ainda é a potência majoritária no bloco, levantando críticas sobre a assimetria comercial e o risco de reprimarização das economias parceiras.
A principal dificuldade interna de coordenação dos BRICS é o peso desproporcional da China quando comparado ao dos demais países. Os chineses têm porte e recursos para, em alguns casos, enxergarem vantagens em negociar separadamente com os americanos e os europeus. Entendimentos entre Brasil, Rússia e Índia funcionam às vezes como contrapeso à inclinação da China de atuar em faixa própria”.
– Paulo Nogueira Jr., O Brasil não cabe no quintal dos outros (Ed. Leya, 2019).
O contraponto à hegemonia dos EUA

“O que o BRICS têm em comum? Para além de todas as diferenças, fundamentalmente o seguinte: são países de grande dimensão econômica, geográfica e populacional.” Essas palavras de Paulo Nogueira Jr. são a essência do grupo, que, apesar da diversidade, compartilham características poderosas que moldam seu papel no cenário global.
Metri explicou que o custo da expansão global dos EUA é pago pelo resto do mundo. Isso acontece porque o dólar é a moeda dominante, imposta a todos, e a capacidade dos EUA de se endividarem está diretamente ligada à sua política externa. “Para os EUA, esse endividamento não é sinal de fraqueza como em outros países, mas sinal de poder.” Essa lógica econômica, segundo o professor Metri, conecta-se diretamente a conflitos contemporâneos, como os pacotes bilionários de apoio à Ucrânia, Taiwan e Israel. “Não é difícil conectar a barbárie em Gaza com a capacidade de gasto do Estado americano”, completou, ressaltando como decisões financeiras globais reverberam em crises profundas.
No que diz respeito à soberania, o BRICS adota um princípio claro de respeito à autodeterminação dos Estados-membros. Antônio Freitas, Subsecretário de Finanças Internacionais e Cooperação Econômica do Ministério da Fazenda, ressaltou que, apesar das diferentes inclinações políticas, especialmente em relação ao Brasil, o grupo mantém o respeito à soberania como valor fundamental.
Uma das prioridades do Brasil foi promover uma melhor integração dos novos países membros do BRICS. Isso incluiu a definição de mecanismos para a rotação das presidências e a criação de diversos itens que contribuem para uma institucionalidade ainda incipiente do grupo. Embora essa institucionalidade possa ser aprimorada, é importante reconhecer que existem diferentes visões dentro do BRICS, inclusive sobre o que o grupo pode se tornar”.
– Antônio Freitas
Estes esforços também dizem muito sobre tensões comerciais entre os Estados Unidos e os países do BRICS, que ganharam um novo capítulo durante a administração do segundo mandato do presidente estadunidense Donald Trump, quando o mesmo impôs tarifas elevadas sobre produtos brasileiros e de outras nações do bloco na mesma semana em que o BRICS se reuniu no Rio de Janeiro, em julho deste ano.
As medidas deixaram clara a resistência americana ao crescimento econômico desses países, reforçando a percepção de que a ordem internacional tradicional estava sendo desafiada não apenas no campo diplomático, mas também nas práticas comerciais. Para os BRICS, as tarifas foram um lembrete da necessidade de buscar alternativas econômicas que reduzissem a dependência do mercado e das políticas americanas.
Esse cenário acentuou a importância da cooperação financeira e política dentro do grupo, fortalecendo iniciativas já consolidadas como o Novo Banco de Desenvolvimento e o fundo comum de reservas. Ao criar mecanismos próprios para enfrentar crises e estimular investimentos, o BRICS passam a construir uma rede de apoio que funciona como contraponto às ações protecionistas e restritivas externas. A imposição de tarifas por Trump, portanto, evidenciou as fragilidades do sistema atual e impulsionou o bloco a acelerar sua busca por maior autonomia e por um espaço mais influente no tabuleiro global.

Outra amostra foi a nota publicada nesta segunda-feira (8 de setembro), por iniciativa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no exercício da Presidência do bloco. O comunicado fala sobre uma Reunião Virtual de Líderes, em que o grupo “reafirmou seu compromisso com a preservação e o fortalecimento do multilateralismo, bem como com a reforma das instituições internacionais.” Além disso, os países fizeram “um balanço abrangente da atual situação mundial” e houve “consenso sobre a necessidade de avançar rumo a uma ordem internacional mais justa, equilibrada e inclusiva, capaz de refletir as transformações em curso e responder de maneira mais eficaz às demandas do Sul Global.”
Segundo a nota oficial divulgada pela Presidência do Brasil, a reunião proporcionou também um espaço para a troca de visões sobre como enfrentar “os riscos associados ao recrudescimento de medidas unilaterais, inclusive no comércio internacional,” além de discutir maneiras de ampliar os “mecanismos de solidariedade, coordenação e comércio entre os países do BRICS.” A nota destaca ainda que o encontro serviu de preparação para importantes eventos internacionais, como a 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, a COP-30 e a Cúpula de Líderes do G20.
Os participantes, que incluíram líderes da China, Egito, Indonésia, Irã, Rússia, África do Sul, o príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos, o chanceler da Índia e o Vice-Ministro das Relações Exteriores da Etiópia, reafirmaram o empenho do agrupamento em “contribuir ativamente para a paz, para a defesa do multilateralismo e para a construção de soluções coletivas para os desafios globais.”
Novos dilemas
Quando falamos de BRICS e poder econômico, a palavra “desdolarização” inevitavelmente se tornada um ponto nas discussões econômicas globais, impulsionada sobretudo por potências emergentes como Rússia e China. A ideia está na busca para reduzir a dependência das transações comerciais e financeiras internacionais frente à volatilidade e ao poder de influência conferidos ao dólar americano. Para os países do Sul Global, diminuir o uso do dólar significa recuperar espaço de manobra política e econômica, protegendo-se de sanções e pressões externas que frequentemente acompanham a hegemonia da moeda norte-americana. No âmbito do BRICS, a desdolarização é vista não apenas como uma estratégia de diversificação cambial, mas também como um passo rumo a uma arquitetura financeira mais plural e representativa.

A ideia de criar uma moeda comum do BRICS surge como uma extensão natural desse debate, prometendo facilitar o comércio intrabloco, reduzir custos de câmbio e consolidar a identidade econômica do agrupamento. Contudo, apesar do apelo estratégico, essa proposta enfrenta obstáculos substanciais: estruturas financeiras heterogêneas, níveis divergentes de desenvolvimento econômico, riscos de instabilidade e a falta de garantias robustas de governança compartilhada. Dessa forma, ainda que uma moeda única do BRICS seja tema de estudo e de especulação acadêmica, não se configura como um plano factível em um horizonte de curto ou médio prazo.
Um aspecto que merece destaque é a ausência de uma institucionalidade mais consolidada, como um secretariado permanente para o BRICS. Segundo Freitas, embora essa pauta não estivesse formalmente estruturada na agenda do grupo neste ano, foi debatida de forma indireta. Ele enfatizou avanços como a melhor integração dos novos membros, a definição de mecanismos para a rotação de presidências e outros aspectos de governança, que contribuem para a construção de uma institucionalidade nascente, ainda incipiente, mas fundamental para o futuro do bloco.
Freitas reconhece que o Brasil ainda enfrenta desafios para alcançar uma posição de igualdade plena dentro do bloco, mas reforçou que o foco central do BRICS é fortalecer a cooperação entre as nações, sem interferir nas suas escolhas internas. “No cenário internacional, as deliberações exigem tempo e um grande esforço. Portanto, precisamos construir pacientemente, passo a passo, esse novo BRICS ampliado.”
A questão da heterogeneidade do bloco foi destaque para pesquisadora Ana Garcia, Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa “A economia política das relações Sul-Sul” do BPC, que também ressaltou que o BRICS ganha força de uma agenda reformista pós-2008, voltada a questionar a efetividade das agências de Bretton Woods, mas não é pensada em derrubá-las. “O consenso entre analistas é que o mundo atravessa uma transição de uma ordem unipolar para uma multipolar, em meio a tensões e conflitos. O BRICS é visto como um ator relevante nesse processo, mas sua trajetória está marcada por assimetrias internas, disputas de poder e a pressão constante das estruturas hegemônicas existentes”, analisa.

A pesquisadora Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e atuante na articulação dos movimentos populares, destacou a precarização da vida no Sul Global e a “decadência perigosa” do imperialismo ocidental como fatores que tornam o BRICS uma alternativa viável para muitos países. No entanto, ela também alertou para o caráter “muito reformista” das atuais discussões sobre a nova arquitetura financeira global, defendendo que os modelos de desenvolvimento precisam ir além da mera exportação de commodities, buscando soluções mais sustentáveis e autônomas para essas nações.
Nesse sentido, a desdolarização figura hoje como um dos eixos centrais debatidos na agenda do bloco, com Rússia e China liderando esforços para reduzir a dependência da moeda norte-americana. No entanto, o professor Mauricio Metri chamou a atenção para as represálias que vão surgindo em resposta a essa ruptura: “Sempre que há tentativa de rompimento com o dólar, a punição é violentamente aplicada aos ‘rebeldes’”. As pressões externas já consolidadas podem ser ainda mais duras durante períodos de fragilidade política como vivemos hoje.
A efetividade do BRICS em consolidar uma alternativa concreta à ordem global vigente permanece uma questão aberta, observada com interesse por governos e movimentos sociais ao redor do mundo. Nogueira Jr. destaca que o desenvolvimento, pensando em níveis nacionais, não pode depender apenas da cooperação entre países, já que as nações mais avançadas raramente confirmam, na prática, as expectativas de solidariedade internacional.
Diante disso, vemos que a democracia funciona principalmente dentro de cada país. Já no cenário internacional, quem manda de verdade são as estruturas de poder de poucas nações ricas, como no FMI, no Banco Mundial e até na ONU, onde o poder de voto depende do tamanho da economia de cada país. “É válido, evidentemente, continuar o esforço para aumentar a representatividade dessas entidades e a influência dos países em desenvolvimento sobre suas agendas e iniciativas. Mas sem ilusões. Não estão ao nosso alcance mudanças profundas, que permitam transferir para a órbita internacional as decisões cruciais para o processo de desenvolvimento”, completa Nogueira Jr.
* Editado por Solange Engelmann