Coluna Aromas de Março
Entre os aromas de março que semeamos em setembro
Educadora e militante discute a importância das mulheres se envolverem na luta pelo fim da escala 6x1 e romper com a base da violência da exploração do trabalho feminino. Confira na Coluna Aromas de Março desse mês

Por Eliane de Moura Martins*
Para Página do MST
Os Aromas de Março nos convidam a uma reflexão para quando chegar setembro e a boa nova brotar nos campos, a pensarmos sobre os porquês que nos trouxeram a um tipo de escala como a 6×1 e a refletirmos sobre os impactos dessa escala na vida das mulheres trabalhadoras. Mas, “aromas” pedem mais do que uma discussão sobre o “mau cheiro” deste estado de exploração sem limites, pedem intuições e propostas de como fortalecer novas “fragrâncias” de anúncios sobre como enfrentarmos esse estado de barbárie social imposto pelo capitalismo patriarcal, racista e decadente.
A escala 6×1 é o corpo social doente, fruto da crise de mudança de época, apontada a tempos por Márcio Pochmann. Vivemos algo semelhante ao que ocorreu por volta de 1890, com os confrontos da passagem do trabalho em regime escravista para o trabalho assalariado. Naquele momento o movimento e o projeto abolicionista pautaram o fim da escravidão, a questão agrária e uma reforma educacional, mas, pela correlação de forças conquistaram o trabalho livre e a não indenização dos fazendeiros por suas perdas de “propriedade privada”, no caso a perda das pessoas escravizadas.
Outro momento de transição de época foi na década de 1930, com a crise da economia agrária e a ascensão de uma economia urbano industrial e a sua promessa de uma sociedade salarial com direitos, para os homens, brancos e adultos. Promessa que animou e moveu o Brasil do mundo rural para o mundo urbano em tempo recorde e, desde os anos de 1980, entrou em declínio, componde a atual mudança de época devido ao esgotamento dessa promessa e ao fato de que o capitalismo não tem mais nada a oferecer à sociedade, como mostram alguns dados das atividades ocupacionais dos trabalhadores.
Nos anos de 1980, de cada dez trabalhadores, sete estavam ocupados em atividades tipicamente capitalistas (com foco na obtenção de lucro). Hoje apenas 49% das atividades seguem essa lógica, 11% atuam nos serviços públicos e 40% da força de trabalho está inserida na economia popular e familiar, voltada para a subsistência, sem gerar acumulação de capital. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)¹, no Brasil um em cada dez diplomados consegue um emprego com Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com salário compatível com sua formação. A maioria dos formados jovens e pobres estão inseridos no mercado informal ou em vagas compatíveis com o ensino médio, como assistente administrativo, com remuneração entre 1.800,00 e 2.400,00 reais.
Nesse contexto, o sistema capitalista em crise precisa gerir seu problema estrutural de derrubar as últimas limitações para a ampliação da taxa de exploração em regimes minimamente democráticos, é nesse lugar onde a escala 6×1 é seu rosto mais apurado do avanço do capital sob o trabalho. Vive-se a imposição de um processo de exploração sem mediações ou regulações por parte do Estado, sobretudo nos setores intensivos em mão-de-obra, como os serviços e o comércio.
Uma crise estrutural, permeada pela revolução tecnológica no mercado de trabalho se reflete nos poucos empregos interessantes e nos muitos empregos precários, onde, ao longo das últimas décadas, foi se formando um excedente estrutural de força de trabalho, ou seja, não há ocupações (boas ou ruins) suficientes para todos e disso resulta uma “massa sobrante” para os requisitos do capitalismo, sob a qual foi sendo travada uma batalha ideológica neoliberal capaz de construir a naturalização do trabalho sem direitos, mesmo depois de mais de 200 anos de lutas sindicais e ainda difundir a ilusão de que a resolução da crise social é um problema individual, cuja saída universal é através do empreendedorismo, da lógica de cada um ser o empresário de si mesmo.
Esse caldo econômico, social e cultural fragmentou a classe trabalhadora. A a CLT foi sendo associada (infelizmente pela prática) a ganhar pouco, a viver com salário mínimo, a ser mandado por um chefe escroto, andar de ônibus lotado, ou seja, aceitar empregos 6×1 e viver sem perspectivas, onde os direitos não compensam o medo da pobreza. É nesse solo, onde vai prosperar um tipo histórico de ser social, o neosujeito.
O neosujeito é o/a trabalhador/a que torna-se apto a suportar as novas condições impostas, ele adota o comportamento para essas condições cada vez mais duras de trabalho. Ele assume a ideologia do “sujeito empreendedor”, autorrealizador, eficaz, em constante aperfeiçoamento, aceita a flexibilidade, se posiciona como um investimento de si mesmo. São aquelas pessoas que desqualificam os espaços coletivos, movimentos, sindicatos e partidos, desconfiam das ações de solidariedade e evadem das urnas.
E as mulheres trabalhadoras como se afetam com tudo isso? As mulheres sustentam e são atravessadas por todas as dimensões da crise estrutural do capitalismo, que é também a crise do patriarcado, porque são parte da crise de todos os sistemas de dominação: dos patrões sobre os trabalhadores; dos homens sobre as mulheres; dos brancos/as sobre os pretos/as; dos heteronormativos sobre a diversidade sexual e dos velhos sobre os jovens. É uma crise bem vinda, fruto das lutas para derrubar esses sistemas de dominação e exploração históricos, porém seus custos são altos.
Entre tantos custos que afetam a vida das mulheres, cabe destacar a fadiga das desesperanças com o horizonte de futuro. É perceptível o desencanto com o pensamento clássico masculino, com seus métodos de direção vertical, autoritário, centralizador e autocentrados. Um modelo de pensamento idealista que lê o momento de barbárie, mas sonha com o socialismo, com um salto por cima do percurso penoso de construção de um processo de transição, ficando presos no labirinto que propõe “mais do mesmo”, olhando com saudades para os anos de 1980.
Para as mulheres não há saudades do passado e sim um brutal senso de realidade do presente, que se impõe para ser gerenciado ainda que caótico, gostando ou não. As mulheres trabalhadoras só tem o caminho para frente e quatro palavras freireanas (renunciar, organizar, denunciar e ressignificar) que podem nos ajudar nessa travessia do pântano da crise, entre a barbárie que vivemos e uma sociedade onde haverá um setembro, e veremos a boa nova e a primavera brotarem nos campos.
A palavra renunciar é para o lugar da fadiga e do não desejo de participar da política. A política pensada e conduzida até aqui segue os mesmos pressupostos das promessas do capitalismo de mercado que nem ele sustenta mais e que estão longe de atender quem está se desintegrando na escala 6×1 e das necessidades de mais de 40% de trabalhadores e trabalhadoras inseridas em ocupações precárias, que mal asseguram a sobrevivência. Renunciar ao cansaço e desânimo com a política que tenta maquiar e continuar nessa marcha em direção ao abismo requer recriar espaços coletivos em torno da mística pela causa da libertação e emancipação humana.
Então, uma segunda palavra é organizar outros formatos de participação, concebidos em uma perspectiva feminista e popular, capazes de superar as lógicas de fragmentação de secretarias, setores, coletivos para uma lógica que costure a totalidade com divisão de responsabilidades. Um modelo de organização que enfrente a competição, baseado na cooperação e na complementariedade entre as partes e capaz de produzir uma inteligência coletiva porque escuta, dialoga e sistematiza os aspectos colhidos da terceira palavra, denunciar.
Denunciar todos os privilégios burgueses, dos pobres que sustentam os ricos, das mulheres que sustentam famílias e o próprio sistema capitalista e patriarcal que se estrutura em cima de uma massa de trabalho gratuito no campo da reprodução social. Mas não basta denunciar, é preciso anunciar. Anunciar um processo de construção de um projeto de desenvolvimento sustentável, soberano, solidário e feminista. Podemos usar a imagem de uma agrofloresta (o socialismo, cheio de fartura e bons aromas), mas o ponto de partida é um solo árido e compactado, como a vida em sociedade.
Nesse “solo compactado da sociedade” é preciso criar as condições para o “projeto da agrofloresta”, com um exímio trabalho de transições, para revolver, arejar, refrescar e criar as condições para que novos nutrientes penetrem e renovem esse solo. Uma transição social requer projetos intermediários, capazes de construir formas de engates em uma nova dinâmica coletiva de auto-organização, cooperação e solidariedades.
Nesta mudança de época, não contaremos com os frutos semeados pela Teologia da Libertação. Nós teremos de construir outra “sementeira”. Um caminho possível poderá ser através de um processo de crítica ao atual modelo de políticas públicas, que concebe o povo brasileiro como usuário e beneficiário e não como sujeitos políticos. Provocar um processo crítico e político que valorize o caminho até aqui, mas proponha uma nova geração de políticas públicas, baseadas em um método de organização coletiva e comunitária e com o objetivo de ressignificar o papel do trabalho como elemento organizador da vida em sociedade, através de propostas como a criação de ocupações de novo tipo.
Ocupações de novo tipo, ou ocupações social e ambientalmente relevantes, onde o Estado brasileiro pague um salário mínimo por uma jornada de trabalho de vinte horas semanais em um conjunto de atividades como as de reprodução social, as atividades de cuidado, a começar por aquelas que já estão em curso. Basta ver o número de cozinhas solidárias e as centenas de mulheres trabalhando voluntariamente para mitigar a fome de milhares de pessoas. Uma jornada de trabalho social que reconheça e remunera uma agenda doméstica e invisível de trabalhos de cuidados de crianças, idosos e doentes, que reconheça as tarefas de organização, viabilidade e realização das atividades sociais, culturais e esportivas de uma comunidade, que reconhece e remunera uma massa gigantesca de tarefas nas áreas de regenerações ambientais.
O reconhecimento social das ocupações humanas é uma construção histórica, fruto dos contextos e das lutas de cada época e a crise das mudanças da nossa época, que pedem mais do que um modelo de gestão com políticas de transferência de renda para o excedente humano de força de trabalho dos dispensados pelos critérios capitalistas. São excedentes de força de trabalho para o sistema capitalista, mas não podem ser para um projeto de país e, para isso, é preciso disputar o papel do trabalho humano em sociedade.
Disputar a ressignificação do papel e do sentido do trabalho na organização da vida em sociedade é fundamental para a vida das mulheres trabalhadoras, que estão condenadas ao adoecimento de todos os tipos e ao esgotamento físico, mental e espiritual, por terem de gerenciar e sustentar as consequências objetivas e subjetivas das violências que decorrem da lógica da produção do excedente humano. As consequências da superexploração sem limites e dos adoecimentos da classe trabalhadora são problemas orientados para explodir no coletivo, nas ruas e na política e também dentro dos lares, tendo como última fronteira da explosão desse conflito é o próprio corpo das mulheres. Por isso, não bastam políticas para socorrer as vítimas dessa violência, embora muito necessárias, é preciso enfrentar as bases dessa violência.
Ressignificar o papel e o sentido do trabalho, como organizador da vida em sociedade, precisa ser outra vez o núcleo do projeto político de mudança desta época, incorporando e ressignificando as incompletudes da abolição inconclusa de 1888 e da promessa nunca cumprida do assalariamento com direitos, entre os anos de 1930 a 1980. Em todas as mudanças de época esse foi e segue sendo o núcleo do problema e nós, mulheres, não temos nada a perder com essa luta, a não ser as cordas que nos amarram nesse pântano.
Temos uma primavera para construir e uma boa nova para semear e ver brotar nos campos, temos toneladas de trabalho invisível para retirar de nossas costas e depositar no espaço público, que precisa reconhecê-los e remunerá-los. Temos uma vida em sociedade para ser reinventada sob outros valores e princípios e temos experiências e propostas em curso para isso. Tecemos por séculos um tipo de inteligência, de sabedorias de equilíbrios entre nós e a natureza e, nos últimos anos, estamos mais atentas para com as armadilhas patriarcais armadas pelo caminho para nos dividir e nos enfraquecer. Mas nos auto-organizamos, estudamos, nos escutamos, elaboramos sobre nossas feridas e estamos certamente mais fortalecidas e os facões estão a cada dia um pouco mais afiados.
Referências:
1. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/12008 esta é uma das pesquisas do IPEA que aborda a relação entre educação e mercado de trabalho, com dados coletados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) entre 2012 e 2022, e cruzados com a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED).
*Educadora popular com graduação em história, mestre e doutora em sociologia. Militante do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e Movimento Brasil Popular (MBP). Integrante do coletivo de direção política da Escola Nacional Paulo Freire e do Núcleo Nacional de Formação da Secretaria de Economia Popular e Solidária (SENAES-MTE).
**Editado por Solange Engelmann