Sabedoria milenar
A Amazônia e a Soberania Nacional: um guia de leitura crítica
Na trilha do debate rumo à COP30, pesquisador analisa como a soberania nacional precisa respeitar a construção da soberania popular na Amazônia, que indica as bases para novos horizontes civilizatórios

Por Bruno Malheiro*
Para Página do MST
Estamos em tempos de COP30, que acontecerá em novembro de 2025 em Belém, e a Amazônia volta a figurar com centralidade nas discussões climáticas planetárias. Entretanto, essa região ser o centro das preocupações dos principais Estados-Nacionais, que definem os rumos do sistema-mundo capitalista, não é necessariamente uma novidade.
Falavam-se, entre os séculos XVII e XVIII, pelo menos cinco línguas coloniais naquilo que compreendemos, hoje, como Pan-Amazônia. Seja por razões econômicas, geopolíticas e, agora, climáticas, sempre estivemos no centro os interesses de potências globais. As fortificações militares do período colonial, a criação de territórios federais em tempos de Getúlio Vargas, os projetos de controle e vigilância da região, já no período militar, demonstram que o Estado, seja Português ou Brasileiro, sempre respondeu a esses interesses reafirmando, por significados diferentes, uma Soberania Nacional.
Mas quando falamos de soberania nacional a partir da Amazônia, parece-nos uma necessidade preliminar qualificar o significado de “nacional” do exercício da soberania. Nesse texto, invertendo a ordem dos termos, faremos, primeiro, essa reflexão sobre como essa região figurou no que se inventou como nação, para, em um segundo momento, refletirmos outros caminhos para a ideia de soberania.
Podemos começar com uma afirmação que será desdobrada pelos argumentos vindouros: a Amazônia sempre esteve fora do que se imaginou ser o Brasil, por aqui há pessoas que nasceram no seio deste país, mas nunca couberam nele, refugiados dentro de um território que deveria ser sua casa!

Para explicar essa afirmação, talvez nos ajude lembrar que em 1621, no período da União Ibérica entre Portugal e Espanha, a América Portuguesa foi dividida em duas unidades administrativas: o Estado do Brasil, parte sul dos domínios ibéricos na América, com capital em Salvador, e o Estado do Maranhão, parte norte da América Portuguesa, com capital em São Luís. Essa divisão não era apenas administrativa, ela expressava que a América Portuguesa não era uma única colônia, e sim duas colônias distintas.
No que hoje chamamos de Amazônia, a expropriação do corpo e do saberes indígenas pelos padres das missões religiosas definiu uma dinâmica colonial distinta da então usada no Brasil, assentada na grande propriedade de monocultivo, com trabalho escravo negro africano, voltada para a exportação. Esse controle da riqueza pela Igreja tornar-se-ia, já em meados do século XVIII, um risco aos ganhos do próprio Estado Português, o que transformou a Amazônia em um risco à soberania. Esse lugar do risco, entretanto, não se restringiu ao momento em que esse território esteve sobre o controle de Portugal, o nascente Brasil também haveria de tratar essa região como um risco, um espaço selvagem, distante e desabitado. Tal esvaziamento simbólico da Amazônia em relação ao Brasil abriu caminho para as mais horrendas experiências capitalistas como formas de exercício da soberania do Estado.
Em nome da soberania de uma nação no singular, cometeram-se muitos assombros: o uso de guerras justas, que autorizavam a morte de indígenas não convertidos no século XVII; a violenta subordinação ao Estado dos povos amazônicos, por meio dos diretórios indígenas, a partir de meados do século XVIII; o uso de expedições punitivas organizadas por grupos privados e por agentes estatais para o extermínio e a expulsão dos indígenas que estivessem nos caminhos dos seringais, entre os séculos XIX e XX; o banditismo social do latifúndio, estimulado pelas instituições estatais, que impôs processos violentos de expansão de frentes econômicas; a vinculação de negócios violentos à ideia de interesse, segurança e soberania nacional, já em períodos de retomada democrática, que conferiu tons de normalidade a práticas absolutamente criminosas de empresas e do próprio Estado nessa região. Não esqueçamos de Belo Monte, nem dos atuais projetos de exploração de petróleo na margem equatorial, nem, ainda, do asfaltamento da BR 319, entre tantos outros projetos.
Vivemos uma repetição absurda da expansão de negócios violentos, tornados fundamentais ao interesse e à soberania nacionais. Já foram a expansão do gado, da soja e da extração do ferro e de outros minerais, os garantidores da soberania nacional. A expansão da extração de minerais críticos, hoje, também ganha essa alcunha, embelezada pelos discursos da transição energética. Amanhã será o crédito de carbono? A exploração do nosso patrimônio de conhecimentos farmacológicos pela indústria farmacêutica? Quais serão as novas frentes de mercantilização da vida, que se abrem com o capitalismo verde em tempos de COP30, que irão violar nossos territórios da vida em nome da soberania nacional?
Falar dessa ausência simbólica da diversidade étnica, linguística e cosmológica da Amazônia em relação à nação brasileira – o que historicamente conferiu a esta região o lugar de risco – permite-nos dizer, então, que, por essas bandas, a ideia de soberania serviu para desobedecer a lei em nome da lei na construção de grandes estradas, hidrelétricas ou mesmo no avanço de vários negócios por sobre os nossos territórios da vida.

Que os leitores apressados não entendam essa crítica como uma perspectiva entreguista ou coisa do tipo. Entender que a ideia de Soberania Nacional significou violência e violação na Amazônia, não é afirmar que precisamos da tutela de outras nações sobre nossos territórios, longe disso, esse entendimento significa dizer: a Amazônia tem muito mais coisas a dizer do que até agora o Brasil quis ouvir.
Para explicar melhor, precisamos aqui lembrar que a Amazônia, tal como a conhecemos, só se formou depois da última glaciação, entre 13 e 18 mil anos atrás. Antes disso, segundo Aziz Ab’Saber¹, ela estava reduzida a alguns refúgios e, só com o aumento da pluviosidade no planeta, tornou-se o que conhecemos. Entretanto, existem povos nessa região do globo há pelo menos 19 mil anos na formação Chiribiquete, na Amazônia colombiana; ou há, pelo menos, 11.200 anos no sítio de Serra Pintada, no Pará; ou, ainda, há pelo menos 8.600 mil anos na Serra dos Carajás, também no Pará; ou, se ainda restar dúvidas, há pelo menos 8.500 anos pelas bandas da Cachoeira de Santo Antônio, em Rondônia, como afirma Eduardo Góes Neves².
Há, portanto, uma complexidade imensurável de vida antes da colonização. Não são apenas povos vivendo há milênios. São povos coevoluindo com naturezas há pelo menos 19 mil anos. Há uma relação direta entre diversidade étnica, cultural e linguística e a diversidade ecológica da Amazônia. Há florestas plantadas, inumeráveis plantas tornadas úteis ao consumo humano pelo manejo milenar dos povos amazônicos; há produção de solos de terra preta e diversos outros indícios que nos fazem dizer que a Amazônia é uma produção sociobiocultural dos seus povos, como dissemos em Horizontes Amazônicos³.
Compreender que é a sabedoria milenar dos povos amazônicos que nos legou a região mais fundamental para o equilíbrio climático do planeta, exige-nos repensar o significado de soberania nacional, pois é o exercício dos modos distintos de se relacionar com a natureza, ou ainda, o exercício da autonomia territorial, étnica e linguística de povos e comunidades amazônidas que sempre sustentaram a diversidade ecológica dessa região e, portanto, o equilíbrio climático.
Soberania nacional não pode ser o passaporte para a destruição dos territórios de povos que ainda sustentam a continuidade da vida de um país, de um planeta, pelo contrário, precisa ser a garantia da autodeterminação desses povos, a garantia da proteção de seus territórios, de suas línguas, de suas cosmologias, enfim, de suas formas de pensar, agir e se relacionar com a natureza, significa pensar o Brasil a partir desses povos e não, como até agora foi feito, contra eles.
A Amazônia oferece ao Brasil as bases para novos horizontes civilizatórios. Sua polifonia, sua pluralidade de mundos, sua diversidade de territorialidades, cosmologias e línguas, oferece outros caminhos, tanto à ideia de nação, quanto de soberania. Falemos, portanto, de Soberania popular na Amazônia, que significa, primeiro, soberania de seus povos, de seus territórios, de suas concepções de vida plena e bem viver. Mas Soberania popular na Amazônia significa, também, uma revisão da escolha acrítica pelas commodities, da ilusão que a tecnologia é capaz de produzir uma economia sem limites, enfim, significa colocar no centro de qualquer perspectiva de futuro para todos nós, a perspectiva de futuro dos povos amazônicos que nos legaram a região que hoje sustenta a vida no planeta.
Referências:
1. AB’SABER, Aziz Nacib (1977). Os domínios morfoclimáticos na América do Sul: primeira aproximação. Revista Geomorfologia, (52), 1-22.
2. NEVES, Eduardo Goes (2022). Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia Central. São Paulo: EDUSP/UBU.
3. MALHEIRO, Bruno Cezar Pereira; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter e MICHELOTTI, Fernando (2021). Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo. São Paulo: Expressão Popular/Fundação Rosa Luxemburgo.
* Professor, escritor, compositor e roteirista Amazônida. Professor da Universidade Federal do Pará, graduado em Geografia, mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA – UFPA) e Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Um dos autores de “Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo” (Rosa Luxemburgo e Expressão Popular, 2021) e autor de “Geografias do Bolsonarismo: entre a expansão das commodities, do negacionismo e da fé evangélica no Brasil” (Amazônia Latitude Prees, 2023). É co-roteirista do filme documentário “Pisar Suavemente na Terra” (Amazônia Latitude Filmes, 2022) e autor do Álbum Musical “Segura o Céu” (2025).
*Editado por Solange Engelmann