Cuidado e afetos
MST realiza 2º Encontro de Rede de Saúde Mental em acampamento na capital paulista
O intuito da atividade foi de promover o contato presencial e potencializar ações e estratégias, além de aprofundar as relações entre os territórios e a luta do MST no estado

Por Paula Sassaki e Júlia Demétrio*
Da Página do MST
Quem disse que tudo está perdido
Quién dijo que todo está perdidoVenho oferecer meu coração
Yo vengo a ofrecer mi corazón…”(Trecho da Canção "Yo Vengo A Ofrecer Mi Corazón" de Fito Páez, de 1985.)
Cuscuz com manteiga, ovos mexidos, queijo, um bolo de amoras colhidas no dia anterior, café preto, chá de Melissa e algumas frutas. Assim começou a recepção do coletivo de profissionais que compõem a Rede de Saúde Mental do MST para o seu 2º Encontro Presencial, realizado no último sábado (20) e domingo (21), na Comuna da Terra Irmã Alberta, na grande São Paulo.
A atividade da Rede teve o intuito de promover o contato presencial a fim de fortalecer e potencializar suas ações e estratégias, assim como aprofundar as relações com os territórios e a luta do MST no estado. E reuniu cerca de 40 pessoas entre militantes do MST do setor nacional de Saúde e do estado de São Paulo e um conjunto de profissionais e cuidadores que compõem a Rede atualmente.
O coletivo foi criado em abril de 2020, devido ao contexto de isolamento social gerado pela pandemia de Covid-19 e desde então oferta e desenvolve diversos tipos de cuidados psicossociais para a base social e a militância do MST, dentro e fora do Brasil. Nesses mais de cinco anos já passaram pela Rede pelo menos 1.500 pessoas que foram acolhidas em alguma das modalidades de cuidado ofertadas, assim como 85 profissionais e algumas parcerias institucionais criadas com Universidades e instituições ligadas à saúde mental.
À primeira vista, pode parecer estranho que o MST tenha dentro de sua organicidade um coletivo que se destine especificamente à saúde mental. Por que um movimento social camponês dedica esforços para criar e manter tal iniciativa? Não é apenas pela necessidade concreta que tem se apresentado em relação à saúde mental no conjunto da classe trabalhadora, é também pela compreensão e compromisso do Movimento com o cuidado do seu bem mais precioso: nossa base social e nossa militância.
Se nos debruçarmos sobre o projeto de Reforma Agrária Popular (RAP), nos deparamos com um projeto que está para além da conquista e divisão de terras e trabalho. A RAP é um projeto político emancipatório que vislumbra a dignidade para as sujeitas, sujeites e sujeitos que vivem no campo. Por isso a Rede de Saúde Mental do MST foi criada e segue existindo dentro da organicidade deste movimento social na luta pela democratização da terra.
A Rede de Saúde Mental surgiu no estado de São Paulo, a partir de uma iniciativa dosSetor de Gênero nacional do MST, no enfrentamento às violências domésticas frente ao contexto da pandemia. Desde então, esse conjunto de profissionais se reúne virtualmente toda semana. Entre reuniões formativas e discussões de casos, algumas metodologias de cuidado em saúde mental têm sido criadas e ofertadas para membros do MST como, por exemplo: oficinas e grupos terapêuticos, acolhimentos individuais, plantões de escuta, além de rodas de cuidado e participação em espaços formativos.
Sob a síntese de “ninguém deve se sentir só”, seja quem solicita a Rede, seja quem trabalha na mesma, esse coletivo vem se tecendo de maneira camarada e afetuosa. De acordo com Thais Paz, militante do MST e componente do coletivo:
A rede de saúde mental do MST tem sido um lugar de cultivar o cuidado com a militância, de enfrentar os processos de sofrimento e de adoecimento e de reafirmar a concepção de saúde como a capacidade de lutar contra tudo o que nos oprime.”

Foi essencial que o encontro tenha ocorrido em um território em disputa, como a Comuna da Terra Irmã Alberta, um acampamento de 23 anos, localizado no município de São Paulo, na divisa com Cajamar e Santana do Parnaíba. Simultâneo ao Encontro da Rede de Saúde Mental foram realizadas outras atividades do acampamento, o que proporcionou ao coletivo da Rede a experiência de fazer parte da dinâmica cotidiana de um dos territórios de acampamento do MST.
Programação
A programação contou com análise de conjuntura realizada por Cássia Bechara, da coordenação nacional do MST e coordenadora da Escola Nacional Florestan Fernandes e pela psicóloga e professora Ana Bock, importante figura na construção política do campo da psicologia. Entre as bandeiras coloridas da Palestina, da diversidade sexual, do MST e outras organizações parceiras, esse coletivo teve a oportunidade de analisar a conjuntura atual com ênfase em sua ligação com a subjetividade e a saúde mental e da relação entre essas esferas.
Após o almoço diverso e cheio de demonstração de afeto e cuidado, quanto o café de recepção, a tarde foi dedicada ao estudo das relações humanas emancipadas dentro do MST e suas pontes com a história e com a organicidade do Movimento, assim como suas interfaces com a saúde mental e os cuidados de maneira geral. A noite foi completa com o espetáculo de teatro de feira Zoomakia, da Cia Antropofágica, que tem sido realizado aos finais de semana no território cultural Okaracy, dentro da Comuna da Terra Irmã Alberta. O segundo dia foi dedicado à discussão interna da Rede para seu fortalecimento e projeção do próximo período.
Nenhum cuidado se faz de maneira isolada. Não há cuidado em saúde mental que não precise de vinculação e da disposição de compreender o contexto social. A ética e a práxis nos unem diante de abordagens teóricas e práticas diferentes. Assim, a Rede de Saúde Mental segue tecendo seus fios e práticas atenta ao solo em que caminha a base e a militância do MST e à história que nos constitui.
Nos territórios onde se produz a luta e a vida, se acumulam saberes de cuidado coletivo e a Rede segue caminhando junto, de mãos dadas às bruxas, bruxes e bruxos e às pessoas que vêm, há muito, entregando o coração para o cuidado dos que escrevem à história da Reforma Agrária Popular.
Saímos do Encontro fortalecidos, com a esperança e os laços com o compromisso na luta social e do cuidado renovados. Nunca fomos indiferentes e pretendemos continuar sendo atravessades pelas durezas, mas também pelas bonitezas do nosso povo e de nossa forma de seguir em luta. Como nos ensina a poesia “A fala de terra“, de Pedro Tierra:
…um povo não se mata
como não se mata o mar
sonho não se mata
como não se mata o mar
…a esperança não se mata
como não se mata o mar
e sua dança.”
Sigamos nossa dança, conjugando povo e sonho e nos desafiando a nos cuidar em tempos difíceis.
*Editado por Solange Engelmann