Democratização
Dia Nacional da rádio: a disputa do MST contra o latifúndio do ar
Data faz alusão ao nascimento de Roquette Pinto, em 1884, considerado o pai da radiodifusão brasileira. O MST defende a ocupação do latifúndio do ar com a criação de rádios próprias nas áreas de Reforma Agrária

Por Vitor Braz
Da Página do MST
Uma lei sancionada pelo presidente Lula em janeiro deste ano instituiu oficialmente o dia 25 de setembro como o Dia Nacional do Rádio no Brasil. Enquanto tramitava no Senado em 2024, o projeto foi exaltado pelo senador e astronauta Marcos Pontes, que destacou a importância de reconhecer a “magnitude do impacto desse veículo de comunicação em nosso tecido social”. Segundo ele, “ao se instituir a data de 25 de setembro como o Dia Nacional do Rádio, celebra-se a capacidade transformadora do rádio na vida de milhões de brasileiros”.
A data faz alusão ao nascimento de Roquette Pinto, em 1884. Médico, antropólogo, educador e considerado o pai da radiodifusão brasileira, Roquette Pinto fundou a primeira emissora oficial e foi responsável pela primeira transmissão realizada em território nacional, em 1922, no centenário da independência. Naquele momento, vislumbrava-se no rádio um potencial democrático, especialmente no campo da comunicação e da educação.
Um século depois, o modelo da rádio está distante desse caráter popular. Assim como outros meios de comunicação, segue restrito aos interesses das elites econômicas e políticas, funcionando, na prática, como reprodutor da ideologia hegemônica. As rádios comerciais, voltadas para o lucro e desinteressadas das necessidades da população, dominam a radiodifusão no país. Estabelecem-se como porta-vozes da burguesia, um instrumento formador de consenso e que defende os interesses da classe dominante, bombardeando a audiência com a pauta ditada pelas grandes redes de TV e criminalizando os movimentos sociais.
Diante desse cenário de dominação, a comunicação se torna um campo de batalha estratégico. Em resposta ao controle das elites, o MST propõe a ocupação do latifúndio do ar, materializada na criação de rádios próprias em assentamentos e acampamentos, desafiando a legislação restritiva e o monopólio da radiodifusão no país. A decisão de disputar esse território é um ato político fundamental para nossa luta e, como toda ocupação, exige enfrentamentos.
Nesse artigo busco trazer à luz a complexidade da disputa pelo latifúndio do ar enfrentada pelo Movimento Sem Terra, mas também celebrar a luta e as conquistas dos nossos comunicadores populares em todo o território nacional. O texto se apoia nas dissertações de mestrado de Camila Bonassa Faria1 e Antônia Aline Costa de Oliveira2, além de obras de outros pensadores da rádio no Brasil.
Quantos hectares possui o “Latifúndio do Ar”?
Assim como a terra no Brasil é marcada por uma extrema concentração, onde menos de 1% dos estabelecimentos rurais ocupam quase 45% das áreas agricultáveis, o espectro radiofônico e os meios de comunicação de massa também estão concentrados.
Apenas cinco famílias controlam metade dos 50 veículos de maior audiência no país. O Grupo Globo, da família Marinho, é o maior exemplo, alcançando sozinho uma audiência superior à soma dos quatro grupos seguintes. Outras famílias, como Saad (Bandeirantes), Macedo (Record), Sirotsky (RBS) e Frias (Folha), também dominam o setor. Essa concentração configura um oligopólio, apesar da Constituição Federal proibir tal prática. A distribuição de concessões de rádio e TV, historicamente usada como moeda de troca política reforçou esse quadro. Durante o governo Sarney, por exemplo, 91 constituintes foram beneficiados com outorgas.
Essa prática, conhecida como “coronelismo eletrônico”, se aprofundou mesmo em governos recentes. Na legislatura 2019-2023, pelo menos 26 congressistas, entre eles 20 deputados e 6 senadores, eram proprietários, sócios ou associados de emissoras de rádio e TV. A situação se torna ainda mais grave quando vemos que 16 desses parlamentares fazem parte da Bancada Ruralista. Aqui se desenha um tripé que sustenta a classe dominante brasileira: o monopólio da terra, controle dos meios de comunicação e poder político-eleitoral.
As semelhanças entre o controle da terra e do ar não são coincidência. Ambos se caracterizam por não cumprir sua função social. Assim como a terra improdutiva não alimenta a população, a mídia concentrada não promove diversidade nem pluralidade: padroniza conteúdos, serve a interesses comerciais e reproduz a ideologia dominante, omitindo ou criminalizando as lutas sociais. Outra semelhança é o controle desses latifúndios pelas elites econômicas, que negam aos trabalhadores o acesso ao meio de produção. Está contextualizado o latifúndio do ar e, consequentemente, as cercas que precisarão ser rompidas.
Os meios de comunicação são instrumentos cruciais na batalha das ideias. Apropriados pela elite, atuam para consolidar os consensos necessários à dominação de classe. Para manter esse controle, a mídia hegemônica alimenta narrativas de deslegitimação e criminalização dos movimentos sociais. Em resposta, os movimentos constroem uma comunicação contra-hegemônica, que nasce nas margens, em experiências como as rádios comunitárias organizadas nos territórios da Reforma Agrária. Porém, este é um processo complexo e, para entendê-lo, precisamos dar luz ao seus principais obstáculos:
Legislação restritiva e inadequada: A legislação brasileira que regula os serviços de radiodifusão comunitária é um dos principais entraves, especialmente para as rádios no campo.
Limitações técnicas: A Lei nº 9.612/98 impõe potência máxima de 25 watts e altura de antena limitada a trinta metros. Pensadas para a realidade urbana, essas restrições inviabilizam a cobertura no meio rural, onde as casas ficam distantes entre si e o relevo dificulta a propagação do sinal.
Processo de outorga lento e burocrático: O processo para obtenção de autorização de funcionamento é longo e excessivamente burocrático. As entidades precisam atender a diversas exigências, mas a morosidade na análise dos pedidos acaba dificultando o acesso formal ao direito de transmissão. Por conta disso, muitas iniciativas acabam entrando no ar antes da conclusão do processo, como forma de garantir o direito à comunicação. Para cada autorização concedida, duas acabam arquivadas, e quase metade dos pedidos segue em espera no Ministério das Comunicações.
Criminalização e fiscalização excessiva: A ilegalidade forçada pela burocracia estatal gera perseguição e criminalização dos comunicadores populares.
Estigmatização como “Rádios Piratas”: As emissoras são frequentemente rotuladas dessa forma, um estigma imposto pelo Estado e pelas rádios comerciais que temem a concorrência ou por rádios que se dizem “comunitárias”, mas que pertencem a grupos políticos que dominam os municípios/territórios.
Repressão desproporcional: A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia Federal conduzem ações de fiscalização com rigor desmedido, muitas vezes acompanhadas de violência física e psicológica, apreensão de equipamentos e processos criminais contra os comunicadores. Em 2010, 940 rádios foram fechadas, e em diversos casos os responsáveis responderam penalmente.
Uso de leis defasadas: Normas antigas, como o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62) e a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97), ainda são utilizadas para criminalizar atividades classificadas como “clandestinas”.
Poder Político e “Coronelismo Eletrônico”
A distribuição de concessões de rádio, usada como moeda de troca política, fortalece as elites e dificulta o acesso para movimentos sociais. Entre 1985 e 1988, José Sarney e o então ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães distribuíram mais de mil concessões de rádio e TV. Só em setembro de 1988, um mês antes da Constituição, foram 25% delas. No dia 29, por exemplo, 59 outorgas foram liberadas de uma só vez, a maioria para parlamentares, parentes ou sócios. No total, 91 constituintes foram beneficiados, e quase todos votaram pelo presidencialismo e pelo mandato de cinco anos.
A prática seguiu-se. Entre 1994 e 2006, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula, foram autorizadas quase mil novas emissoras, muitas ligadas a políticos. Sob Michel Temer, em apenas dois anos, mais de 1.800 concessões foram concedidas, das quais menos de 10% tinham caráter educativo ou comunitário.
Tudo isso apesar de a Constituição Federal de 1988 proibir parlamentares de serem donos de concessionárias de rádio e TV. Como de costume, a regra nunca foi aplicada. O resultado é um conflito de interesses evidente, já que o próprio Congresso é responsável por aprovar as outorgas.
Obstáculos econômicos, técnicos e de sustentabilidade: A legislação também impõe restrições financeiras severas, tornando a sobrevivência das rádios comunitárias um desafio permanente.
Proibição de publicidade: As rádios comunitárias não podem vender espaço publicitário, sendo limitadas ao “apoio cultural”, modalidade pouco atrativa para financiadores.
Falta de recursos: Sem fontes de receita, as rádios enfrentam dificuldades para se manter, adquirir equipamentos, pagar manutenção ou arcar com multas e advogados em caso de processos. Essa escassez leva muitas emissoras a encerrar atividades, ferindo diretamente o direito à liberdade de expressão.
Infraestrutura limitada e limites técnicos para a transmissão online: No campo, o fornecimento de internet é delegado a empresas privadas que não têm interesse em investir na melhoria dos serviços. Onde não há fibra ótica, resta apenas a internet via rádio, instável e incapaz de suportar um grande fluxo de dados.
Assim, as rádios do MST que buscam transmitir sua programação pela internet enfrentam obstáculos devido à baixa qualidade da conexão, que muitas vezes não sustenta aplicativos ou transmissões ao vivo de forma estável.
Ocupar, resistir e transformar
Neste ponto, é importante compreender que a analogia da ocupação do latifúndio do ar não é apenas uma figura poética, mas uma análise estratégica que orienta a articulação do nosso Movimento. A luta pelo direito à comunicação é uma extensão natural e necessária da luta pela terra. Assim como no campo, o domínio do ar também é concentrado por poucos, e a tática de enfrentamento segue a mesma lógica: a ocupação como prática central, o debate sobre legitimidade e a territorialização como horizonte.
Nesse contexto, o MST constrói há anos uma trajetória que merece ser celebrada e relembrada. A seguir, confira algumas experiências que materializam a ocupação desse novo território. Um exemplo emblemático é a Rádio Camponesa FM.
Inaugurada em 1º de abril de 2011, após um processo de formação e capacitação desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC), a rádio nasceu da necessidade de criar um canal próprio de comunicação. Durante o período de acampamento, as famílias enfrentaram uma forte ofensiva da imprensa local, especialmente das rádios comerciais, que os retratavam de forma negativa, chamando-os de “invasores” e “ladrões”. Negados em seu direito de fala, decidiram criar sua própria emissora — uma ação que materializa o conceito de “ocupar o latifúndio do ar”, rompendo com o monopólio do espectro e desafiando as “cercas das sesmarias eletromagnéticas”. Ao entrar no ar mesmo sem outorga oficial, reafirmaram a legitimidade da luta pelo direito à comunicação.
Hoje, a Rádio Camponesa FM, na frequência 95,7, é gerida coletivamente por trabalhadores e trabalhadoras, tornando-se referência na região de Crateús. Sua programação valoriza a cultura camponesa e dá voz aos sujeitos formados na luta.
A História do assentamento Palmares: A luta que semeou a Rádio
A história da rádio é inseparável da trajetória do Assentamento Palmares, resultado da primeira ocupação organizada pelo MST na região. Em 28 de dezembro de 1993, 40 famílias ocuparam a antiga Fazenda Serrote, um grande latifúndio improdutivo. Levavam consigo a convicção de que era um “caminho sem volta: ou ganhávamos, ou ganhávamos”.
O nome Palmares foi escolhido como símbolo de resistência e liberdade, evocando a luta histórica do povo negro. Durante meses, as famílias enfrentaram a pressão de fazendeiros, da imprensa e do poder judiciário, mas contaram com o apoio de setores da Igreja e de organizações populares.
A conquista da terra foi oficializada em 1994, consolidando o assentamento como exemplo de organização coletiva e produção solidária no semiárido cearense. Hoje, a terra é gerida comunitariamente e voltada à subsistência, mantendo viva a lógica cooperativa.
Desde o início, a educação foi um pilar fundamental. Por meio de programas como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), desenvolvido no território, o assentamento formou novas gerações de jovens em áreas como medicina, jornalismo e pedagogia. A formação política e técnica dessa juventude reflete o compromisso do MST, com a construção de um território que pensa e comunica a partir da própria luta.
A Rádio Camponesa FM não é apenas um meio de comunicação: é o resultado direto da organização coletiva do Assentamento Palmares, a continuidade da luta pela terra em outro campo de disputa: o da comunicação, em que a hegemonia se enfrentada nas ondas do rádio.
Outras experiências: O ar como território

A Rádio Camponesa 96,7 FM, localizada no Assentamento Pirituba, em Itaberá (SP), é outra experiência marcante. Fundada em 1998, ela acompanha a história do movimento das rádios comunitárias no Brasil e foi uma das primeiras emissoras instaladas em áreas de Reforma Agrária. Assim como em Crateús, são os próprios trabalhadores/as que fazem sua comunicação, levando aos moradores da região uma programação que mistura música, notícias e debates sobre a luta pela terra. A rádio atua como uma ferramenta de conscientização, construída pela classe trabalhadora e para ela, reafirmando o princípio de que a comunicação popular é feita por muitas vozes.
O MST também ocupa o ar por meio de rádios itinerantes, criadas para cobrir grandes mobilizações, como marchas, feiras e congressos. A experiência mais marcante foi a da Rádio Brasil em Movimento (RBM), que estreou durante a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em 2005. Com um estúdio montado em um trio elétrico que acompanhava os 12 mil marchantes de Goiânia a Brasília, a RBM transmitia em frequência FM, permitindo que cada participante, com um simples rádio de pilha, acompanhasse as informações e participasse da programação.
Essa experiência foi recriada em diversos eventos do MST, funcionando ora como rádio poste, ora como rádio web, expandindo o alcance para além dos limites físicos. As rádios itinerantes mostram a capacidade do Movimento de (re)adaptar a tecnologia às suas necessidades, transformando a comunicação em ferramenta de mobilização e disputa popular de narrativa.
Seja em emissoras fixas, que criam raízes nos assentamentos e acampamentos, ou em estúdios móveis que seguem o passo das marchas e demais atividades, as rádios do MST representam a prática viva da democratização da comunicação. São a prova de que, para romper todas as cercas, é preciso ocupar não apenas a terra, mas também o latifúndio do ar.
Referências:
1. Camila Bonassa Faria. No ar e na rede: o uso da internet nas práticas radiofônicas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2021.
2. Antônia Aline Costa de Oliveira. O MST ocupando as ondas do ar: o rádio na organização da luta campesina no Ceará, 2025.
*Editado por Solange Engelmann