Direito à saúde

O camponês e a medicina

É preciso universalizar com equidade a formação médica no nosso país, criando dispositivos de acesso

Atendimento em saúde popular durante a 23° edição da Feira da Reforma Agrária do MST, em AL. Foto: Oberlan Oliveira

Por Augusto Cezar* | Recife (PE)
Do Brasil de Fato

Vivemos em um momento histórico de transição, marcado por uma lentidão para a resolução das nossas desigualdades e povoado de contradições. O Brasil segue devendo reparações fundamentais ao seu povo, especialmente àqueles que vivem nas margens  desse projeto nacional: populações do campo, da floresta e das águas. A falta de políticas públicas estruturantes — como a reforma agrária, urbana e tributária justa— perpetua  desigualdades históricas que se tornam mais visíveis quando analisamos a realidade da saúde e da formação médica no país. 

Diferente das promessas vazias que escorrem do alto, o Programa Nacional de  Educação na Reforma Agrária (Pronera) é um exemplo de política pública transformadora. Ao  promover acesso à educação desde a escolarização até as pós-graduações para camponeses e camponesas, este programa atua diretamente na ruptura do ciclo de  exclusão que impede milhões de brasileiros de terem acesso à educação. Até 2025, 192.764 alunos foram beneficiados em todos os níveis de educação. 

Nesse sentido, a medicina é um dos campos mais emblemáticos dessa desigualdade. A Demografia Médica do Brasil 2025 apresenta quem são a maioria dos “jalecos brancos”.  Brancos e de classe alta: 68,6% dos alunos de medicina são brancos e 66% vieram do ensino médio privado. Apenas 34% são egressos da escola pública, muito abaixo da média nacional de 65,7% dos estudantes quando comparados a todas as graduações. 

Mais grave ainda é a concentração das vagas em instituições privadas: 77,7% das  matrículas em medicina estão em faculdades particulares, que em geral praticam uma política de inclusão pífia ou inexistente. Apesar dos avanços das cotas raciais e sociais em  instituições públicas, o acesso continua restrito e pouco representativo da diversidade brasileira. Dos 266 mil estudantes de medicina em 2023, apenas 9% entraram por  programas de reserva de vagas. 

A consequência dessa lógica elitista se reflete na distribuição geográfica dos médicos. O Índice de Distribuição de Médicos Capital/Interior (IDCI) mostra que as capitais concentram 366% mais médicos por habitante do que o interior. No Nordeste, o índice chega a 732% de  diferença. Isso em um país onde dois terços da população vive em municípios com menos  de 500 mil habitantes — ou seja, o Brasil profundo permanece desassistido. 

A realidade é conhecida por quem vive longe dos grandes centros: conseguir um médico  disponível em áreas rurais e ribeirinhas continua sendo um desafio cotidiano. As políticas de provimento — como o Programa Mais Médicos — avançaram, mas são medidas paliativas  se não forem acompanhadas por mudanças estruturais de fixação desses profissionais a  longo prazo. 

A Universidade tem papel central nessa transformação. Para ser um espaço de excelência  científica é necessário refletir e responder ao contexto social brasileiro. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) vem reconhecendo essa urgência ao adotar políticas afirmativas para o acesso ao curso superior há alguns anos, como a licenciatura  intercultural indígena.

O Pronera, ao tocar na formação médica, desencadeou um conjunto de reações que misturam o pior do atraso brasileiro, a mesquindade, o individualismo, o racismo e o ódio  aos pobres. Ao realizar oferta supranumerária para o curso de Medicina no campus do agreste  pernambucano, pioneiro na interiorização do curso, para pessoas oriundas do campo a reação foi somente amplificada na versão daqueles que já tem médico para seu cuidado, alimentados pela fábula da meritocracia e da individualização de pequenas  conquistas que não reestruturaram a realidade médica nacional e que não respeitam a cor e não pisam nos locais de onde esses estudantes são oriundos.  

A própria postura de associações de médicos, inclusive de outros estados, assinando notas contrárias ao exercício legal de uma política pública que propõe contribuir na reparação histórica ou a contrariedade às cotas nas vagas de residência médica, só nos permite  compreender que essa política mexe com algumas estruturas e causam incômodos. Movimentos que não observamos aos desafios do exercício profissional como a  precarização das relações de trabalho ou desfinanciamento da saúde pública.  

Por falar em ciência, no que se refere a estratégias estruturantes para resolver o problema  da escassez de médicos no interior, essa é uma das medidas alinhada às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e às políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente à Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, e Floresta e Águas (PNSIPCF).  

Universalizar com equidade a formação médica no nosso país, criando dispositivos de acesso que considerem não só a renda, mas também o território de origem dos estudantes. Afinal, formar médicos oriundos desses territórios é uma das formas mais eficazes de garantir que o cuidado em saúde chegue aonde ele é mais necessário. 

Contrapor as posições contrárias às políticas afirmativas é parte desse processo. Os que resistem à democratização da medicina não fazem isso em nome da qualidade, mas, sim, da  manutenção de privilégios. Não se trata de baixar o rigor — trata-se de temperá-lo com  ciência socialmente referenciada. E isso exige coragem institucional e ousadia popular.  Destaque tem sido a acolhida da UFPE, sua comunidade acadêmica de docentes,  discentes e técnicos, bem como a solidariedade no cenário nacional. 

O Brasil precisa, com urgência, aumentar a formação de médicos que tenham a vivência  dessas localidades, a vida como ela é. Médicos e médicas que saibam o valor de uma unidade básica no sertão, de um posto fluvial na Amazônia, de uma visita domiciliar em uma  comunidade quilombola, que deem valor às exaustivas viagens à capital em busca de uma  especialidade focal. Médicos e médicas que falem a língua do povo — não só no sentido simbólico,  mas no literal também. Nossa melhor aposta para resolver esse problema dessas  comunidades vem delas mesmas, formando seus filhos e filhas para o cuidado médico com ciência e consciência.  

*Augusto Cezar é médico e professor da Universidade Federal de Pernambuco.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Editado por: Maria Teresa Cruz