Jornada Sem Terrinha
“Em Gaza e no campo, a disputa é pelo chão e pelo direito à vida”
Confira entrevista com Luana Pommé, do setor de educação do MST, sobre como incentivar o debate lúdico e crítico entre crianças sobre a Palestina, o agronegócio e a agroecologia, na Jornada Sem Terrinha

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Com a chegada da Jornada Sem Terrinha, um dos principais momentos formativos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), nossas crianças organizadas em acampamentos e assentamentos trazem o lema “Sem Terrinha em ação: defender a natureza é defender o nosso chão”, com atividades nacionais de 6 à 12 de outubro. O trabalho educativo com os Sem Terrinha, baseado em experiências educativas, funciona como espaços que implementam a pedagogia do Movimento desde a primeira infância, formando crianças conscientes sobre a produção agroecológica e o cuidado com a natureza.
Em 2025, a Jornada traz a conexão entre a luta pela terra no Brasil e a solidariedade internacional, particularmente com o povo palestino. A destruição sistemática das oliveiras palestinas – símbolo cultural e fonte de subsistência das famílias – encontra paralelo na luta dos Sem Terrinha pela preservação de seus territórios contra o avanço do agronegócio.
Assim, o MST prepara as crianças para compreenderem que as diferentes formas de violência – seja contra a terra, seja contra os povos – possuem a mesma origem: os interesses capitalistas que priorizam o lucro sobre a vida humana e ambiental. Através de atividades lúdicas, plantio de árvores, produção de cartas e desenhos de solidariedade, as crianças Sem Terrinha desenvolvem habilidades agroecológicas e valores de solidariedade internacionalista, revelando a verdadeira identidade Sem Terra.
No contexto mundial atual onde aproximadamente 22.500 crianças sofrem violações graves em conflitos e mais de 4.200 crianças palestinas foram vítimas do conflito em Gaza, entenda a importância da Jornada Sem Terrinha na formação das crianças Sem Terra a partir da entrevista com Luana Pommé, do Coletivo Nacional de Educação do MST:

Como a Jornada Sem Terrinha pretende traduzir a complexidade do conflito em Gaza para uma linguagem e atividades que sejam compreensíveis para as crianças, sem banalizar a gravidade dos fatos?
Luana Pommé: Explicar os motivos de uma guerra, explicar a existência das guerras no mundo para qualquer pessoa é um tema bastante complexo e difícil, difícil de compreender, difícil de entender a lógica. Fazer isso com crianças é ainda mais complexo.
No entanto, as crianças vivem os conflitos do seu cotidiano: as contradições da sociedade capitalista, das desigualdades, da pobreza; vivem as disputas por território nos seus territórios, de modo que as crianças vivem uma vida cheia de contradições. E a compreensão que as crianças podem ter sobre a luta de classes, essa dimensão mundial — e é muito pouco, ou melhor, sem nenhuma humanização — é o que, no limite, se concretiza nas guerras.
Mas, no caso da Palestina, há um grau maior ainda de dificuldade, que é o fato de termos que construir uma compreensão das crianças sobre o que é um genocídio, o que é um genocídio que envolve um povo inteiro, que envolve crianças. E é nesse sentido que é preciso ser objetivo, no sentido de explicar para elas exatamente o que está acontecendo. O genocídio em Gaza tem sido televisionado todos os dias, há muitos anos. Então, as crianças sabem que algo está acontecendo, sabem que crianças estão morrendo, sabem que famílias estão morrendo. O que se trata, portanto, é de conversarmos com elas sobre os motivos desse genocídio, sobre justamente a crueldade desse genocídio palestino.
Isso se dá justamente pela conexão que a gente possa fazer com a vida das crianças, no sentido da identificação dos conflitos, do que leva aos conflitos e de quais são os interesses envolvidos. E aí há a conversa, o diálogo, as atividades com as crianças envolvem também as diferentes formas de expressão — o desenho, o filme, a história, a contação da história infantil —, mas sempre com um pé naquilo que pode nos trazer as metáforas sobre a vida real, sobre a vida das próprias crianças Sem Terrinha.
A gente precisa ajudá-las a entender por que as coisas acontecem, e muitas vezes a gente subestima a compreensão que as crianças podem ter sobre a vida e sobre a morte, a compreensão que as crianças podem ter sobre o sofrimento.
De que forma a Jornada Sem Terrinha pode ajudar a construir uma consciência solidária entre as crianças diante da violência contra outras crianças na Palestina?
Quando a gente conta a história das Oliveiras, quando a gente conta a história da vida na Palestina — de como trabalham, de como vivem as crianças palestinas —, a gente constrói uma consciência e um olhar sobre aquele território como um lugar onde existe vida, onde existem crianças, onde crianças vão à escola, brincam, onde famílias produzem e plantam, e que vem sendo destruído: escolas, hospitais e toda a crueldade do conflito. Precisamos humanizar o território na sua narrativa, naquilo que as crianças enxergam da Palestina e do povo palestino. Isso é uma forma de conscientizar sobre o conflito, sobre o genocídio que acontece em Gaza.

Justamente porque essa violência contra os palestinos — e contra as crianças palestinas — vem sendo historicamente banalizada, diminuída, há um trabalho a ser feito desde as crianças sobre a importância de que o mundo se manifeste diante do que está acontecendo lá na Palestina.
E aí, contar a história da Palestina, contar a vida que existe na Palestina, é uma forma de construir uma consciência sobre a humanidade, de retomar a humanidade, no olhar sobre esse conflito.
Como conectar a luta das crianças Sem Terrinha pela terra e pela vida no Brasil com a realidade das crianças palestinas em meio à guerra?
Quando a gente trabalha com as crianças Sem Terrinha e conta a história da Palestina, a gente conecta a luta do Movimento Sem Terra à luta do povo palestino — em torno da terra, do seu chão, da defesa do território e da vida no território.
Quando as crianças Sem Terrinha participam da luta pela Reforma Agrária Popular, elas estão participando da luta pela sua própria vida, mas também de uma luta que faz parte de uma classe: a classe trabalhadora.
É importante trabalhar com as crianças para que elas entendam que a classe trabalhadora existe no mundo todo; entender que crianças que não possuem terra, que não possuem o que comer, que não possuem o direito de ir à escola existem no mundo todo, e conectar os diferentes países, as diferentes realidades, por meio da solidariedade, da consciência sobre o que acontece e por meio de ações efetivas e simbólicas. Ações que conectam e fazem com que elas se reconheçam em torno, inclusive, de suas lutas, é algo fundamental no contexto da formação das crianças Sem Terrinha.
Nesse trabalho com as crianças sobre as razões de por que a luta pela terra existe no Brasil e de por que a luta pela terra existe em outros lugares do mundo, ou mesmo de por que alguns países agem em relação a outros com interesses no território, com interesses em torno da acumulação capitalista, a própria vida cotidiana das crianças Sem Terrinha que vivem no acampamento, ou no assentamento, mas que conhecem a sua história de luta, se conecta a outros territórios e a outras crianças que vivem e sofrem o impacto da ação capitalista, em torno das suas vidas e dos territórios onde elas vivem.
Quando a gente consegue traduzir para a criança qual é a lógica, quais são os interesses e o que está colocado, por que algumas crianças são pobres, por que outras crianças têm mais possibilidades, isso conecta as crianças na linha da solidariedade internacionalista. E essa solidariedade internacionalista é fundamental na formação das crianças e na formação dos adultos, para nós, do Movimento dos Trabalhos Sem Terra.
Para além da conscientização, de que forma as crianças são incentivadas a se solidarizar e agir, mesmo que simbolicamente, transformando a indignação em gesto de apoio e humanidade?
Claro que todos esses elementos que a gente levanta devem ser trabalhados com as crianças de forma lúdica, por meio de diferentes linguagens. Então, por mais que o conteúdo seja bastante duro e complexo, ele precisa ser trabalhado. A diferença está em qual é a linguagem que a gente vai usar, qual é a linguagem que chega à criança, né?

Qual é a linguagem que a própria criança produz?
Então, é o desenho, é a carta, é a poesia, são os cartazes, as palavras de ordem, as músicas que as crianças podem produzir. Essas são tanto ferramentas quanto formas de aproximar as crianças da linguagem infantil, apesar de um conteúdo tão complexo que faz com que também se proponha às crianças produzirem em torno dessas linguagens que lhes são próprias, como manifestações de solidariedade no sentido de se expressar. Então é a palavra de ordem, que pode ser criada pelas próprias crianças, trabalhando o processo também de criação e de formação delas; são as cartas que, em algum momento, já foram enviadas em outras Jornadas para as crianças lá na Palestina. Cartazes, desenhos, pinturas, murais feitos nas escolas e todo tipo de manifestação.
É uma forma tanto de produzir uma ação que vem das próprias crianças, no sentido de elas também experimentarem a ação, e se configura como uma ação importante tanto do ponto de vista da denúncia para o mundo, quanto do ponto de vista da própria solidariedade com as crianças palestinas.
Como o debate sobre Gaza pode ser utilizado para reforçar, na prática, valores centrais da Jornada Sem Terrinha, como a defesa da vida, da justiça e do direito à terra, ou contra qualquer forma de opressão?
O lema da Jornada Sem Terrinha este ano é “defender a natureza e defender o nosso chão”. O que esse lema traduz para as crianças e como ele se conecta com o genocídio em Gaza? Como nossa Jornada traz também a dimensão dos conflitos e das contradições no Brasil, e da ofensiva de todo tipo de expressão do capital na agricultura, seja por meio do agronegócio, da mineração, e de como essa exploração atinge as crianças do campo? Qual é a importância de que a gente, como humanidade, defenda a natureza?
O capital não está interessado nisso — muito pelo contrário, vem impulsionando a sua destruição à exaustão. Destruir a natureza é também destruir a vida no campo e a possibilidade de uma vida digna no campo. Então, é a partir da defesa da natureza e da defesa da agroecologia, como projeto da Reforma Agrária Popular, que se constrói a possibilidade de as crianças terem um chão. E esse chão é o chão onde se brinca, onde se estuda, onde se vive, onde se cultiva a natureza e onde se trabalha.
Nesse sentido, defender a natureza é necessariamente lutar contra todas as formas de expressão do capital. Em Gaza, o que acontece é uma disputa por um território, por um solo, e ali há interesses capitalistas envolvidos, há o impulsionamento desse genocídio por parte do imperialismo, por parte dos Estados Unidos, com interesses econômicos e políticos.
E qual é a primeira ação que se faz no território de Gaza? Impedir que as famílias possam colher suas olivas, derrubar as Oliveiras e acabar com qualquer possibilidade de vida, da natureza e dos seres humanos naquele território, guiados por um interesse capitalista. Isso conecta as nossas lutas, e é assim que a gente dá a dimensão internacionalista da nossa Jornada: na defesa do chão de todas as crianças do mundo, contra o avanço dos interesses imperialistas e contra o genocídio das crianças palestinas.
Defender a natureza e defender o nosso chão. E é uma luta em qualquer lugar do mundo“.
*Editado por Solange Engelmann