Resistência

FMLN: da luta guerrilheira ao legado anti-imperialista na América Latina

Artigo ressalta história da Frente Farabundo Martí e como ela ainda desafia o autoritarismo em El Salvador

Celebração dos Acordos de Paz, 1992. Foto: Reprodução

Por Giovani del Prete*
Da Página do MST

Durante mais de quatro décadas, a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) tem sido um dos símbolos mais duradouros da resistência popular latino-americana. Nascida nas montanhas de El Salvador, forjada na luta contra a ditadura e o imperialismo, a FMLN percorreu um caminho que vai da insurgência armada à experiência de governo e, hoje, à resistência diante do governo fascista de Bukele. Sua história é também a história das contradições, esperanças e desafios das forças revolucionárias do continente na disputa por soberania, democracia e justiça social.

Das montanhas à institucionalidade

A Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) nasceu em 10 de outubro de 1980, em meio à repressão militar e à crise estrutural que atravessava El Salvador e toda a América Central. Foi fruto da unificação de cinco organizações guerrilheiras — FPL, ERP, RN, PCS e PRTC — que decidiram unir forças diante da ditadura oligárquica e da intervenção norte-americana. Durante a década de 1980, a FMLN liderou uma guerra popular prolongada contra o Exército salvadorenho, amplamente financiado e treinado pelos Estados Unidos. A Frente chegou a controlar amplas zonas do país, construindo formas embrionárias de poder popular e conquistando respeito internacional como expressão legítima do povo em armas. Com o fim da Guerra Fria e a assinatura dos Acordos de Paz de Chapultepec, em 1992, a FMLN iniciou sua transição da luta armada à disputa política e eleitoral. Essa nova etapa coincidiu com a ofensiva neoliberal em toda a região, o que exigiu da Frente a reorganização, paciência e unidade para resistir e disputar corações e mentes em um contexto adverso.

Durante os anos 1990 e 2000, a FMLN se consolidou como principal força popular de oposição aos governos da ARENA. Depois de quase duas décadas de resistência institucional, em 2009 a história mudou de rumo: Mauricio Funes venceu as eleições nacionais, e pela primeira vez o povo salvadorenho levou a esquerda ao governo.

Governo popular e desafios do poder

Os governos da FMLN (2009–2019) abriram um novo ciclo de esperança em El Salvador. Sob Funes e depois Salvador Sánchez Cerén, ex-comandante guerrilheiro, o país iniciou um processo de reconstrução social e política. Entre os principais avanços, destacaram-se o fortalecimento das políticas públicas, a ampliação do acesso à educação e à saúde, o aumento do salário mínimo e a valorização da memória histórica. O governo também lançou programas de apoio à agricultura familiar e reforçou os vínculos regionais com os países da ALBA, integrando El Salvador à onda progressista latino-americana. Mas o caminho não foi fácil. A herança neoliberal, o boicote das elites e a guerra midiática constante dificultaram transformações estruturais. Internamente, a FMLN enfrentou desgaste político e dificuldades de renovação. Esse distanciamento da base social foi um dos fatores que abriram espaço para o surgimento de Nayib Bukele, ex-prefeito eleito pela própria FMLN, que em 2019 se voltou contra o partido e capitalizou o descontentamento popular.

Reconstrução e resistência no presente

Hoje, a FMLN vive uma das fases mais desafiadoras de sua história. O regime de Bukele concentra poderes e reprime a oposição, instaurando uma nova forma de autoritarismo em El Salvador. A criminalização da dissidência e o desmonte das instituições democráticas representam um retrocesso histórico para os direitos conquistados. Diante desse cenário, a FMLN tenta reconstruir-se a partir das bases. O debate interno gira em torno da renovação da direção, da formação política e da necessidade de reconectar-se com os setores populares, camponeses, trabalhadores e juventudes. É um processo de autocrítica e reinvenção, buscando recuperar a essência revolucionária que fez da Frente um símbolo continental. Como apontam militantes históricos, trata-se de “voltar às origens sem renunciar às lições aprendidas”, atualizando o projeto socialista diante das novas formas de dominação — digitais, financeiras e culturais — que o imperialismo impõe na região.

O legado da FMLN para a luta latino-americana

O exemplo da FMLN transcende as fronteiras de El Salvador. Seu percurso demonstra que a unidade das forças populares é condição indispensável para enfrentar o imperialismo e as oligarquias locais. Que a luta pela libertação nacional não termina com a conquista do governo, mas está viva na construção de poder popular real. A trajetória da Frente também é uma lição sobre o valor da organização, da disciplina e da solidariedade internacional. Assim como o MST, a FMLN forjou sua força na pedagogia da resistência e na convicção de que só o povo salva o povo. Hoje, em tempos de avanço do fascismo e das ameaças e guerras híbridas promovidas pelos Estados Unidos em todo o continente, o legado da FMLN inspira novas gerações de lutadores e lutadoras que sonham e constroem uma América Latina livre, soberana e socialista. Mais do que uma sigla, a FMLN é símbolo de que os povos, quando se organizam diante de uma estratégia revolucionária e socialista, são capazes de transformar a história.

*Giovani del Prete é membro da Coordenação Nacional do Movimento Brasil Popular e da Secretaria Continental da ALBA Movimentos

**Editado por Fernanda Alcântara