Experiências
“Olhares Cruzados pela Terra”: livro narra 40 anos de história e luta do MST
Idealizado pela fotógrafa e educadora Dirce Carrion, o projeto construiu uma narrativa coletiva que percorre memórias, saberes e territórios, celebrando os 40 anos do MST e projetando novas visões de futuro

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
A arte da fotografia e das palavras é uma poderosa ferramenta capaz de eternizar instantes, capturar a essência de um momento e imortalizar a trajetória de comunidades e movimentos. Com essa sensibilidade, o projeto Olhares Cruzados pela Terra construiu uma narrativa coletiva que percorre memórias, saberes e territórios, celebrando os 40 anos do MST e projetando novas visões de futuro.
O projeto nasceu do desejo de unir gerações em torno da história viva da Reforma Agrária Popular. Com uma proposta intergeracional, crianças e jovens entrevistaram assentados e assentadas que participaram da luta pela terra, registrando lembranças e percepções sobre as transformações sociais e ambientais de seus territórios.
Idealizado pela fotógrafa e educadora Dirce Carrion, o projeto teve início em uma roda de conversa com educadores do Instituto Educar, no assentamento da antiga fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul. A experiência, que começou em 2023, se expandiu para escolas de assentamentos nas cinco regiões do Brasil, envolvendo educandos, fotógrafos, documentaristas e pesquisadores em oficinas, expedições e rodas de memória.
Mesmo com o adiamento do 7º Congresso Nacional do MST, que aconteceria em 2024, o coletivo manteve o compromisso com a Luta e seguiu adiante com a produção do livro, do documentário e da exposição. O livro Olhares Cruzados pela Terra – MST 40 anos alimentando o Brasil foi lançado em outubro de 2025, durante o Encontro de Escritores e Pesquisadores, na própria Annoni, marco histórico da ocupação que deu origem ao Movimento.

Como surgiu a ideia do projeto “Olhares Cruzados pela Terra” para registrar a trajetória do MST e sua relação com a agroecologia e os desafios climáticos?
Dirce Carrion: A ideia surgiu em abril de 2023, quando retornei ao assentamento da antiga fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, depois de 38 anos. Fiquei impressionada com a transformação do que era uma terra nua e improdutiva em um exemplo de produção de alimentos, com cooperativas, agroindústrias e escolas, como o Instituto Educar. Conversando com educadores de lá, veio a ideia de realizar uma edição do “Olhares Cruzados” para contar essa trajetória de 40 anos do MST. A partir daí, amadurecemos uma proposta para envolver assentamentos de diferentes regiões do Brasil no resgate da memória do Movimento, com atenção especial aos impactos da crise climática.
Para abordar essa temática, buscamos a parceria com a Resama (Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais), que tem experiência na área. O projeto foi apresentado à coordenação dos 40 anos do MST e acolhido pelo setor de Educação do Movimento, que iniciou a articulação com os polos regionais. Embora eu não seja organicamente do MST, acompanho e apoio as ações do Movimento desde o início. Em 29 de outubro de 1985, participei da ocupação da fazenda Annoni, como parte de um coletivo de universitários que documentava os movimentos sociais emergentes.
Poderia explicar a abordagem “intergeracional” do projeto, na qual os jovens colhem relatos dos mais velhos sobre a história dos assentamentos e as memórias climáticas?
Dirce Carrion: “Olhares Cruzados” é um projeto da Imagem da Vida, uma OSC que criei com um coletivo em 2004, com a perspectiva de valorizar a contribuição dos povos africanos para a identidade brasileira. Desde sua criação, o projeto desenvolveu metodologias baseadas em registros fotográficos e entrevistas protagonizadas por crianças e jovens com as pessoas mais velhas de suas comunidades. A memória da ocupação da terra é fundamental para dar significado à luta. Da mesma forma, a observação das mudanças no clima ao longo de décadas é crucial para a adaptação dos territórios.
Ao pesquisar a própria história, os mais jovens exercitam a escuta atenta, dando significado às lutas e saberes transmitidos pelas gerações mais antigas. Esta é a 16ª edição do projeto, que já contemplou cerca de 80 mil educandos em diversos países da África e América Latina, além de vários estados brasileiros, mas é a primeira vez que realizamos em um assentamento do MST.

Como foi a recepção da obra nesse reencontro de gerações, justamente no território que inspirou toda a iniciativa? E qual foi a sensação de fechar esse ciclo, devolvendo as histórias para a comunidade onde tudo começou?
Dirce Carrion: O livro Olhares Cruzados Pela Terra é o resultado de um projeto pensado e desenvolvido coletivamente, protagonizado por jovens educandos de escolas do campo das cinco diferentes regiões do Brasil. Eles pesquisaram e entrevistaram assentados que participaram da luta pela terra, para registrar suas memórias e percepções sobre as mudanças nos territórios.
Ter a oportunidade de lançar o livro na fazenda Annoni, que inspirou essa iniciativa, é particularmente emocionante. É muito gratificante ver a receptividade, tanto dos educandos quanto dos assentados que compartilharam suas histórias.
A sementinha desse projeto foi plantada em meados dos anos 1980, quando fazíamos parte do Núcleo de Vídeo e Documentação (NVD), que atuava junto aos movimentos populares urbanos e do campo que eclodiam no final da ditadura.
Era a madrugada de 29 de outubro de 1985, quando o silêncio da noite foi rompido por passos de milhares de pessoas e pelo ronco dos motores de dezenas de caminhões que chegavam de todos os lados. O arame do latifúndio improdutivo foi cortado, abrindo caminho para a esperança — a mesma que move centenas de milhares de trabalhadores rurais que lutam pelo direito à terra e pela Reforma Agrária Popular.
É uma honra ter estado ali naquele momento e, 40 anos depois, poder demonstrar o profundo respeito que tenho pelo Movimento contribuindo com este livro.
Após o adiamento do Congresso Nacional do MST, como o projeto se rearticulou para garantir que o livro, o documentário e a exposição chegassem às bases do Movimento em todo o país?
Dirce Carrion: A ideia do projeto nasceu no início de 2023 em uma roda de conversa com educadores do Instituto Educar, no assentamento da antiga fazenda Annoni. A partir dali, a proposta foi amadurecendo e se somou às comemorações dos 40 anos de fundação do Movimento. Como o projeto é fruto de ações educativas desenvolvidas em escolas de assentamentos das cinco regiões do Brasil, mesmo sem recursos, uma equipe de voluntários iniciou as viagens para a realização das oficinas com os educandos, concluídas em maio de 2024.
Com o adiamento do Congresso, a nossa equipe se desmobilizou, mas ficou o compromisso com a Luta, com os educandos e com todos os assentados que haviam participado do projeto e nos acolhido com tanto carinho. Em maio de 2025, quando soubemos das articulações para a comemoração dos 40 anos na ocupação da Annoni, o coletivo se rearticulou e retomou a edição do livro, que foi possível graças ao apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, responsável por viabilizar a impressão de 3.000 exemplares.
Quais foram os novos caminhos e estratégias encontrados para a divulgação e distribuição dos materiais?
Dirce Carrion: A distribuição do livro é gratuita e vem ocorrendo em eventos do Movimento. Estão previstos também outros lançamentos, além da preparação de versões em inglês e espanhol para ampliar o alcance internacional. Estamos programando as devolutivas nos assentamentos participantes, mas a ideia é que o livro chegue também às escolas do campo, da cidade e às universidades, para que um maior número de pessoas conheça melhor a história do MST, a Reforma Agrária Popular e as propostas do Movimento para o enfrentamento da crise ambiental.
Ainda estamos buscando recursos para viabilizar a finalização do documentário Olhares Cruzados Pela Terra, mas estamos otimistas: com a receptividade do livro, acreditamos que tanto o documentário quanto a exposição se tornarão realidade.
A coordenação da ação ocorreu por meio do Coletivo Imagem da Vida e a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (Resama), de forma compartilhada com a Equipe dos 40 anos do MST e o setor de Educação do MST.


O Olhares Cruzados pela Terra também traz a colaboração da Resama, que contribui com a pesquisa sobre os impactos da crise climática nas comunidades camponesas. Segundo as pesquisadoras Érika Pires Ramos e Ariana Monteiro, coidealizadoras da parceria, o projeto “coloca as comunidades camponesas na linha de frente do enfrentamento à crise climática, mostrando que elas já desenvolvem soluções para mitigar e adaptar seus territórios aos impactos ambientais, enquanto fortalecem a soberania alimentar e a justiça climática”.
As oficinas realizadas nos polos regionais de educação do MST — Amazônia, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste — conectaram biomas, saberes e histórias, resultando em um mosaico de experiências que revela a força e a diversidade da Reforma Agrária Popular. A partir das narrativas visuais e das vozes dos assentamentos, o livro e o futuro documentário reafirmam que a luta pela terra é também uma luta pela preservação da vida e pela construção de um futuro sustentável.
Confira algumas das fotos:

*Editado por Solange Engelmann


























