Consciência Negra

Pode um feriado contribuir com a luta antirracista?

Transformado em feriado nacional, o 20 de novembro renova o compromisso social de enfrentar o racismo e valorizar a memória e a luta do povo negro.

Foto: Coletivo de Comunicação do MST na Bahia

Por Simone Magalhães*

Antes mesmo de ser declarado feriado nacional, por meio da Lei Nº 14.759, de 21 de dezembro de 2023, o dia 20 de novembro já sofria ataques e tentativas de desqualificação quando declarado o Dia da Consciência Negra no Brasil, já em 2003. Neste ano, o 20 de novembro passou a constar no calendário escolar como o Dia da Consciência Negra, mas foi em 2011, por meio da Lei nº 12.519, que a data seria oficializada como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Contudo, o Dia da Consciência Negra não era um feriado nacional, mas um feriado facultado aos estados e municípios, mediante leis específicas. Por ser um feriado, o Dia da Consciência Negra enfrenta questionamentos dos dois lados do espectro político. Pela direita, é comum o argumento de que a data criaria privilégios, estimularia o vitimismo e acentuaria divisões entre grupos sociais. Já pela esquerda, alguns indivíduos afirmam que teriam existido formas de escravização em Palmares e, por isso, colocar Zumbi como herói seria uma forma de romantizar sua figura. Além disso, há quem considere que dedicar apenas um dia para celebrar a memória e a luta da população negra não seria suficiente para promover a efetiva conscientização.

Para entender a relevância dessa data e o dia como feriado nacional, bem como a importância social, política e simbólica para a população Negra, analisaremos a seguir alguns aspectos.

Foto: Manuela Hernández

O 20 de novembro como Dia da Consciência Negra 

Aprendemos na escola, transmitida pela historiografia brasileira, que no dia 13 de maio de 1888 ocorreu a extinção da escravidão no Brasil pelas mãos da Princesa Isabel, que assinou o decreto da abolição. De posse dessa narrativa oficial, tinha-se a ideia de que o fim da escravidão, do trabalho forçado que submetia toda a mão-de-obra no Brasil colônia, das inúmeras violências impostas ao povo africano e a seus descendentes acabaram por meio do referido decreto. Contudo, alguns pesquisadores informam que na época do 13 de maio de 1888, “80% dos negros já tinham ganho a liberdade pela carta de alforria ou como resultado da luta abolicionista no Brasil”, conforme explicou a antropóloga Claudia Alexandre (USP), em entrevista ao jornal Valor Econômico. Portanto, a narrativa da Abolição como oriunda do referido decreto induzia a um erro histórico e não contribuía para que o povo negro conhecesse a sua história e o seu papel na formação social do país. Por esse motivo, intelectuais, artistas e lideranças negras, passaram a questionar o mito da Abolição que se construiu em torno do decreto assinado no 13 de maio, e passaram a construir novos sentidos políticos a partir da materialidade histórica que era desvelada. 

A realidade concreta é flagrantemente reveladora de que mais da metade da população brasileira é negra, composta de pessoas pretas e pardas, que até os dias atuais configura a parcela populacional mais impactada pela desigualdade social, pela violência do Estado, pelo analfabetismo, pelo feminicídio, pela baixa remuneração, pela discriminação, pelo encarceramento, pelo racismo, entre outras mazelas sociais. Nesse sentido, surge a necessidade de construir uma efeméride que contasse a história a partir da perspectiva do povo negro, que simbolizasse a sua resistência, que reivindicasse seu legado de luta e ao mesmo tempo denunciasse as investidas do Estado para apagar a história deste povo no país, mas, principalmente, que fosse capaz de revelar o projeto de sociedade que Palmares representou, foi o objetivo que levou quatro jovens a fundarem o Grupo Palmares, em 20 de julho de 1971, na cidade de Porto Alegre/RS, e a indicar o 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695.  

Foto: Manuela Hernández

Cabe o Dia da Consciência Negra ser um feriado nacional?

A tentativa de apagamento da história social, política, econômica e cultural do povo negro pela historiografia oficial, bem como a situação de desigualdade social à qual estava submetida a população negra, mobilizaram o Movimento Negro, que a partir de Porto Alegre, passou a indicar o 20 de novembro em substituição ao 13 de maio. Desde 1971 o movimento pautaria essa perspectiva e, em 1978, teve amplidão e ganhou mais força com os atos de rua realizados pelo Movimento Negro Unificado (MNU) em São Paulo, a partir de 1978, como explica Lélia Gonzalez (1982, p. 57):

“Graças ao empenho do MNU, ampliando e aprofundando a proposta do Grupo Palmares, o 20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do povo negro, justamente naquilo em que ele demonstrou sua capacidade de organização e de proposta de uma sociedade alternativa; na verdade, Palmares foi o autêntico berço da nacionalidade brasileira, ao se constituir como efetiva democracia racial e Zumbi, o símbolo vivo da luta contra todas as formas de exploração”.

Nesse sentido, o dia 13 de maio passou a ser visto como uma data oficial com significado institucional para os órgãos governamentais, porém, para o Movimento Negro, trata-se de um dia para a denúncia das condições de exploração, de discriminação racial, da desumanização pela violência, da repressão policial entre outros. 

Foto: MST/BA

Já o Dia 20 de novembro, além de ser uma data para a afirmação da identidade negra, é uma data para a realização de ações que exigem a garantia de direitos, que atualiza a luta contra o racismo, que promove espaços de formações, que convida a sociedade a assumir o combate ao racismo, em defesa da vida e da diversidade, bem como conhecer as práticas antirracistas que as comunidades promovem e fortalecem.

Ainda que fosse apenas um dia de descanso, o feriado do 20 de novembro carrega a potência e a força simbólica capazes de ajudar a sociedade a repactuar politicamente o compromisso de combater o racismo e de criar alternativas para a superação de desigualdades sociais e raciais.

Mas não é apenas disso que se trata, mas de um espaço conquistado no terreno da luta de classes, para pautar a constituição de uma classe trabalhadora que por suas características genéticas, fenotípicas e culturais foi e continua sendo racializada e subordinada às piores condições de trabalho, de moradia e exposta a diversas formas de violência com o objetivo de ser desumanizada pela dor, pelo medo e pelas criminalizações. Portanto, o feriado do 20 de Novembro é o espaço público legalmente instituído de participação social e popular para a construção de consensos políticos de combate ao racismo, bem como para acumular no debate e incidir na elaboração de políticas de reparação, justiça e democracia, necessárias ao processo de construção da sociedade antirracista, antipatriarcal e anticapitalista.

Foto: MST/BA
Referências

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2025/11/19/por-que-20-de-novembro-e-o-dia-da-consciencia-negra-entenda-o-significado-da-data.ghtml

GONZALEZ, Lélia; HALSENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Editora Marco Zero, Rio de Janeiro, 1982.

*Simone Magalhães é educadora popular, faz parte do Coletivo Terra, Raça e Classe e do Setor de Internacionalismo do MST.