BRICS Brasil
BRICS Popular encerra encontro no Rio com plano de ação contra hegemonia dos EUA
Durante três dias no Rio, mais de 20 lideranças sociais e autoridades de países do BRICS discutiram estratégias para desdolarização, soberania tecnológica e solidariedade à Palestina, Venezuela e Cuba

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
O histórico Galpão da Utopia, no Rio de Janeiro, recebeu na semana passada um encontro com representantes de movimentos sociais, parlamentares e especialistas de países do BRICS. Com o objetivo foi de construir uma agenda comum do Sul Global, mais de 150 convidados participaram da Cúpula Popular dos BRICS. A missão foi pressionar os governos do bloco por ações mais contundentes e radicais diante das múltiplas crises.
Ao longo de três dias, a Cúpula diagnosticou o colapso da ordem unipolar liderada pelos Estados Unidos, apontada como responsável por genocídios, bloqueios econômicos e uma arquitetura financeira ineficaz. A hegemonia do dólar foi novamente denunciada como ferramenta de guerra e extorsão. Com a Palestina, Venezuela, Cuba e outras nações sob ataque, a soberania destas nações ocupou o centro dos debates.


Os participantes convergiram na análise de que o BRICS é o principal instrumento geopolítico para edificar uma nova governança multipolar. No entanto, criticaram a lentidão e a falta de ousadia do bloco oficial. Assim, a Cúpula Popular delineou alguns passos urgentes: acelerar a desdolarização, desenvolver soberania tecnológica com inteligência artificial própria e fortalecer o Banco de Desenvolvimento do bloco e organizar uma rede permanente de movimentos sociais para monitorar e radicalizar as ações dos governos.
Com a organização do Conselho Civil dos BRICS, realização do Instituto Lima Barreto e apoio da Acace e da Petrobras, o encontro teve início com a mesa de abertura e falas em torno de um diagnóstico da ordem mundial atual em colapso. No painel sobre multipolaridade, o embaixador brasileiro Maurício Lyrio afirmou que a presidência brasileira priorizou o combate à fome e uma governança da inteligência artificial orientada pelo Sul Global. Já a professora Ana Garcia (UFRJ) defendeu a desdolarização como passo essencial para enfrentar o poder estrutural norte-americano.
É inaceitável que os recursos para a cooperação internacional sejam controlados exclusivamente pelos ministros das finanças. Queremos ter voz para que projetos de interesse público também possam acessar os fundos do BRICS, porque sem recursos, será muito difícil concretizar as boas ideias de cooperação que todos compartilhamos”
— João Pedro Stedile, do MST.
Chamado à ação contra-hegemônica e maior radicalidade

O segundo dia de trabalhos aprofundou a crítica à crise terminal da ordem unipolar. O jornalista Breno Altman avaliou que “o mundo vive um conflito entre uma ordem antiga em colapso e uma nova que ainda não nasceu” e criticou a incapacidade do BRICS de agir de forma contundente diante do genocídio em Gaza. Outros debatedores, como o pesquisador indonésio Ah Maftuchan, a sul-africana Arina Smith, o etíope Ahmed Hussen e o major-general indiano B K Sharma, convergiram na necessidade de o bloco se tornar uma plataforma de base social, com participação civil real e mecanismos que superem as instituições financeiras tradicionais.
A natureza da sociedade civil é advogar pelos grupos marginalizados, garantir políticas públicas e as necessidades humanitárias. A sociedade civil pode ajudar e garantir investimentos socialmente responsáveis, já que estamos mais próximos das pessoas e temos mais informações e conexão com a sociedade”.
— Ah Maftuchan, Indonésia
Após as mesas, os debatedores reforçaram propostas concretas. Palestina, Venezuela, Cuba e outras nações sob sanções ou agressões que foram citadas como símbolos da luta contra o imperialismo. O argentino Gonzalo Armúa sugeriu uma agenda BRICS 2030 por reformas multilaterais, incluindo a transformação do Conselho de Segurança da ONU e a construção de uma nova arquitetura financeira com desdolarização e fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). A colombiana Luz Angela destacou que os povos já possuem formas próprias de governança em seus territórios e que, se os governos se mostrarem encurralados, caberá aos movimentos populares enfrentar o imperialismo na defesa concreta da terra.

Durante a tarde, houve apresentação dos Grupos de Trabalho com planos setoriais. Em Saúde, destacou-se a defesa de sistemas públicos fortalecidos. Em Educação, a vice-presidenta sul-africana Margaret Molefe defendeu a cooperação e o reconhecimento mútuo de diplomas. Em Ecologia, Maria Beatriz articulou a crise ambiental com economia e paz. Em Finanças, Samuel Spellmann propôs uma plataforma financeira conjunta. Já em Tecnologia, a russa Irina Kostetskaya alertou para a dependência de modelos ocidentais de IA.
[Os BRICS] serão muito eficazes quanto maiores forem a legitimidade das instituições, o reconhecimento da natureza como bem comum e a participação das forças civis e populares no desenho de alternativas”
— Samuel Spellmann, Brasil
O encerramento do dia consolidou a visão de que, embora a ordem unipolar esteja em colapso, sua força decadente não cairá sozinha. O consenso foi de que os BRICS precisam, com urgência, converter-se de um fórum de diagnósticos em um bloco de ação contra-hegemônica.
Ao final do segundo dia, os participantes foram integrados à cultura brasileira em uma visita à quadra da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Houve apresentação de integrantes, visita ao museu e um jantar com feijoada, prato típico que simboliza a resistência cultural e a diversidade do povo brasileiro.


Novas arquiteturas e agenda de ações efetivas
O último dia de debates começou com a mesa sobre “Nova arquitetura financeira”. O secretário Antonio Freitas foi cético quanto à viabilidade de uma moeda única do BRICS, considerando-a um exercício político “impraticável” no momento, mas defendeu mecanismos mais pragmáticos. O acadêmico russo Denis Melnik argumentou que qualquer projeto de desenvolvimento soberano depende do controle sobre os recursos naturais.
Não quero entrar no embate do que deveria ter sido feito, mas vou falar do desenvolvimento sustentável, que tem resultados e que é acumulação de capital. O que é capital? É o objeto de desenvolvimento econômico, não somente minério e dinheiro.”
— Denis Melnik, Rússia.
Representando a China, Zheng Wei apresentou iniciativas práticas em curso, como a criação de canais digitais entre bancos centrais. Dra. Hadriani Uli Silalahi, da Indonésia, compartilhou a experiência bem-sucedida do sistema de pagamento digital por QR Code.
No debate, a brasileira Juliane Furno apontou os limites do processo de desdolarização, observando que o dólar ainda domina 88% das transações. Raymond Matlata, da África do Sul, enfatizou a necessidade de uma reforma que promova a “descolonização” da arquitetura financeira. O debate reforçou que a construção de uma arquitetura financeira alternativa é um caminho irreversível para o Sul Global.

As falas dos representantes reforçaram um diagnóstico comum: embora a transição seja lenta e cheia de obstáculos técnicos e políticos, a construção de uma arquitetura financeira alternativa, menos dependente do dólar e mais voltada para o desenvolvimento soberano, é um caminho irreversível e estratégico para o Sul Global.
Os BRICS são uma esperança para os países do Sul, mas às condições não são as mesmas para todos os países. A exemplo nós, do México, que compartilhamos mais de 3 mil km de fronteira com os EUA. Falamos “cooperação sim, submissão não”. Bancamos hoje a dívida, e mais de 13 milhões de pessoas saíram da pobreza no México“
— Alina Duarte, México.
Durante a tarde, o grupo discutiu soberania tecnológica, solidariedade internacional e a urgência de uma governança global alternativa. O representante do Irã, David Karin, denunciou o impacto das sanções ocidentais sobre o sistema de saúde de seu país. João Pedro Stedile, do MST, fez um balanço político, afirmando que “não há solução para a crise ambiental partindo dos capitalistas, responsáveis por ela”, e apresentou um resumo dos debates que será apresentado aos sherpas dos BRICS.
A conselheira russa Victoria Panova reforçou a necessidade de ações práticas, como derrubar o uso do dólar. Ela defendeu a criação de uma “unidade de conta” utilizável em todos os países do BRICS. Maria del Carmen Barroso, representando Cuba, destacou o interesse e importância da ilha em integrar formalmente o Conselho Popular dos BRICS. O major-general indiano B K Sharma celebrou o caminho percorrido e valorizou o papel da sociedade civil.

A sessão foi encerrada com a leitura de uma mensagem de solidariedade do presidente venezuelano Nicolás Maduro e de uma nota do CEBRAPAZ em apoio à Venezuela, reafirmando o compromisso coletivo com a soberania dos povos e a construção de um mundo multipolar. O encontro deixou claro que, para os movimentos populares, a disputa pela nova ordem global passará do debate para a ação coordenada e a pressão constante sobre os governos.
Em suas considerações finais, João Pedro Stedile sintetizou encaminhamentos práticos: a criação de uma rede de intercâmbio, um documento sobre os princípios fundadores do BRICS Popular, um plano de trabalho mínimo e uma reunião virtual com a presidenta do NDB, Dilma Rousseff. Os debates formais foram encerrados com a festa “Noite Internacionalista”, que contou com a presença da homenageada Anita Prestes, filha de Olga Benário e do militante comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, simbolizando a luta histórica pela justiça social e a resistência política.
Precisamos ser mais resilientes, fazer coisas práticas e concretas. Também precisamos garantir que o Banco BRICS possa fazer coisas concretas, com todo o potencial que tem. Temos que derrubar o uso do dólar. A porcentagem de investimentos feitos em moedas locais ainda é insuficiente, então precisamos buscar maneiras de aumentar esses números“,
— Victoria Panova, Rússia.
No último dia do evento, os participantes fizeram uma visita guiada ao Rio de Janeiro, com destaque especial para a região conhecida como Pequena África, ponto turístico e histórico que abrange áreas do centro portuário e é símbolo da profunda herança africana na formação cultural e social brasileira, sendo um território de memória e resistência da população negra.
Por fim, a Cúpula Popular dos BRICS terminou com um resumo que sintetizou cinco consensos: a necessidade de uma nova ordem internacional, a desdolarização como imperativo humanitário, a solidariedade irrestrita à Palestina, a condenação às sanções unilaterais e a multipolaridade como projeto civilizatório. A mensagem foi clara: um novo mundo está em construção, e o BRICS Popular quer estar no centro desse processo.
Confira abaixo a cobertura em fotos:
*Editado por Solange Engelmann






















































































































































































































































































