Memória

Da invasão no Panamá à recolonização (1989–2025)

'Passados 36 anos da invasão do Panamá, um império em irreversível decadência ameaça invadir a Venezuela'

“O Panamá é livre e soberano!” defendiam os manifestantes contra a interferência de Trump no país. Crédito: MARTIN BERNETTI/AFP

Por Stella Calloni | Porto Alegre (RS)
Do Brasil de Fato

Em 22 de dezembro de 2024 o então presidente eleito pela segunda vez nos Estados UnidosDonald Trump, ameaçou “recuperar” o controle total do Canal do Panamá sob argumento de que seu país o construiu e, portanto, nunca permitiria que este caísse “em mãos equivocadas”, em referência à China, que nada tinha a ver com a administração do canal.

Além disso, ele considerava muito altas as tarifas cobradas pela administração do canal, que está nas mãos dos panamenhos desde 1999, data acordada nos tratados assinados pelo ex-presidente americano James Carter e pelo general panamenho Omar Torrijos em 1977.

Entre outros argumentos falsos, alegava que 38 mil norte-americanos morreram na construção do Canal do qual se apoderou os Estados Unidos. Na realidade, os milhares de mortos eram jamaicanos, escravizados negros e indígenas, os mais pobres entre os pobres. Nenhum panamenho firmou o infame Tratado de 1903 para os EUA construir o canal e apoderar-se colonialmente do país.

Não se pode analisar o presente sem recordar que em 1989 os Estados Unidos invadiram o Panamá e que desde então este país esteve sob controle de Washington e especialmente do Pentágono.

Presidente do Panamá, Jose Raul Mulino, e dos EUA, Donald Trump. Crédito: AFP

A decisão de Trump de apropriar-se do canal não surpreende e foi transmitida diretamente pelo secretário de Estado Marco Rubio, de sinistros antecedentes, já que pertence ao lobby cubano de Miami e da fundação Más Canosa, a cara política do terrorismo cubano-americano, que atua não somente contra Cuba, como contra todos os governos não submissos da América Latina.

O atual governo do direitista e pró-estadunidense, José Raúl Mulino, firmou acordos que significam um processo escancarado de recolonização do Panamá, provocando rebeliões do povo panamenho que durante anos lutou heroicamente contra a ocupação colonial da chamada Zona do Canal (Canal Zone) pelos Estados Unidos e contra a presença das bases militantes do Comando Sul, tristemente célebre em toda a região.

Durante o governo de Mulino a repressão tem sido a resposta, produzindo feridos e detidos em diversos lugares e é evidente que a nova polícia — depois de ter destruído durante a invasão de 1989 as nascentes Fuerzas de Defensa de Panamá, educadas para a segurança do país —, no âmbito da Doutrina de Segurança estadunidense, que semeou ditaduras em toda a América Latina durante o século XX.

Consequências da invasão

“O interesse estadunidense no Panamá sempre se concentrou em um ponto: a importância estratégica do canal. Ele tem sido crucial para suas operações globais, como a penetração capitalista na América Latina e na Ásia, e para sua capacidade de deslocar forças militares de forma agressiva por todas as partes do mundo”, assinala um artigo publicado em espanhol e em inglês intitulado “La Neta de la Revolución”.[1]

O artigo também avalia que, “por meio da invasão de 1989, os Estados Unidos intensificaram sua dominação sobre o Panamá e sobre toda a América Latina”.

Tratou-se de uma das primeiras ações dos Estados Unidos para se impor como a única superpotência após o colapso da União Soviética. No ano seguinte, o país lançaria a Primeira Guerra do Golfo Pérsico (1990–1991), segundo o mesmo artigo ao se referir à operação “Tempestade no Deserto” contra o Iraque, que deixou milhares de mortos e antecipou o que viria a ser a invasão de 2003 para ocupar o país.

Este artigo que expressa uma opinião de investigadores estadunidenses menciona que “A invasão do Panamá foi uma guerra ianque vergonhosa e mentirosa”, referindo-se ao fato de que as tropas norte-americanas não fizeram o menor esforço por limitar-se a alvos militares, como demonstrou a quantidade de casas e edificações que foram afetadas, como o caso do bairro El Chorrillo, de casas de madeira que haviam sobrevivido desde a construção do Canal do Panamá, totalmente destruído pelo incêndio provocado pelos bombardeios. Nada foi feito para evitar a destruição e outros efeitos produzidos por atacar um bairro tão popular nessas condições.

Camponeses participam de um protesto contra a construção de um reservatório na bacia do rio Indio, província de Colón, Panamá, em 16 de maio de 2025. Crédito: MARTIN BERNETTI / AFP

“A invasão teve objetivos políticos encobertos. Os militares norte-americanos seguiam a tática do general Colin Powell, chefe do Estado-Maior em Washington, de fazer uso máximo da força para esmagar o inimigo. No caso do Panamá, essa tática era desnecessária e, além disso, cruel, já que as Forças de Defesa não dispunham de aviões nem de tropas de combate”, escreveu Marco A. Gandásegui, professor da Universidade do Panamá e pesquisador associado do Centro de Estudios Latinoamericanos (CELA), em 20 de dezembro de 2007.

A destruição e o saque que desmantelou os comércios de todo tipo, ao que se somou a perda de moradias para milhares de famílias nas cidades de Panamá e Colón, aumentaram a tragédia. Também os Estados Unidos haviam realizado una guerra encoberta para destruir a Iniciativa de Contadora (Panamá, México, Colômbia e Venezuela) de 1983, que a seguir derivou na de Esquipulas[2], para tratar de reduzir os valiosos elementos que indicavam terminar com as verdadeiras e injustas causas que originaram os conflitos na América Central.

A iniciativa de Paz de Contadora (referente à ilha panamenha de mesmo nome), liderada por países como Argentina, Brasil e Colômbia, foi permanentemente sabotada pelos Estados Unidos, com documentos e dados irrefutáveis, como demonstramos juntamente com o também jornalista (uruguaio) Rafael Cribari, ambos correspondentes de imprensa no Panamá, no texto “La guerra encubierta contra Contadora”, publicado naquele país quando se completou o primeiro ano dessa iniciativa, tão importante de ser conhecida a fundo em qualquer processo de unidade latino-americana.

Um dos principais defensores dessa iniciativa foi o general Manuel Antonio Noriega, chefe de Segurança de Torrijos desde o início, em 1968. Também em 1983, o general Noriega, então chefe das Forças de Defesa panamenhas, determinou o fechamento da Escola das Américas no Comando Sul, cumprindo o que havia sido pactuado nos tratados assinados por James Carter e pelo governante panamenho assassinado.

Na Escola das Américas eram treinados militares latino-americanos em guerras de caráter contrainsurgente, que incluíam ensinamentos de tortura e outras práticas, como parte das estratégias da Guerra Fria na luta contra o comunismo, muitos dos quais se converteram nos mais cruéis ditadores da América Latina.

Embora Noriega nunca tenha sido presidente do Panamá — como afirmam não apenas desinformadores de direita, mas também alguns setores da esquerda que, ao que parece, não se ajustam à história de países tão esquecidos como os centro-americanos —, o general panamenho era, sim, o homem forte do país, especialmente depois que a CIA foi responsabilizada pelo atentado contra um pequeno avião panamenho que transportava o general Omar Torrijos Herrera em um voo muito curto, de apenas 15 minutos, no interior do Panamá, quando a aeronave explodiu e se chocou contra uma montanha, em 31 de maio de 1981.

O mesmo havia ocorrido em 24 de maio daquele mesmo ano com um avião de linha, neste caso carregado de passageiros, no qual viajavam o ex-presidente do Equador, Jaime Roldós Aguilera, e sua esposa, Martha Bucaram. A aeronave caiu pouco depois de decolar do aeroporto, em um episódio que a versão oficial atribuiu a erro do piloto e a um mau tempo inexistente, e que pôs fim à vida de um governante progressista e amado por seu povo, difamado e perseguido pelo governo dos Estados Unidos.

Vale lembrar que ambos figuravam como líderes de esquerda “comunistas” incômodos para os Estados Unidos, como cita o Documento 1 de Santa Fé, elaborado pelos “think tanks” das fundações de direita daquele país, ao qual qualquer pesquisador — ou mesmo qualquer interessado no tema — pode ter acesso.

Os mitos

Estados Unidos invade Panamá no dia 20 de dezembro de 1989. Foto: Reprodução www.zendalibros.com

Em círculos restritos, tanto no Panamá quanto nos Estados Unidos, tecem-se mitos em torno das razões pelas quais a maior potência militar do mundo se lançou contra o Panamá.

O mito mais repetido refere-se à figura do general Noriega, que teria se indisposto com os Estados Unidos, embora alguns analistas assegurem que ele constava nas folhas de pagamento da CIA, sob a suspeita de que, na realidade, informava ao governo do general Omar Torrijos sobre os planos desse organismo contra o Panamá.

A semelhança com o Iraque é óbvia demais. O mesmo filme, com os mesmos atores, em outro cenário. Se algo foi uma invenção grosseira, foi a alegação de porta-vozes da CIA de que o Panamá havia declarado guerra aos Estados Unidos, o que não merece sequer comentário, tamanha é a sua carga de cinismo e canalhice.

Muitos argumentos foram apresentados, inclusive o de que, como narra este livro, teria sido utilizado um casal de agentes da CIA rondando o Quartel Central em um momento de graves tensões. Eles foram detidos pelas Forças de Defesa panamenhas, que comunicaram imediatamente o fato ao Comando Sul, tentando evitar que essa situação servisse de pretexto para uma intervenção.

O que disse George Bush ao povo dos Estados Unidos? Que uma militar norte-americana havia sido maltratada e até abusada por militares panamenhos. Uma mentira absoluta, como podem confirmar correspondentes estrangeiros convocados pelos membros das Forças Armadas panamenhas para informar que o casal detido, suspeito de ser formado por agentes da CIA especialmente enviados, havia sido tratado com cortesia enquanto se aguardava que fossem buscados pelo Comando Sul na zona do Canal.

O presidente Bush também falou de um tratado inexistente que o autorizaria a uma possível invasão, ou de uma suposta autorização das Nações Unidas. Já em pleno curso da invasão, Bush alegou que havia agido para “proteger” vidas de norte-americanos, que jamais estiveram em perigo.

Menos crível ainda era a ideia de que se tratava de proteger o Canal, que nunca esteve desguarnecido, ou de deter um grande narcotraficante, que, segundo eles, seria Noriega.

Em 23 de dezembro de 1989, o Conselho de Segurança da ONU, composto por 15 países, acolheu a proposta da Iugoslávia que condenava a invasão militar dos Estados Unidos ao Panamá. Apenas Grã-Bretanha, França e Estados Unidos se opuseram, mas, por deterem poder de veto, derrotaram a proposta.

Para uma série de analistas panamenhos, a razão da invasão só pode ser encontrada se forem estudadas as contradições internas da política norte-americana, as fragilidades de um presidente inseguro, acuado pela oposição e incapaz de apresentar um programa de governo coerente.

Mudança democrática?

Vinte anos após a invasão do Panamá, e depois de uma sucessão de governos de direita (e do Partido Revolucionário Democrático), assumiu o governo Ricardo Martinelli, que firmaria um acordo com os Estados Unidos para construir no Panamá entre quatro e nove bases militares ao longo do Atlântico e do Pacífico, mas também no sul e no norte, nas zonas de fronteira, o que significou uma recolonização encoberta do país istmeano.

Isso não somente coloca o Panamá como um país ocupado, como se integra totalmente as bases do Plano Mérida (2006) e do Plano Colombia[3] (2001).

Ricardo Martinelli, um empresário milionário graças a negócios obscuros, pelos quais responde judicialmente nos dias de hoje, foi o presidente ideal para os novos projetos de Washington para a região. Ao anunciar seu programa de governo, havia afirmado que não assinaria nenhum tratado com os Estados Unidos, nem militar nem comercial.

Contudo, apenas três meses após assumir o governo, em 2009, anunciou: “Iniciaremos conversações para trazer de volta ao Panamá a presença do mecanismo FOL (Forward Operating Location) do Exército dos Estados Unidos, ‘para combater o narcotráfico e o terrorismo, entre outros’”. Martinelli tinha a intenção de colaborar com os Estados Unidos no combate ao terrorismo, à guerrilha e ao narcotráfico, sustenta o analista internacional, ex-assessor de política externa e escritor Julio Yao Villalaz, que perguntava, em 2009, à embaixada dos Estados Unidos:

1. Os Estados Unidos têm o direito de ingressar livremente no espaço terrestre, aéreo, lacustre e marítimo do Panamá?

2. Os Estados Unidos têm o direito de perseguir, capturar e/ou destruir embarcações ou aeronaves dentro do território nacional, incluindo o direito de conduzir tripulantes detidos diretamente ao território norte-americano e de reter a carga apreendida, sem ingressar em território panamenho nem solicitar autorização do Panamá?

3. Os Estados Unidos têm o direito de abordar embarcações de bandeira panamenha em alto-mar sem a aprovação do Panamá?

4. Os Estados Unidos detêm direitos extraterritoriais e imunidade frente à jurisdição panamenha?

5. Os Estados Unidos possuem direitos, privilégios, isenções e outras prerrogativas superiores às reconhecidas a diplomatas estrangeiros?

6. Os Estados Unidos têm o direito de não submeter seus funcionários civis e militares acusados de crimes de guerra aos tribunais panamenhos e de impedir que o Panamá os submeta a terceiros Estados ou ao Tribunal Penal Internacional?

7. Os Estados Unidos têm o direito de aplicar o Acordo Complementar de 2002 (Tratado Salas-Becker) para obter acesso às bases aeronavais que serão construídas em ambos os oceanos?

8. Os Estados Unidos têm a prerrogativa legal de ingressar e manter forças armadas no Panamá com base no Tratado de Neutralidade?

9. Qual acordo com o Panamá autoriza as Manobras Panamax[4], realizadas no país todos os anos desde 2003?

E segue tratando do tema dos direitos dos Estados Unidos na Colômbia. Nesse caso, o presidente Álvaro Uribe (2002–2010) havia estabelecido que as bases militares pactuadas com os Estados Unidos em 30 de outubro de 2009 seriam usadas “exclusivamente dentro do território colombiano”. No entanto, um documento da Força Aérea dos Estados Unidos, entregue ao Senado daquele país, aponta outra direção, segundo a investigação de Yao.

1. A base militar de Palanquero “garante a capacidade de conduzir operações de espectro completo por toda a América do Sul” (forças terrestres, navais e aéreas dos Estados Unidos).

2. As bases militares servirão para combater “a ameaça constante de governos antiestadunidenses” (Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina e Brasil).

3. O acordo de 30 de outubro permite “o acesso e o uso de outras instalações e localidades” em todo o território colombiano, sem restrições, incluindo o uso de aeroportos comerciais.

4. Os Estados Unidos investirão cerca de 46 milhões de dólares para adequar a pista aérea, as rampas e outras instalações, convertendo-as em uma Localidade de Cooperação em Segurança (CSL), a partir da qual poderão enfrentar ameaças de governos considerados antiestadunidenses.

5. “O acesso à Colômbia aprofundará a relação estratégica com os Estados Unidos. A sólida cooperação em segurança também oferece a oportunidade de conduzir operações de espectro completo por toda a América do Sul.” A base de Palanquero “contribui para a missão de mobilidade ao garantir acesso a todo o continente sul-americano, com exceção do Cabo Horn”.

A invasão e suas consequências, hoje evidentes, configuraram a maior traição a um povo que tanto lutou para se libertar do colonialismo do século 20.

As bases militares transformaram todo o território do Panamá em uma zona colonial e representam uma anexação virtual, como a da Colômbia, além da continuidade de uma ocupação que vem se expandindo desde que o Plano Mérida, imposto ao México em 2006, transformou o rio Bravo no ponto inicial do novo traçado do projeto geoestratégico de recolonização conhecido como Plano Colômbia.

As quatro grandes bases aeronavais norte-americanas em território panamenho, entre as nove de outros tipos que acabaram sendo acordadas, somam-se às sete bases existentes na Colômbia, além de duas novas, e ao traçado do Plano Puebla-Panamá. Para viabilizar esse projeto, o governo dos Estados Unidos promoveu um golpe de Estado em Honduras, em junho de 2009, com o objetivo de proteger suas bases e estruturas militares no país, que não se concentram apenas em Soto Cano e Palmerola, mas também em outras instalações.

Anunciava-se que a primeira base aeronaval seria instalada na Ilha Chapera, no Arquipélago das Pérolas, próxima à Ilha Contadora, utilizada como espaço de negociação da paz regional na década de 1980. A segunda base ficaria em Rambala, na província de Bocas del Toro, área promovida para o turismo internacional. A terceira, em Punta Coco, na província de Veraguas, e a quarta e última, na Baía Piña, na província de Darién, a poucos quilômetros da fronteira com a Colômbia. Esse quadro evidencia a gravidade do avanço dos Estados Unidos sobre a América Latina, no marco dos projetos de Segurança Hemisférica do século XXI, que se consolidam como a maior ameaça das últimas décadas.

A rede de bases, assim como as instaladas em diversos países da América Latina, e infraestruturas militares como as existentes no Paraguai, passíveis de rápida ocupação por tropas de invasão, revela a política de cerco imposta a países cujos governos foram eleitos por amplas maiorias populares e que têm o direito de recuperar sua independência real no século 21.

Marines estadunidenses em base no Panamá. Crédito: Mauricio Valenzuela / AFP

Em síntese, a invasão do Panamá em dezembro de 1989 levou a uma reinstalação colonial por meio de uma invasão silenciosa de fundações e ONGs em nossos países, além da criação de uma série de bases que hoje cercam o território panamenho entre os dois oceanos. Essas bases ganharam ainda mais relevância diante das ameaças permanentes de invasão à Venezuela, mantidas de forma contínua, e do fracasso sucessivo de governos republicanos e democratas em conter o ressurgimento do pensamento contra-hegemônico do século 21, representado pelo bolivarianismo.

Isso nos remete ao que pode ser chamado de “castração das independências conquistadas nas lutas do século 19”, após a formulação, nos Estados Unidos, da colonialista Doutrina Monroe de 1823, sintetizada na expressão “América para os americanos”, isto é, a América do Sul subordinada aos norte-americanos. Essa doutrina permitiu impedir que potências europeias ou outras disputassem o suposto “direito” dos Estados Unidos de controlar nossa região.

No início do século 21, foi elaborado o Documento Santa Fé IV, cujo texto é encabeçado pela expressão “Doutrina Monroe”. Essa diretriz foi confirmada pelo próprio presidente Donald Trump, que, no final de 2019 e novamente em 2024 e 2025, declarou publicamente que a política aplicada por seu país na América Latina segue a Doutrina Monroe, recolocando o continente no mesmo cenário de 1823. Diante disso, uma das figuras centrais da luta independentista contra o império espanhol, o general venezuelano Simón Bolívar, já havia convocado, em 1826, as jovens nações de Nossa América ao Congresso Anfictiônico do Panamá, concebido como um espaço estratégico de união entre os povos do continente.

Ali proclamou a necessidade da união das novas repúblicas, ainda em gestação em alguns casos, e convocou a concretização da unidade latino-americana como a única forma de enfrentar o nascente império do Norte.

Não é casual que os Estados Unidos tenham se lançado agora a recuperar essa cintura continental onde se ergueu o chamado extraordinário à unidade para defender nossos povos e os riquíssimos territórios do sul diante do mandato do Norte de colonizar tudo o que estivesse ao sul do rio Bravo, ou seja, do México à Terra do Fogo, na Argentina.

36 anos depois

Em 2026, Editora Coragem lança a tradução do livro Panamá, Pequena Hiroshima, de Stella Calloni, no Brasil. Imagem: Divulgação

Hoje, passados 36 anos da invasão do Panamá, assistimos a uma ocupação militar pela frota naval dos Estados Unidos, em posição de guerra, ameaçando não apenas todo o Caribe e a América Central, a poucos dias da comemoração da invasão que assolou um país de apenas dois milhões de habitantes naquele momento. A ofensiva começou pouco antes da meia-noite de 19 de dezembro de 1989, quando a Zona do Canal ainda dividia o pequeno país em dois. Bastou, então, levantar voo e, em dez minutos, helicópteros e aviões norte-americanos passaram a bombardear, num primeiro momento, a cidade capital, que contava com apenas 600 mil habitantes. Eu estava ali e sou testemunha do horror e da morte.

Trinta e seis anos depois, um império em irreversível decadência ameaça invadir a Venezuela, onde, diferentemente do Panamá, há milhões de habitantes e forças armadas poderosas, não incipientes como as panamenhas, abastecidas pela Rússia e pela China. Isso ocorre porque o presidente dos Estados Unidos e seus conselheiros, os piores da história presidencial daquele país, ordenam ao presidente Nicolás Maduro que abandone o governo com todo o seu gabinete, equivocando-se no marco dos novos tempos, no início do fim da chamada Nova Ordem Mundial, imposta pela maior potência do mundo, que deixou de sê-lo.

E num momento em que o selvagismo das guerras que esse império sustenta pelo mundo, com brutalidade, arrogância e impunidade já insustentáveis, mesmo diante da censura midiática mundial imposta, se torna cada vez mais evidente.

Protesto nos EUA contra ameaças à Venezuela
Protesto nos EUA contra ameaças à Venezuela. Crédito: answer Coallition

A evidência crescente do desmascaramento e do colapso imperial é visível a cada dia, no maior genocídio visto neste século 21 depois do nazismo no século 20, executado de forma impune e selvagem pelo governo da ultradireita sionista de Israel contra o povo palestino. Uma violência televisionada por mais de dois anos, que expôs os horrores de uma guerra que não é propriamente uma guerra, pois se trata de um Estado agindo contra uma população encurralada no último pedaço de terra da Palestina ocupada e saqueada pelo agressor.

Trata-se não apenas da maior traição às vítimas do Holocausto nazista, mas também ao próprio povo israelense e aos milhares e milhares de autênticos judeus religiosos que, como os povos de todo o mundo, se manifestam diariamente, desafiando repressões e ameaças. Uma invasão à América Latina, nessas circunstâncias, será um suicídio, o disparo final que o maior império da história contemporânea dará contra si mesmo.

Referências:


[1] Em http://revcom.us (Cartas: Box 3486, Merchandise Mart, Chicago).

[2] O Acordo de Paz de Esquipulas foi uma iniciativa do Grupo de Contadora, nos anos 1980, para resolver os conflitos militares que flagelavam a América Central por muitos anos. O Grupo de Contadora foi criado por México, Panamá, Colômbia e Venezuela como resposta à retomada da política intervencionista norte-americana na região durante o mandato do presidente norte-americano Ronald Reagan. Com o Grupo de Apoio à Contadora formado por Argentina, Brasil, Peru e Uruguai, anos depois, em 2010, surgiria a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). [N. do E.]

[3] O Plano Colômbia (2001) e o Plano Mérida (2006) foram programas de “cooperação” militar e de segurança impulsionados pelos Estados Unidos na América Latina, apresentados oficialmente como iniciativas de combate ao narcotráfico e ao crime organizado, mas que tiveram profundas implicações geopolíticas, militares e sociais na região. Sob justificativa baseada na lógica da “guerra às drogas”, foram mais duas iniciativas estadunidenses com evidente objetivo de controle territorial, político e estratégico. [N. do E.]

[4] “Manobras Panamax” são exercícios militares periódicos com objetivo de defender o Canal do Panamá, envolvendo treinamento aéreo, marítimo e terrestre das forças panamenhas e de outros países aliados, principalmente do Comando Sul do exército dos Estados Unidos. [N. do E.]

* Stella Calloni, nascida em Entre Ríos, 1935, é uma jornalista e escritora argentina especializada em política internacional, cujos trabalhos de investigação centraram-se nas ditaduras militares latino-americanas e nos processos políticos relacionados. Seus livros Los años del lobo: la Operación Cóndor (1999) e Operación Cóndor, pacto criminal (2006) reúnem parte de suas investigações sobre a operação conhecida como o Plano Condor e foram traduzidos para vários idiomas.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Editado por: Katia Marko