Renúncia contra a manipulação

Veterano de 20 anos do serviço diplomático dos EUA, John Brady Kiesling – que era conselheiro político das embaixadas americanas – renunciou na semana passada, denunciando as ações de manipulação da opinião pública e a distorção de dados de inteligência, por parte do governo americano, para justificar uma guerra contra o Iraque. A seguir, a íntegra da carta de renúncia de Kiesling enviada ao secretário de Estado, Colin Powell:

Caro sr. secretário Colin Powel:

Estou lhe escrevendo para apresentar minha renúncia ao Serviço de Relações Exteriores dos EUA e ao meu cargo de consultor político da embaixada dos EUA em Atenas. Faço isso com dor no coração. Minha criação incluiu a obrigação de fazer algo por meu país. Servir à diplomacia dos EUA era um sonho. Fui pago para aprender idiomas e conhecer culturas estrangeiras, relacionar-me com diplomatas, políticos, acadêmicos e jornalistas e convencê-los de que os interesses deles e dos EUA eram fundamentalmente coincidentes. Minha crença em meu país e seus valores foi a mais poderosa arma de meu arsenal diplomático.

Foi inevitável que 20 anos a serviço no Departamento de Estado me tornassem menos ingênuo e mais cético em relação aos motivos estreitos e egoístas que às vezes moldaram nossas políticas. A natureza humana é o que é, e fui recompensado e promovido por entendê-la. Mas, até este governo, foi possível acreditar que, defendendo as políticas do meu presidente, eu estava também defendendo os interesses do povo americano e do mundo. Agora não acredito mais nisso. As políticas que agora nos pedem para adotar são incompatíveis não apenas com os valores americanos, mas também com os interesses americanos. Nossa insistência numa guerra contra o Iraque está nos levando a malbaratar a legitimidade internacional que tem sido a mais poderosa arma dos EUA, tanto de ataque quanto de defesa, desde a época de Woodrow Wilson.

Começamos a desmantelar a maior e mais eficaz rede de relações internacionais que o mundo já conheceu. Nosso atual rumo trará instabilidade e não segurança.

O sacrifício dos interesses globais em favor da política doméstica e do auto-interesse burocrático não é nenhuma novidade e certamente não é um problema exclusivo dos americanos. Mas, desde a Guerra do Vietnã, não víamos tal distorção do serviço de informações, tal manipulação sistemática da opinião pública americana. A tragédia de 11 de setembro nos deixou mais fortes do que antes, agregando em torno de nós uma vasta coalizão internacional para cooperar, pela primeira vez de uma forma sistemática, contra a ameaça do terrorismo. Mas em vez de colher os louros desses sucessos e capitalizar em cima deles, o governo optou por fazer do terrorismo uma ferramenta política doméstica, recrutando uma Al-Qaeda dispersa e em grande parte derrotada como seu aliado burocrático. Nós espalhamos um terror e uma confusão terríveis na mente da população, arbitrariamente ligando ao Iraque problemas de terrorismo com os quais o país não está relacionado. O resultado, e talvez o motivo, seja justificar uma vasta realocação errônea da riqueza da população, que está encolhendo, para as Forças Armadas e para enfraquecer as salvaguardas que protegem os cidadãos americanos da mão pesada do governo. Os fatos de 11 de setembro fizeram menos para danificar o tecido social americano do que parecemos determinados a fazer nós mesmos. Seria a Rússia dos Romanovs nosso verdadeiro modelo, um império egoísta e supersticioso trilhando a trajetória da autodestruição em nome de um status quo condenado? Devíamos perguntar-nos por que não temos conseguido persuadir o mundo de que uma guerra com o Iraque é necessária. Nos últimos dois anos, muito fizemos para convencer nossos parceiros mundiais que os interesses estreitos e mercenários dos EUA suplantam os valores acalentados por nossos parceiros. Mesmo onde nossos objetivos não estavam em questão, nossa congruência era motivo de contenda.

O modelo do Afeganistão é de pouco conforto para os aliados que estão se perguntando sobre que bases planejamos reconstruir o Oriente Médio.

Será que ficamos cegos a nossas próprias recomendações – como a Rússia é cega em relação à Chechênia, como Israel é cego em relação aos territórios ocupados – de que o poder militar avassalador não é a resposta para o terrorismo? Depois que os frangalhos do Iraque pós-guerra se juntarem aos de Grozny e Ramallah, até na Micronésia será difícil encontrar alguém com coragem para nos seguir.

Ainda temos uma coalizão, uma boa coalizão. A lealdade de muitos de nossos amigos é impressionante, um tributo ao capital moral americano construído por mais de um século. Mas nossos aliados mais próximos estão menos convencidos de que a guerra seja justa e mais convencidos de que seria perigoso permitir que os EUA derivassem para um completo isolamento. A lealdade deve ser recíproca. Por que nosso presidente fecha os olhos à atitude hesitante e de menosprezo em relação a nossos amigos e aliados que esta administração está fomentando, inclusive entre seus assessores mais graduados? Será que Oderint dum metuant (que nos odeiem, desde que nos temam) se transformou em nosso lema? Insisto que o sr. preste atenção nos amigos dos EUA ao redor do mundo. Mesmo aqui, na Grécia, um alegado viveiro de antiamericanismo, temos mais amigos que o leitor de jornais americanos possa imaginar.

Mesmo quando reclamam da arrogância americana, os gregos sabem que o mundo é um lugar difícil e perigoso, e eles querem um sistema internacional forte, com os EUA e a União Européia em íntima parceria. Quando nossos amigos estão com medo de nós em vez de com medo por nós, é hora de nos preocuparmos. E agora eles estão com medo de nós. Quem conseguirá convencê-los de que os EUA são como foram um farol de liberdade, segurança e justiça para o planeta?

Sr. secretário, tenho um enorme respeito por seu caráter e habilidade. O sr.

tem mantido mais credibilidade internacional para nós do que nossa política merece, e resgatado algo positivo dos excessos de um governo ideológico e a serviço de si próprio. Mas sua lealdade para com o presidente vai longe demais. Estamos solapando além do limite um sistema internacional que construímos com empenho, uma rede de leis, tratados, organizações e valores compartilhados que estabelecem limites sobre nossos inimigos, muito mais efetivamente do que restringem a capacidade dos EUA de defender seus interesses.

Estou renunciando porque tentei conciliar minha consciência com minha capacidade para representar o atual governo dos EUA e fracassei. Tenho confiança em que nosso processo democrático seja, em última análise, autocorretivo, e espero que, de fora, possa contribuir um pouco para a formulação de políticas que melhor sirvam à segurança e à prosperidade do povo americano e do mundo que compartilhamos.

(O Estado de S.Paulo, 6/3/2003)