Paz no campo depende do FMI

Por Ana Maria Tahan*

Com um custo estimado em R$ 1,2 bilhão, a reforma agrária do governo Luiz Inácio Lula da Silva vai depender, e muito, da boa vontade do Fundo Monetário Internacional (FMI). O valor estimado do programa pode diminuir com o uso de terras públicas cedidas pela União, Estados e municípios e hectares retidos de devedores de impostos e financiamentos de bancos públicos e estatais – equivalente a 70% do custo do projeto. O investimento em infra-estrutura para assentar 60 mil famílias de acampados no país, contudo, vai exigir o aval do fundo para uma questão básica: diminuir o superávit primário (receitas menos despesas excluindo o pagamento de juros), hoje em 4,25%, para garantir recursos e aliviar a tensão no campo.

A queda do superávit primário não é equação simples. À definição do percentual se amarra o futuro da economia brasileira em 2004. A programação de investimentos do governo federal e de estatais está atrelada ao vetor. Reforma agrária inclusa. Sem um alívio no caixa não há futuro. Nas conversas com os representantes do FMI semana passada, o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, já os alertou. A negociação do novo acordo começará em setembro. Deslancha em outubro.

Até lá, o governo monta o desenho das novas regras agrárias em gabinetes vizinhos ao do presidente no Palácio do Planalto. Os acampados foram cadastrados. Trabalhadores rurais separados de desempregados urbanos, grupos diferentes que se abrigam sob o plástico negro de barracas mal alinhadas ao longo de estradas. Os da cidade, sem nada entender de arados e ancinhos, serão reintegrados às sociedades urbanas e atendidos por programas específicos. Os sem-terra estarão assentados até março de 2004, prevê o projeto de Lula.

Se há terra disponível, infra-estrutura e crédito vão custar caro: R$ 360 milhões. É um programa ambicioso. Com a reforma, o presidente imagina minar a força do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – que influencia e comanda apenas 25% dos 1.271 acampamentos espalhados hoje pelo Brasil, mas domina 80% dos assentamentos que mal se sustentam, sem crédito e estrutura para escoar a produção.

Mais do que o MST, o Planalto quer anular a influência de outros grupos de sem-terra, orientados por líderes regionais ou locais ou movimentos de menor expressão, mais facilmente manipuláveis e menos suscetíveis à pressão federal. São esses os maiores responsáveis por saques, fechamento de rodovias e invasões com cenas de violência, segundo informações da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e da Polícia Federal. Assim, assentar os acampados é mais do que uma questão estratégica. É vital para instalar a paz no campo.

O diagnóstico, fundamentado nos dados dos agentes de inteligência federais infiltrados na zona rural, forçou o governo Lula a antecipar o cronograma da reforma agrária. O projeto seria implantado em dois anos, sem forçar gastos nem exigir acrobacias para levantar os recursos. O uso de terras públicas, de devedores do Banco do Brasil, ou de estatais como a Companhia de Desenvolvimento do Vale São Francisco, evita a longa pendenga judicial, concluíram os executores do plano.

Não será, assim, necessário perder-se tempo com discussões sobre o que é ou não latifúndio, terra produtiva ou improdutiva e todas as querelas que o MST e seus dirigentes exploram à exaustão para justificar o recrudescimento das invasões. A solução também retira do cenário proprietários rurais de espírito guerreiro, armas em punho e jagunços a postos.

O projeto integral de reforma agrária da administração Lula não se limita a essa etapa. Esse primeiro passo é necessário para retirar do cenário o MST e seus congêneres e aí, sim, mudar as regras para permitir que, no futuro, o uso do boné do movimento pelo presidente não avalize a retórica dos João Pedro Stédile da vida que exaltam a violência e põe as leis em xeque.

Governo prepara ação no campo

A análise interna do governo, a respeito dos conflitos no campo e da impressão de instabilidade provocada por demandas sociais muitas vezes exacerbadas, é bem mais austera que as posições defendidas em público por ministros, assessores e mesmo pelo presidente Luiz Inácio da Silva.
Não existe dúvida quanto à evidência de que o clima piorou muito ultimamente, havendo até quem aponte como marco do agravamento a audiência em que o presidente recebeu no Palácio o MST, sem antes obter o compromisso pelo fim das invasões.

De uma reunião entre dez integrantes do primeiro escalão na quinta-feira pela manhã, resultou a seguinte conclusão: ou o governo toma a iniciativa de ações o mais rápido possível ou cairá na defensiva, e começará a ser fortemente cobrado a fazer uso da violência de Estado para reprimir manifestações.

O primeiro passo o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, informou aos participantes do encontro que está pronto para ser dado: em data e local ainda mantidos em sigilo, a Polícia Federal vai efetuar prisões e apreensão de armas tanto de ruralistas quanto do MST.

A idéia é fazer um gesto que demonstre, mais que a retórica, a disposição do governo de manter a ordem e garantir o cumprimento da lei. Seria apenas uma ação pontual, ligada exclusivamente à posse de armas, com o objetivo de produzir exemplo. Além do poder de polícia pertencer legalmente aos Estados, a PF não dispõe de gente em número suficiente nem com treinamento adequado para enfrentar esse tipo de conflito.

Não teria o caráter de solução, mas antes o sentido da emergência. Do encontro de quinta-feira entre ministros e o presidente da República, transpirou apenas uma discussão sobre a liberação de mais verbas para a reforma agrária, comandada pelo ministro Miguel Rossetto.

Ocorreu isto, mas aconteceu também uma rodada de avaliações, em que o ministro da Justiça fez um diagnóstico no qual defendeu como primordial a definição do governo em relação à medida provisória que exclui da reforma agrária invasores e terras invadidas.

A MP tem sido ignorada pelo Incra e, na prática, virou letra morta. Na visão exposta por Márcio Thomaz Bastos na conversa, o Planalto precisa se definir: ou propõe a revogação da lei ou trata de assegurar o seu cumprimento.

Caso contrário, o discurso da legalidade cairá no vazio e será desmoralizado. Esta é a avaliação jurídica. Do ponto de vista político, analisou-se que, voluntária ou involuntariamente, os movimentos mais exacerbados acabam contribuindo para ”empurrar” o governo para uma posição mais conservadora no que diz respeito à relação com eles. Não se chegou a uma conclusão sobre como lidar com isso.

Houve apenas o reconhecimento de que é urgente alguma liberação de verba para aumentar a capacidade de operação, não apenas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, mas de toda a administração na área social.

Dois pesos

É no mínimo incoerente a reação do líder do PFL no Senado, Agripino Maia, à invasão, pelo MST, de uma fazenda de propriedade de sua família, em Mossoró (RN).

A Fazenda São João, uma área de 4 mil hectares, foi invadida na quarta-feira. No dia seguinte, o senador reagiu impávido, dizendo que estaria disposto a negociar a venda das terras para o Incra e que não iria requerer reintegração na posse.

Agripino Maia é líder de um partido que acusa sistematicamente o governo de ser leniente com os sem-terra e de não cumprir a lei quando permite que o Incra faça vistorias em terras invadidas, com vista a desapropriações.

Pois o senador, diante da invasão, tomou a iniciativa de dizer que abre mão das salvaguardas da medida provisória que exclui terras invadidas do programa de reforma agrária. E mais: está disposto a negociar a fazenda com o Incra.

Primeiro, não cabe ao senador ou a nenhum outro cidadão, proprietário de terra ou não, determinar quando a lei deve ser aplicada.

Segundo, sua atitude contraria a posição do partido em defesa do direito de propriedade.

Terceiro, dá a impressão de que a invasão foi providencial no sentido de apressar os trâmites de um processo de desapropriação que estava em curso com o Incra.

O senador argumenta que não tentará reaver a propriedade na Justiça para evitar o risco de ”reeditar lá o massacre de Eldorado de Carajás”.

Como se o recurso à lei servisse de pressuposto ao uso da violência, quando o objetivo é justamente impedir a extrapolação de direitos.

* Publicada originalmente no Jornal do Brasil de 3/8/2003