Carta do MST ao Presidente sobre o Projeto de Lei de Biossegurança

São Paulo, 31 de janeiro de 2004.

Senhor Presidente Luis Inacio Lula da Silva,

No início do nosso governo, Vossa Excelência editou a Medida Provisória nº 113, de 2003, transformada na Lei nº 10.688, de 13 de junho de 2003, que estabeleceu critérios para a comercialização da produção de soja na safra de 2003.

Ainda que contestada pelo conjunto das entidades que integram a campanha ‘por um Brasil livre de transgênicos’, não podemos deixar de reconhecer que a iniciativa retratou uma difícil engenharia interna, e externa ao governo, operada por Vossa Excelência. Afinal, uma interpretação engajada e generosa da medida pôde traduzi-la como um ato de conciliação entre política e norma jurídica com vistas a reverter o quadro herdado de desobediência civil, notadamente no estado do Rio Grande do Sul, decorrente da propagação do plantio ilegal da soja geneticamente modificada.

O caráter provisório da norma foi derrogado pela persistência do fato social de ilegalidade na sojicultura gaúcha facilitada, em parte, pela pouca operosidade, em especial, do Ministério da Agricultura, para fazer cumprir as determinações da Lei nº 10.688, de 2003.

Em consequência, o governo findou estendendo para a safra 2004, a excepcionalidade criada para a comercialização do produto, em 2003. Isto se deu por meio de nova Medida Provisória, convertida na Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, objeto de fortes reações por parte das entidades ambientalistas, de trabalhadores rurais, e de parcela da igreja, e da comunidade científica.

Sem ignorar a essencialidade da capacitação soberana do Brasil no desenvolvimento científico e tecnológico nessa fronteira do conhecimento, tais setores postulam, legitimamente, a subordinação desse processo ao conhecimento prévio dos impactos dos OGMs sobre o meio ambiente e a saúde pública. Isso é, reivindicam a eficácia do princípio da precaução consagrado na Constituição Federal, e em protocolos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Sensível às preocupações acima, de forma tempestiva Vossa Excelência respondeu de maneira adequada ao sinalizar o fim das soluções provisórias sobre a matéria.

Assim, foi positivamente saudada pelos setores que defendem o regramento institucional dos OGMs, sem açodamentos alimentados por dogmatismos, ou por interesses econômicos particulares, a sua decisão pelo encaminhamento, ao Congresso Nacional, no dia 31 de outubro de 2003, do projeto de lei nº 2.401.

Essa proposição estabelece um novo marco regulatório abrangente e ‘definitivo’, em nosso país, para as atividades envolvendo os OGMs e seus derivados, desde a pesquisa até a comercialização.

Com efeito, o conteúdo do instrumento em questão, fruto de intenso debate interno no governo, orientado pela ausculta a alguns setores da sociedade civil, traduziu uma visão sobre a matéria, politicamente balanceada, e em aderência com a legislação ambiental, e com os interesse comerciais do país.

Em outros termos, os dispositivos do projeto deram consistência aos discursos do governo, expressos na Exposição de Motivos que o encaminhou proclamando-o como capaz de dar efetividade à “..ação do Estado na proteção da saúde humana e do meio ambiente no trato dessa matéria polêmica internacionalmente.”

Para tanto, a proposição previu a criação de instância colegiada de nível ministerial (Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS), para dar maior segurança à sociedade brasileira nos processos de liberação de OGM.

Para democratizar a composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, e reforçar a proteção da população na liberação dos OGMs, a composição desse órgão foi ampliada para propiciar a maior participação da sociedade civil.

Com os mesmo propósitos, foram alteradas as competências da CTNBio, que passaria a ter o caráter consultivo, sendo que, os seus pareceres negativos vinculariam os demais órgãos e entidades da administração. Caso contrário, os processos seria remetidos às manifestações dos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Meio Ambiente, da Saúde, e da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República, conforme o caso.

Pretendendo robustecer, ainda mais, os aspectos da segurança, o projeto reajustou os valores das multas aplicáveis nos casos de descumprimento das severas normas de controle nas atividades de manipulação com OGMs.

Enfim, essas determinações do projeto, entre outras, dotariam o Brasil de um balizamento regulatório condizente com as necessidades do desenvolvimento científico e tecnológico do país no tema, sem prejuízo das indispensáveis precauções relacionadas à biossegurança.

Para demonstrar a sua determinação pela aprovação do projeto, a Casa Civil operou para emplacar o nome do próprio líder do governo na Câmara dos Deputados, como relator da proposição.

No entanto, certamente com a intenção de dar celeridade à aprovação da matéria, o então líder do governo, Deputado Aldo Rebelo, procedeu a várias modificações no texto original que resultaram em um novo perfil político para a proposição.

Devemos alertar a Vossa Excelência que essas modificações processadas pelo relator no projeto original, têm incitado especulações sobre o divórcio político entre o governo e os seus líderes no Congresso. Ou mesmo, sobre a conduta protocolar do poder executivo na feitura e no encaminhamento político dessa matéria de singular relevância para o futuro do país.

Cumpre destacar, entre tais modificações, a eliminação da exigência de licenciamento ambiental pelo órgão federal competente para as atividades de pesquisa com OGMs.

Essa alteração, caso mantida, além do enorme potencial de danos ambientais, reduziria o conceito de pesquisa científica com OGMs. Sob tal preceito, para a “ciência”, ter-se-ia a inusitada desnecessidade do conhecimento da ação desses organismos, no ambiente, previamente à sua liberação para uso comercial. Seguramente, essa alteração não condiz com o princípio da precaução.

Especula-se que essa decisão tenha sido movida pelo desejo de agilizar os procedimentos para a pesquisa. Entretanto, além dos riscos de atalhos dessa natureza na pesquisa científica, o projeto original já havia assegurado rito simplificado para o licenciamento ambiental das atividades de pesquisa com OGMs.

Adicione-se ao fato anterior, a prerrogativa dada à CTNBio para decidir sobre a necessidade, ou não, do licenciamento ambiental para as demais atividades. Ou seja, se a CTNBio considerar desnecessário o licenciamento ambiental para a produção e o comércio da soja RR, ponto final! E o substitutivo do relator impede a possibilidade de revisão desses pareceres da CTNBio, ao contrário do previsto no texto do governo, e valida todas as decisões anteriores daquela comissão, que inclui a própria liberação da soja RR, posteriormente caçada pela justiça federal.

Conclui-se, Senhor Presidente, que o Conselho de sábios da CTNBio que, doravante só poderá contar com PHds, passará a ser a detentor da verdade absoluta, e que o substitutivo revogou as competências do Ministério do Meio Ambiente. Novamente, o texto do substitutivo se distancia dos discursos do parecer sobre a proeminência do princípio da precaução.

Em reforço ao poder supremo outorgado à CTNBio, pelo texto do substitutivo, em total desacordo com o texto do projeto do governo, o novo texto incluiu o caráter vinculante, aos demais órgãos e entidades da administração, dos pareceres técnicos daquela Comissão sobre aspectos de biossegurança dos OGMs.

Por fim, mas não por último, o substitutivo do relator, além de reduzir a participação da sociedade civil na composição da CTNBio, retirou a autonomia das entidades na indicação dos seus representantes naquele colegiado.

Diante do exporto, Senhor Presidente, reivindicamos a Vossa Excelência a manutenção do texto do governo, o qual, reiteramos, ainda que não atenda a todas as reivindicações das entidades que lutam por um Brasil livre de transgênicos, conta com o respeito da sociedade civil organizada.

Como a matéria poderá ser votada a qualquer momento na Câmara dos Deputados, optamos por esta forma de comunicação com Vossa Excelência, e solicitamos a sua tolerância para considerar as seguintes ponderações adicionais sobre a temática, com o intuito, sim, de contribuir na formação de massa crítica para a defesa do texto do governo.

A rigor, as intensas pressões por uma legislação urgente no Brasil, permissiva aos OGMs, sem as cautelas devidas, estão associadas, em última instância, aos interesses econômicos dos conglomerados da química e da biotecnologia, tendo a soja RR como carro-chefe.

Para materializar esse propósito utilizam-se os aparelhos de formação de opinião para a desqualificação dos defensores do direito de precaução, caricaturados, publicamente, como “jurássicos, metafísicos” e, portanto, supostamente refratários ao desenvolvimento científico do país.

Ocorre que pesquisa científica na acepção do termo, e soberania nacional e alimentar, na essência, por vezes, são enunciados que se prestam apenas para as sinuosidades da retórica política.

É necessário ser dito que flexibilizar sobre aspectos da biossegurança com OGMs, para supostamente estimular a pesquisa, certamente, neste caso, nada tem a ver com aspirações de soberania; pelo contrário.

O processo de P&D de variedades geneticamente modificadas consome centenas de milhares de dólares, a exemplo da soja RR. Nestes termos, não seria razoável proclamar-se soberania simplesmente por força de facilitação de pesquisas feitas por instituições, como a Embrapa, por exemplo, que nos últimos anos vem enfrentando processo considerável de desmonte e esqualidez financeira, e que por conta disso vem sustentando e orientando grande parte das suas pesquisas graças à “colaboração financeira e tecnológica” dos laboratórios que detêm as patentes dos processos e dos produtos com OGMs?

Sem o disciplinamento das condições de associação de empresas/instituições públicas de pesquisa com os laboratórios privados internacionais e, ao mesmo tempo, na ausência de medidas para a recuperação da autonomia financeira dessas instituições, os “estímulos” à agilização das pesquisas com OGMs, ao contrário, tendem a aprofundar a dependência científica e tecnológica do país.

A Embrapa é um patrimônio nacional, e não podemos permitir a continuidade da sua “terceirização’ no desenvolvimento de pesquisas movidas pela expectativa de lucros dos grandes laboratórios estrangeiros, via de regra, descolados das necessidades e dos interesses nacionais.

O fato é que, sem prejuízo da necessidade óbvia de investimentos massivos do país nessa área, uma visão contemporânea e condizente com os interesses imediatos e futuros do Brasil requer, inclusive, o redimensionamento do princípio da precaução, que deve transcender aos aspectos ambientais e da saúde pública para incorporar os valores da soberania de fato, e os interesses comerciais do país.

No caso do princípio da precaução, por razões comerciais, que se aplicaria para a aferição cuidadosa das tendências de mercado dos produtos transgênicos e convencionais, previamente à liberação desses produtos, tome-se o exemplo da soja RR.

Estudo elaborado no ano de 2002 pelo Economic Research Service, USDA, publicado em fevereiro de 2003, com síntese disponível em http://www.ers.usda.gov/Briefing/Baseline/trade03.htm), projeta que no ano de 2012, as exportações de soja pelo Brasil alcançarão cerca de 74 milhões de toneladas, ou seja, quantidade superior ao volume projetado para as exportações de Argentina e EUA, em conjunto.

Assim, nada mais revelador dos interesses que impulsionam o processo de liberação imediata dessa soja no Brasil. Pois, com isso, elimina-se a atual vantagem comparativa brasileira garantida pela predominância da soja convencional, preferida pelo mercado mundial. Ato contínuo, a homogeneização da oferta mundial com a soja transgênica, nos imporá um cenário absolutamente desleal de competição com os gigantescos subsídios recebidos pelos sojicultores americanos.

Sob tais condições, tenha-se como certa a reversão das tendências projetadas pelo Departamento de Agricultura dos EUA. para o ano de 2012.

Portanto, Senhor Presidente, julgamos que o texto original do governo mostra-se mais adequado a essa visão mais ampla do desenvolvimento das biotecnologias no Brasil, além de legitimado pelos movimentos sociais que comungam dessa perspectiva de abordagem sobre a matéria.

Em nome de centenas de militantes do MST

João Pedro Stedile