Movimentos indígenas lançam manifesto de repúdio à política indigenista do governo

A COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e a APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) divulgaram hoje, 6 de agosto de 2004, um manifesto à nação retratando a situação das comunidades indígenas, o não atendimento das demandas históricas destes povos e suas reivindicações.

No documento, os movimentos convocam as organizações aliadas e toda a sociedade civil a repudiar a atual política indigenista e a socializar a luta pelo cumprimento das promessas e metas assumidas pelo governo federal.

Leia abaixo a íntegra do manifesto.

Manifesto de repúdio a política indigenista do governo Lula

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) preocupadas pela crescente violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil por causa do descaso, da morosidade, omissão e conivência explícita do Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva manifestam:

01 – O Governo Lula, praticamente já na metade de seu mandato, não mostrou até agora sinais que mostrassem postura firme na implementação de uma nova política indigenista, sintonizada com as demandas históricas, as reais necessidades e aspirações dos povos e organizações indígenas do Brasil. A sua política, contrariamente, tem atendido mais às pressões de grupos políticos e econômicos interessados em explorar as terras indígenas e os recursos naturais nelas existentes;

02 – Os povos indígenas do Brasil, através de suas lideranças e organizações representativas, têm se disponibilizado a dialogar com o Governo Federal e contribuir na formulação e implementação dessa nova política indigenista, sem dar lugar a pseudo-consultas;

03 – O Governo Lula, na prática fechou as portas do dialogo para os povos e organizações indígenas, ao ponto do presidente do órgão indigenista federal, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Mércio Pereira Gomes, dizer que não reconhece as organizações indígenas como interlocutoras. Nesse contexto, a “Mesa de Diálogo” instituída durante a Audiência realizada com o Presidente da República no dia 10 de maio de 2004, na prática não existe mais. Pelo contrário, a morosidade e o descaso do Governo para com os direitos indígenas tem favorecido o crescimento e fortalecimento das ações de setores e parlamentares anti-indígenas, dentro e fora do Congresso Nacional, interessados em reverter os direitos conquistados na Constituição Federal de 1988.

04 – A COIAB e a APOINME reconhecem as parcerias possibilitadas por algumas instâncias do Governo, mas o conjunto dos direitos indígenas, principalmente o direito à terra, estão seriamente ameaçados. Esse retrocesso que caracteriza o Governo Lula no tratamento dos direitos indígenas é marcado por medidas e ações como as seguintes:

o A homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, não saiu e cresce a possibilidade de haver uma revisão da demarcação visando a redução daquela Terra Indígena, conforme a vontade do governo do Estado, dos fazendeiros, políticos e outros invasores contrários a homologação da Raposa em área contínua. Se isto ocorrer, teremos um agravamento ou surgimento de conflitos em Terras Indígenas em outras regiões do País, comprometendo a integridade física, psicológica e cultural das comunidades indígenas;

o A Terra Indígena Cachoeira Seca, do povo Arara, no Pará, com extensão de 760.000 hectares, que já possui a portaria demarcatória Nº 26/MJ, de 22 de janeiro de 1993, sob pressão dos latifundiários do Estado corre o risco de não ser demarcada e homologada em área continua com a Terra Indígena Laranjal, provocando a sua redução;

o A Terra Indígena Marãiwatsede (Suiá-Missú), no município de Alto da Boa Vista, no Vale do Araguaia, estado de Mato Grosso, do povo Xavante, que tem uma extensão de 165 mil hectares, já cumpriu todas as fases legais, isto é, já foi demarcada, homologada e registrada; o Governo, porém, não efetivou o direito dos índios a reocupar a terra que tradicionalmente lhes pertence e que permanece invadida por fazendeiros. Perante a recusa destes em abandonar a terra indígena, o povo Xavante acionou a justiça, requerendo integração de posse, mas o seu pedido, até hoje, não foi atendido. Mais de 400 indígenas, estão acampados na beira da estrada, desde novembro de 2003, aguardando apreensivos a decisão judicial. Enquanto isso, velhos e crianças adoecem. Na última semana de julho de 2004, três crianças morreram e outras duas continuam hospitalizadas. O clima de confronto existente entre os índios e os fazendeiros e posseiros, particularmente desde 1988, tende a se agravar;

o A Terra Indígena Baú, do povo Kaiapó, no sul do Estado do Pará, foi reduzida em 317 mil hectares (17,2% do total) por decisão do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que desconsiderou portarias anteriores e o despacho ministerial que determinava desde 2000 a imediata demarcação física da área. Com essa medida, o Ministro declarou inválidos os levantamentos fundiários realizados no passado, colocando em dúvida, portanto, que a área ocupada pelos índios era terra indígena. A redução supostamente foi baseada na opinião dos índios, que teriam feito um acordo com fazendeiros e posseiros da região, permitindo o ato, em troca de benefícios intermediados pela prefeitura de Novo Progresso, por um período de dez anos. Ignora-se, porém, a pressão a que os índios foram submetidos pelos fazendeiros e outros invasores e a conivência de órgãos públicos como a Funai, que não alertaram para a inconstitucionalidade deste ato, sendo que a terra indígena, por ser terra da União é inegociável.

Mesmo assim, o presidente da FUNAI, Mércio Pereira Gomes, referendado pelas palavras do Ministro da Justiça, vê como “bom negócio” soluções como estas, que resultam na redução de áreas indígenas que já passaram por todas as etapas legais do processo demarcatório. O presidente da Funai não tem legitimidade nenhuma para falar ou agir em nome dos povos e organizações indígenas do Brasil, sob o risco de estar ferindo nossa dignidade e o nosso direito sagrado à terra;

o Na região nordeste do Brasil, das 72 terras pertencentes a 51 povos indígenas, apenas 19 (26% do total) estão regularizadas. As demais encontram-se sem providência na justiça ou estão com os processos de demarcação paralisados;

o Na relação da FUNAI com os povos indígenas, principalmente na gestão de seu presidente Mércio Gomes, têm se fomentado práticas discriminatórias e estimulado a discriminação e inclusive conflitos, entre povos de outras regiões do país e os povos indígenas do Nordeste;

o Os tradicionais inimigos dos povos Indígenas estão fortalecidos no Congresso Nacional e dentro dos partidos políticos outrora aliados, principalmente o Partido dos Trabalhadores (PT), o partido do Presidente Lula, que durante mais de 20 anos foi um ferrenho defensor dos setores populares e povos indígenas. No Congresso, tramitam várias proposições que visam reduzir ou retirar da Constituição Brasileira nossos mais sagrados direitos conquistados. Dentre essas proposições destacamos o Projeto de Lei (PL) de Nº 188/2004 que revoga nossos direitos com relação aos procedimentos de demarcação de nossas Terras e o PL 1610, que quer legalizar a mineração em terras Indígenas de forma predatória e contrária aos nossos direitos de usufruto de nossas Terras;

o Agrava-se rapidamente a pressão assassina sobre nossas lideranças e nossos recursos naturais pelas novas frentes de expansão da economia predatória sobre nossas Terras em todas as regiões do Brasil, através da intensificação, por exemplo, da agropecuária de exportação (soja, gado, algodão, etc.), em detrimento da integridade dos ecossistemas, da biodiversidade, da cultura e saúde dos nossos povos. Empreendimentos, de diferente natureza, são projetados, como o asfaltamento da Br-163, sem que o governo considere o princípio da “participação e consentimento prévio e fundamentado” dos povos indígenas, os quais, segundo o Artigo 06 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), devem ser consultados “mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”;

o O Governo Lula, até agora, não conseguiu nos apresentar uma proposta clara de política indigenista, nem mesmo depois da Audiência concedida à lideranças do movimento indígena brasileiro no dia 10 de maio de 2004, ocasião em que os índios apresentaram ao Governo propostas, que entre outras questões exigiam: a consolidação, proteção e gestão sustentável das terras indígenas; políticas que assegurem o direito à saúde e educação escolar em todos os níveis, garantindo o atendimento diferenciado; respeito à identidade e valorização das culturas indígenas; a imediata criação de um novo Órgão Indigenista; o apoio do Governo Federal a uma Legislação Indigenista nos termos da Constituição de 1988; e um verdadeiro dialogo inter-étnico e participação indígena nas Instituições e Políticas Públicas;

o Na contra-mão das expectativas dos povos e organizações indígenas, o Governo militarizou a política indigenista federal, passando a responsabilidade da mesma para o Gabinete de Segurança Institucional. A essa medida tem se somado um processo organizado de descaracterização, criminalização e humilhação das organizações indígenas levado a cabo nos meios de comunicação nacional, visando enfraquecer nossas organizações e a imagem dos Povos Indígenas perante a sociedade brasileira.

05 – É lamentável, que um Governo que se caracterizou no início como democrático e popular, encerre desta maneira a Década Internacional dos Povos Indígenas, instituído pelas Nações Unidas para que os governos se empenhassem na resolução dos problemas históricos de violação dos direitos humanos e coletivos dos povos indígenas.

06 – Face a esta situação, a COIAB e a APOINME convocam a todos os seus aliados e parceiros nacionais e internacionais, bem como aos distintos organismos de defesa dos direitos humanos e dos direitos dos povos indígenas, dentro e fora do Brasil, para que repudiem este retrocesso que caracteriza a política indigenista do Governo do Presidente Lula, e exijam do mesmo um comportamento à altura dos compromissos que durante mais de duas décadas assumiu junto aos povos e organizações indígenas do Brasil.

Manaus e Alagoas, Brasil, 03 de agosto de 2004.

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)

Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo (APOINME)