A tentação dos fazendeiros

Por Marco Aurélio Weissheimer*

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) está patrocinando um cenário de violência sangrenta no campo, disseminando a guerra, cometendo crimes de toda a ordem e desrespeitando os direitos elementares das pessoas. Essa é a opinião do jornal O Estado de São Paulo, em um editorial publicado no dia 4 de agosto. Intitulado “A “vie en rose” que o ministro vê”, o Estadão critica duramente a atuação do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, acusando-o de conivência com a atuação do MST e de outros movimentos sociais, e comparando-o a uma personagem de Voltaire, Cândido, para o qual “tudo está bem, no melhor dos mundos”.

A opinião do jornal sobre o MST e sobre o ministro Miguel Rossetto não chega a ser exatamente uma novidade. É um de seus esportes preferidos. O que chama a atenção não está propriamente no texto, mas sim na percepção de que o festival de deformações que desfila nele seja assumido explicitamente por aquele que é considerado um dos mais importantes jornais da imprensa brasileira. O que significa isso?

O direito elementar das pessoas

Editoriais contra o MST e a Reforma Agrária não são uma exclusividade do Estadão. A virulência e o grau de deformação com que trata o tema, sim. Chega às raias da obsessão em sua tentativa de mostrar os sem-terra, os movimentos sociais e seus líderes como um bando de malfeitores e bandidos que estariam ameaçando a “ordem democrática” no país. E ultrapassa a fronteira do absurdo (se é que isso é possível), ao dizer que eles têm uma “prática continuada de desrespeito ao direito elementar das pessoas”. Aqui, o cinismo e a hipocrisia expressos no editorial revelam-se em todo seu esplendor e glória. Essa afirmação pode ser interpretada como uma chave de leitura para entender a postura das elites econômicas brasileiras (que encontram no Estadão um de seus representantes mais enlouquecidos) e sua responsabilidade pelo estado de coisas no país. Afinal de contas, para o bem e para o mal, há séculos elas vêm tendo a oportunidade de garantir o respeito “ao direito elementar das pessoas”. De que pessoas exatamente o jornal paulista está falando?

O citado editorial menciona algumas pessoas e grupos envolvidos neste processo. Cita o ministro Miguel Rossetto, acusando-o de conivência e subordinação ao MST. Fala, obviamente, de João Pedro Stédile, apontando-o como líder de um movimento que estaria “disseminando a guerra no campo”. Fala também de Manuel de Jesus e de Maria Betânia, dois sem- terra assassinados no Piauí. É esclarecedora a menção aos dois militantes mortos e a omissão sobre os autores das mortes. Pouco importa. Quem matou, deixa implícito o texto, estava exercendo seu legítimo direito de defesa. Mais adiante, o que era implícito torna-se explícito. Diante da ação do MST e de outros movimentos sociais (“ditos movimentos sociais”, segundo o jornal), os “fazendeiros nacionais não resistirão à tentação de defender-se por conta própria”. O uso da palavra “tentação”, aqui, também é revelador, tudo indica, de um desejo.

A materialização do desejo

Um desejo que, há muito tempo, se realiza de fato. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, os assassinatos de agricultores aumentaram 77,5% em 2003 (passaram de 40, em 2002, para 71). Outras formas de violência no campo também aumentaram. Tentativas de assassinatos, ameaças de morte, agricultores feridos em conflito. No tema das disputas de terras, 2.346 famílias foram expulsas das propriedades, mais de 20 mil sofreram ameaças de expulsão e cerca de 7 mil foram vítimas de pistolagem. E mais de 30 mil famílias sofreram despejos de suas terras, sendo que, entre elas, cerca de 6 mil tiveram suas casas, roças e pertences destruídos. Aparentemente, essas pessoas tiveram seus direitos elementares desrespeitados. A menos que tenham merecido o castigo, conforme sugere o Estadão. A menos que tenham cedido à tentação de resistir por conta própria. Afinal de contas, como se sabe, ceder a essa tentação é uma exclusividade dos fazendeiros.

Há outras tentações que acabam seduzindo alguns fazendeiros brasileiros, como a prática do trabalho escravo, a contratação de pistoleiros para matar padres, sindicalistas, ecologistas, fiscais do Ministério do Trabalho e outros baderneiros que ameaçam o “direito elementar das pessoas”. Essas tentações não fazem discriminação entre o campo e a cidade. Elas seduzem empresários a corromper funcionários públicos, seduzem donos de jornais a apoiar ditaduras militares, a silenciar sobre torturas e assassinatos, a chamar os poderes públicos de incompetentes e corruptos e silenciar sobre os corruptores, a sucumbir, enfim, a outros desejos inconfessáveis. A história do Brasil poderia ser escrita a partir da realização dessas tentações e desses desejos, a partir dos silêncios, omissões e cumplicidades que atravessam a sua transformação em realidade.

“Desistir da luta e sair do Brasil”

Não se trata aqui de negar a legitimidade de quem discorda dos métodos do MST ou de qualquer outro movimento social, parcial ou totalmente. A questão é que o Estadão discorda da “existência” desse tipo de movimento. Parece óbvio que, em um país com as gritantes desigualdades sociais do Brasil, movimentos reivindicatórios de direitos, ao esbarrarem com estruturas arcaicas e autoritárias de poder político, acabem radicalizando suas ações e transitando na fronteira do direito, o que, historicamente, é um atributo exclusivo do andar de cima. Neste quadro, nunca é demais apelar para o óbvio: a “prática continuada de desrespeito ao direito elementar das pessoas” é uma expressão que descreve a vida diária de milhões de miseráveis no Brasil.

Aliás, descreve muito mais a vida de pessoas como Manuel de Jesus e Maria Betânia, mortos no Piauí, do que a dos executivos do grupo finlandês Veracel Celulose e do grupo espanhol Llobet-Villas que, segundo o Estadão, “desistiram da luta e vão sair do Brasil”. A diferença, omite o jornal, é que os Manuéis e Marias não tem outro país para onde ir e, alguns deles, alimentam o desagradável hábito de não desistir da sua luta. Pela sobrevivência, no caso.

*Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior