Felisburgo: até quando?

Por Valquimar Reis

Ainda estarrecidos e indignados diante da confirmação do Tribunal de Justiça do Estado do Pará em manter impunes os assassinos dos 21 trabalhadores rurais em Eldorado dos Carajás, recebemos a notícia da chacina de Felisburgo-MG. Neste triste episódio, perdemos cinco trabalhadores e tivemos mais treze baleados, entre os quais uma criança de 12 anos.

O número de fatos lamentáveis não pára de crescer. O julgamento no TJ do Pará ocorreu no dia 19 de novembro e um dia depois, houve a chacina em Felisburgo. No dia 21 do mesmo mês, pistoleiros dispararam mais de 100 tiros contra um acampamento no Mato Grosso do Sul, ação sem vítimas graves. No dia 22, foi a vez de Passira, em Pernambuco, onde pistoleiros dispararam contra acampados, entre os quais, havia dois coordenadores que desapareceram após a ação. Em Roraima, no dia 23, latifundiários destruíram a aldeia Jawari, tentaram matar os índios da Reserva Raposa Terra do Sol e acabaram por balear o índio Jocivaldo.

Os relatos dessas ações nos mostram claramente a existência de perseguição sistemática aos trabalhadores Sem Terra e aos que lutam pela democratização da estrutura fundiária no país. O modus operandi utilizado pelos agentes da perseguição, membros de uma elite violenta e preconceituosa, não é diferente dos ensinamentos panfletários de fazendeiros de São Gabriel-RS: “(…)Não permita que sua cidade tão bem conservada seja maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. Estes ratos precisam ser exterminados. Se tu(…)possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos; sempre haverá um vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se tu(…)possuis uma arma de caça calibre 22 atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1.200 metros de distância”.

Os agentes da perseguição e responsáveis pelas atrocidades relatadas são fazendeiros, grileiros, latifundiários e suas milícias. São também atores principais da violência contra os Sem Terra alguns setores dos poderes públicos, coniventes com tais ações, e alguns meios de comunicação que tentam justificar atos de perseguição e morte como o “mal necessário”. São esses mesmos personagens que chegam a manter suas propriedades sob trabalho escravo.

É necessário esclarecer que os representantes da “modernidade” do agronegócio no Brasil ainda respiram ares de antes de 1888. Ignoram que, ao menos na lei, a escravidão foi abolida. Exemplos não faltam. O maior produtor de feijão do Brasil, Norberto Mânica, foi acusado de mandar assassinar três fiscais e o motorista do Ministério do Trabalho por constatação de trabalho escravo em suas fazendas. Wander Carlos de Souza, um dos maiores produtores de algodão no Brasil, teve flagrado em suas propriedades 125 trabalhadores sem registros e mais 80 sob condições de escravidão. Outro triste exemplo, fica por conta da Família Mutran que além de ser a maior exportadora de castanha-do-pará do país, tem seu chefe de família, Osvaldo Mutran, como assassino de um fiscal do ICMS e um menino de oito anos com um tiro na cabeça. Mais. O grupo J.Pessoa é um grande produtor de açúcar e álcool. Em uma operação conjunta, Ministério Publico e a Policia Federal, comprovou-se a prática de trabalhado escravo em uma de suas usinas.

A história da violência no meio rural brasileiro é causada pela enorme concentração fundiária. O índice de Gini indica a concentração de 0,859, ou seja, 56% da terras brasileiras estão nas mãos de apenas 3,5% dos proprietários. Violência e impunidade são grandes amigas deste índice. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciam que entre 1985 e 2003, foram registrados 1.349 assassinatos no campo, dos quais apenas 75 foram a julgamento – 65 executores e 10 mandantes foram condenados. Somente em 2003, foram assassinados 73 trabalhadores Sem Terra. O número é 69,8% maior do que em 2002. E é com grande preocupação que o MST enxerga no paraíso do agronegócio, a região centro-oeste, tão altos índices de violência aos Sem Terra.

Estamos diante das conseqüências de um problema que se arrasta há séculos. Desde 1500, o uso da terra no Brasil beneficiou apenas uma minoria da classe dominante que sempre impediu que a população tivesse acesso à posse e usufruto da terra.

Durante quatro séculos o Brasil tem um modelo econômico perverso, chamado de agroexportador. Este sistema faz parte de uma tríade: grandes propriedades monocultoras, produtos para exportação e trabalho escravo. Também chamada de Plantation, o modelo guarda semelhanças com o famoso agronegócio.

O governo nunca colocou a questão como prioridade. Perdemos oportunidades históricas de realizar a Reforma Agrária, de desenvolver o mercado interno e de distribuir renda e riqueza. Em 1964, o Presidente João Goulart foi um dos primeiros que tratou essa questão em suas Reformas de Base. O resultado, como todos sabemos, foi o longo período de ditadura militar. O bolo cresceu e continua sem ser dividido. Tivemos Tacredo, Sarney, Collor, Itamar, oito anos de FHC e agora Lula. Pouco ou nada muda. Continuaremos a lutar para combater essa sociedade excludente e desigual, que não consegue mais dormir à noite: grande parte por fome e outra por medo.