Lessa afirma que “nação está desestruturada pela economia política que serve aos poderosos”

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Lessa afirma que “nação está desestruturada pela economia política que serve aos poderosos”

24/11/2004

O ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Carlos Lessa, enviou uma carta aos participantes da Conferência Nacional Terra e Água, que acontece em Brasília (DF) entre os dias 22 e 26 de novembro.

No documento, lido esta tarde, Lessa afirmou que o governo “tornou-se, a despeito do Presidente e de seus sonhos em favor do povo, uma espécie de aliança objetiva entre a alta finança e a clientela dos programas assistencialistas, como o Fome Zero, enquanto, no meio, as classes médias estão sendo desmanteladas pelo desemprego, pelo subemprego e pela queda, desde 98, da renda do trabalho. É uma ilusão achar que as elites, por vontade própria, vão mudar esse estado de coisas. Isso só mudará de baixo para cima, a partir das massas”.

Leia abaixo o texto na íntegra:

O projeto nacional passa pela questão social

Carlos Lessa

Quando uma sociedade se pergunta qual é o seu “projeto nacional”, ela está a meio caminho de formular um. Só faz esse tipo de pergunta uma sociedade que se reconhece insatisfeita com a organização econômica e social que a caracteriza e que a condiciona, e que efetivamente já começou, não necessariamente no campo teórico, mas pela prática, o movimento de sua superação. É muito claro que estamos neste momento. O MST e outros movimentos populares brasileiros começaram a fazer o esboço de nosso “projeto nacional” diante do absoluto fracasso, em termos de interesses das massas, do modelo de subdesenvolvimento que nos tem sido imposto dos anos 80 para cá pelas elites brasileiras, serviçais e cúmplices das elites financeiras internacionais.

Se me perguntarem, pois, qual é o “projeto nacional” que nos convém como povo, serei tentado a dizer: É o projeto que o MST e outras entidades da sociedade civil brasileira estão construindo, a partir de seus interesses objetivos. De fato, há muito tempo perdi as esperanças de que as elites brasileiras viessem liderar um “projeto nacional” que conjugasse seus interesses com os interesses do povo. Não. As elites dominantes brasileiras, e muito particularmente as elites financeiras, só vêem o Brasil como um território de caça e de pilhagem. Elas se recusaram o papel clássico das burguesias em outros projetos nacionais, capitulando a uma espécie de ânsia de internacionalização e globalização.

O fato é que temos duas nações, no Brasil, uma real e outra aparente. A nação aparente é a nação dos poderosos e dos ricos. Ela está enlaçada em interesses financeiros globalizantes. Seu objetivo maior é a estabilidade monetária aqui dentro, à custa de uma moeda dos ricos remunerada a taxas escorchantes, para que possam continuar dolarizando tranqüilamente sua renda e seu patrimônio. As conseqüências sociais internas desse modelo são ignoradas. Temos a maior crise social de nossa história, determinada por taxas de desemprego e de subemprego sem precedentes, por uma crescente onda de marginalização social, de criminalidade e de insegurança, mas isto é visto pelas elites como uma questão política, e não como uma questão social, de forma que insistem em manter a política econômica que é sua causa determinante.

A nação real é a nação do povão. Essa nação está desestruturada pela economia política que serve aos poderosos. Essa nação inventa estratégias de sobrevivência diversificadas, em termos práticos, mas é óbvio que ela é capaz também de construir utopias. A esperança que podemos ter num Brasil novo, num Brasil inclusivo, num Brasil próspero, vem da esperança que temos na capacidade do povo de não só formular, mas de realizar num plano abrangente suas utopias. Muitos alegarão que o povão está acomodado e não se moverá de onde está, numa espécie de niilismo desencantado. Enganam-se. O povo brasileiro, que fez a democracia política, acabará por fazer também a democracia econômica e social. Aliás, da parte dele, ele já começou a fazer.

O “projeto nacional” que o povo brasileiro começou a vislumbrar, a meu ver, é o projeto da democracia social verdadeira, do Estado do bem-estar social e da economia do pleno emprego. A Constituinte foi um importante passo nessa direção. Tivemos importantes avanços sociais na Constituição de 88, a Constituição cidadã segundo o saudoso Ulysses Guimarães. Não demorou muito e ela começou a ser desfigurada pelos sucessivos presidentes da República, numa recorrente traição à nação verdadeira. Foi desfigurada por Collor e foi desfigurada por Fernando Henrique.

Entretanto, de sua parte, o povo brasileiro fez, em 2002, a opção que lhe competia. Se o Presidente não está correspondendo a suas expectativas, não é culpa do povo, mas das elites que enlaçaram o Presidente. O fato é que o povo não é capaz de fazer um “projeto nacional” em tese. Mas é capaz de reconhecer um, se lhe apresentam.

A questão nacional brasileira, hoje, é a questão social dos milhões de desempregados, de subempregados, de marginalizados, de pessoas dedicadas às mais diferentes estratégicas de sobrevivência, muitos à beira da ilegalidade, enquanto outros passam para a ilegalidade aberta. É também a questão da Amazônia que é nossa e deve ser de nossos netos; é a questão do reaparelhamento das Forças Armadas; é a questão da autonomia da energia; é a questão do desenvolvimento científico e tecnológico, dos estoques reguladores e dos estoques de materiais estratégicos, dentre outros. A organização econômica dominante ignora nossa tragédia social sem precedentes. Tornou-se, a despeito do Presidente e de seus sonhos em favor do povo, uma espécie de aliança objetiva entre a alta finança e a clientela dos programas assistencialistas, como o Fome Zero, enquanto, no meio, as classes médias estão sendo desmanteladas pelo desemprego, pelo subemprego e pela queda, desde 98, da renda do trabalho. É uma ilusão achar que as elites, por vontade própria, vão mudar esse estado de coisas. Isso só mudará de baixo para cima, a partir das massas.

Entretanto, se o povo brasileiro soube construir a democracia política a partir de condições históricas tão difíceis, ele saberá também fazer a democracia social a partir das condições atuais. É verdade que, para a democracia política, tivemos alguns segmentos das elites como aliados. Mas isso pode se repetir, em menor escala, agora. As elites financeiras lutarão até o fim, mobilizando seus fâmulos na mídia e no sistema político, para defender seus privilégios, representados por taxas de juros exorbitantes e um superávit primário gigantesco. Contudo, o segmento produtivo real das elites pode ser um parceiro importante no “projeto nacional” neopopulista que precisamos construir. O sistema produtivo está sendo pilhado pelo capital financeiro. Façamos uma aliança com ele para mudar o sistema monetário e fiscal.

A conquista da democracia social no Brasil passa pela desmontagem desse sistema fiscal-monetário de juros e superávit primário escorchanets. Temos que ter uma política de pleno emprego, que significa redução drástica da taxa de juros e do superávit primário, implementação de um programa de aumento de dispêndio público em reforma agrária, políticas públicas básicas e infra-estrutura econômica (logística e energia), controle de capitais e administração do câmbio num nível favorável às exportações – na linha do que está sendo proposto pela Frente Parlamentar pelo Pleno Emprego, inaugurada nesta última terça-feira no Congresso Nacional. Na medida em que avançarmos nessa direção, ficarão claros os contornos do “projeto nacional” desenvolvimentista e neopopulista que devemos ter em mente. Neopopulista, sim, não vamos temer as palavras e os conceitos. Se fizemos desenvolvimentismo no passado não totalmente inclusivo, devemos nos voltar, hoje, para um desenvolvimentismo completo, que tenha na alma os interesses concretos do povo, na forma de direito ao trabalho, à terra, a teto, ao lazer e à liberdade.