Poder político e suas contradições desafiam a luta pela terra

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Poder político e suas contradições desafiam a luta pela terra

08/12/2004

Por Marco Aurélio Weissheimer
Fonte Agência Carta Maior

Os debates que marcaram os quatro dias do Fórum Mundial da Reforma Agrária definiram os marcos gerais de uma nova agenda para o tema, reposicionando a questão agrária a partir de uma perspectiva mais ampla, uma perspectiva que articula temas locais e globais. O Fórum de Valência reafirmou e fortaleceu a visão de que o tema da Reforma Agrária está ligado diretamente à concepção de desenvolvimento que se pretende construir para o século XXI. Trata-se de um tema que diz respeito não só à estrutura fundiária de uma sociedade, mas também às regras que devem orientar as políticas de acesso e gestão de recursos naturais, de comércio de produtos agrícolas, de uso de tecnologias e de que modelo de alimentação queremos para as gerações futuras.

A defesa dessa agenda repousa em uma crítica aos efeitos negativos do atual modelo de globalização neoliberal que, concretamente, desrespeita o princípio da soberania alimentar (reconhecido pela Organização das Nações Unidas), aumenta a concentração da terra e estabelece uma relação predatória com o meio ambiente. Neste sentido, as políticas preconizadas pelo Banco Mundial e pela Organização Mundial do Comércio (OMC) representam uma ameaça à segurança alimentar dos povos e ao direito de formas de vida tradicionais continuarem existindo. Ao incluir a produção de alimentos na agenda do comércio mundial e defender uma ampla liberalização desse setor, esses organismos ignoram direitos fundamentais de cerca de metade da população do planeta (direito de escolher o que cultivar, como cultivar e que tipo de alimentos consumir). Além disso, patrocinam a destruição de políticas agrícolas nacionais em nome das necessidades de um mercado global.

Problemas de linguagem e de comunicação

Transformar essa agenda da Reforma Agrária em uma articulação política internacional capaz de enfrentar o modelo proposto por essas organizações multilaterais exige, entre outras coisas, a construção de alianças entre os movimentos camponeses, de pequenos agricultores, indígenas, organizações não-governamentais e governamentais. Uma proposta várias vezes repetidas durante o Fórum de Valência defendeu a necessidade de os movimentos sociais pararem de falar apenas para si mesmos e dialogar de um modo mais amplo com os setores urbanos. A relação com a esfera do consumo desempenha aí um papel fundamental. A criação de canais diretos de comércio entre produtores e consumidores das cidades é um modo de enfrentar a monopolização da circulação de alimentos, que tem hoje nos grandes supermercados uma de suas principais expressões.

Há aí um problema de comunicação e de linguagem a ser enfrentado. Muitas vezes, os agentes e movimentos sociais que lutam por Reforma Agrária reproduzem um discurso que reduz a questão agrária ao tema da luta pela terra. Assim, além do bloqueio exercido pelos grandes meios de comunicação, cujos interesses empresariais costumam andar de mãos dadas com os do agronegócio, esses movimentos enfrentam ainda sérias dificuldades para conversar com setores urbanos e convencê-los da importância e da urgência do tema da Reforma Agrária. Não se trata, portanto, apenas, de construir canais alternativos de comunicação, mas, sobretudo, de melhorar a própria comunicação já existente. Ficar falando para si mesmo, repetindo um processo de convencimento dos que já estão convencidos, não ajuda a caminhar nesta direção.

Vontade e poder político

Esse problema de comunicação também se manifesta na relação com o poder político. Se é verdade que a mobilização social é uma condição indispensável para fazer o processo de Reforma Agrária avançar, também ficou evidenciado nos debates do Fórum de Valência que este avanço não se dará por uma questão de vontade política dos governos e dos movimentos. Os obstáculos e os adversários das políticas de Reforma Agrária devem ser compreendidos à luz da atual estrutura de poder político e econômico na sociedade global.

E, se é verdade também que, nos últimos anos, o movimento altermundista surgiu como uma novidade positiva e aglutinadora de diversos outros movimentos sociais, conseguindo vitórias importantes contra essa estrutura de poder, sempre é bom lembrar que o neoliberalismo continua sendo uma força poderosa e com valores culturais profundamente arraigados na sociedade. É prudente, portanto, considerar que se trata de um adversário fortíssimo, cuja superação exige uma compreensão crítica permanente sobre sua natureza e funcionamento.

Assim, os temas da correlação de forças e das contradições internas a esta estrutura são elementos fundamentais para a fixação de estratégias de ação. Ou seja, a definição de aliados e adversários nesta luta deve ser feita a partir de critérios que vão além de avaliações rápidas, a partir do conceito de vontade política. Relatos de experiências passadas de Reforma Agrária, de êxitos e fracassos, mostraram que é preciso olhar para as contradições do atual modelo agrário e saber explorá-las. Como disse, o ex-ministro da Agricultura de Portugal, Fernando Oliveira Batista, o novo só nasce da contradição.

Terra, poder e formas de vida

Mas, talvez, uma das principais contribuições desse primeiro Fórum Mundial de Reforma Agrária tenha sido a de apontar, sob várias formas, a relação intrínseca que articula os temas da terra, do território como elemento estruturante de uma sociedade e de uma nação, e das formas de vida. Os relatos de casos de opressão, discriminação, expulsão e destruição de comunidades inteiras mostraram que a discussão sobre a posse e o uso da terra nos remete diretamente ao debate sobre o tipo de sociedade que temos hoje e que poder político-econômico a sustenta. As histórias são semelhantes: Palestina, Colômbia, Bolívia, Brasil, Índia, Filipinas, Espanha…Relatos de pessoas que foram expulsas de suas terras de modo violento. Relatos de assassinatos e violências cometidas contra quem tentou se opor a essas agressões. Relatos de estratégias de governos (tendo Israel como um caso exemplar) para impedir um povo de ter sua terra, seu território e, portanto, sua nação. Relatos de formas de vida ameaçadas pela extinção pura e simples.

A questão da terra, portanto, está diretamente ligada à do poder político. Poder este que não se resume à esfera público-estatal, mas que está profundamente influenciado por ela. O interesse despertado no Fórum de Valência pela experiência do Plano Nacional de Reforma Agrária que vem sendo implementado no Brasil é exemplar neste sentido. As críticas e dúvidas levantadas em relação à velocidade e aos rumos desse programa escancararam todas as contradições envolvidas neste processo. Quais são os critérios que devem ser utilizados para avaliar essa velocidade e essa direção?

Pela qualidade e intensidade dos debates que envolveram representantes de governos e movimentos sociais, a lição de Hegel e Marx, lembrada por Fernando Batista, renova toda sua atualidade: o sucesso ou o fracasso dessa política, e de outras marcadas pelo mesmo compromisso, dependerá fundamentalmente da compreensão da natureza dessas contradições. Subordiná-las a disputas internas por pequenos espaços de poder, a vaidades disfarçadas de convicções e a mecanismos que transformam aliados em adversários (e vice-versa) é o caminho mais curto para a derrota dessa luta.