Habitação: precisamos de reforma

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Habitação: precisamos de reforma

17/01/2005

Por Jorge Pereira Filho
Fonte Jornal Brasil de Fato

“Não se resolve o problema da habitação apenas com subsídio habitacional. Precisamos de uma reforma fundiária e uma reforma financeira”, defende a arquiteta Ermínia Maricato, secretária-executiva do Ministério das Cidades e militante pela reforma urbana. Criada durante o governo Lula, a pasta tem sido afetada pelos cortes orçamentários para que o governo cumpra o superávit fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Recentemente, o ministro Olívio Dutra vem encabeçando a defesa de que os gastos em habitação e saneamento sejam excluídos das restrições fiscais. Para Ermínia, o atual crescimento econômico deve ser transitório e não pode deixar de contemplar as necessidades do desenvolvimento, sob pena de repetir um modelo de crescimento que tivemos durante os anos de 1940 e 1980, mas que não reduziu as desigualdades sociais.

Qual o balanço que a senhora faz desses primeiros dois anos de Ministério das Cidades?

Ermínia Maricato – Bem, o Brasil vem de um período de mais de uma década de ausência de formulação de política urbana que não existe em âmbito nacional. O ministério está formulando a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano em conjunto com a sociedade e os demais entes federativos. Fizemos uma Conferência Nacional das Cidades em 2003, que alcançou 3,4 mil municípios e 26 unidades da federação. Depois, tivemos uma conferência nacional em Brasília, com 2,7 mil delegados do país todo quando foi eleito o Conselho da Cidade, que representa diversos setores da sociedade. Teremos uma nova conferência em 2005. Além disso, ampliamos o orçamento de saneamento, habitação, reformulamos programas de moradia. Acho que, em dois anos, tanto do ponto de vista das realizações como do esforço para ocupar esse vazio institucional, avançamos muito.

O Ministério das Cidades foi um dos mais atingidos pelo contingenciamento no orçamento do governo federal em 2003 e 2004. A pasta está desprestigiada?

Ermínia – Não creio que o ministério tenha sido o mais penalizado, o ajuste fiscal distribui o sacrifício. Para 2005, estamos esperando R$ 1,020 bilhão, é um aumento muito grande de recursos. Evidentemente, no entanto, para as necessidades do Brasil, ainda é pouco para atingirmos a baixa renda, tanto na habitação, como no saneamento e no transporte urbano. Mas tivemos avanço. Se compararmos o orçamento de 2003, o de 2004 com o de 2005, principalmente, veremos isso.

Mas, em 2004, o orçamento atingiu quase 60% da verba do ministério?

Ermínia – Ocorre que quando o orçamento sai do Congresso, vem muito maior do que é o determinado. Acho que o contingenciamento atinge todo mundo. O que nós sentimos mais é que temos recursos do FGTS para o empréstimo no setor público e esses recursos só podemos gastar em uma quantia significativa na área do saneamento. Nesse caso, houve um tratamento excepcional. Esperamos ainda saber qual é a flexibilização que teremos na área de habitação e transporte.

O ministério formulou uma proposta para o Fundo Monetário Internacional (FMI) excluir do cálculo do superávit fiscal o gasto em habitação.

Ermínia – Sim, mas essa proposta não é só do ministério. Foi assinada na reunião dos presidentes latino-americanos, pelo Grupo do Rio, o presidente tem levado em seus discursos internacionais. O Olívio Dutra (ministro das Cidades) levou para o Fórum de Barcelona a proposta de eliminar do cálculo do superávit os recursos que fossem destinados a saneamento e habitação visando cumprir as metas do Milênio, que se referem à população mais pobres, as quais o governo brasileiro se comprometeu. Estamos fazendo isso em nível internacional e esperamos marcar uma reunião chamada pela Organização das Nações Unidas com os países não-desenvolvidos para ver se acertamos uma proposta nesse sentido, visando o cumprimento das metas do Milênio de habitação e saneamento.

Como a atual política econômica interfere, hoje, na questão da reforma urbana?

Ermínia – Bem, eu estou no governo, devo lealdade a ele, há um debate interno, aqui. Quero acreditar que essa política econômica é transitória para assegurar não só crescimento, mas especialmente desenvolvimento. Crescimento tivemos entre 1940 e 1980 e isso não significou distribuição de renda nem diminuição da desigualdade. Entendo que estamos crescendo, e isso é fundamental porque gera emprego. A desigualdade, no Brasil, antes era mais suave e assumiu essa condição dramática entre a década de 80 e 90, quando não houve crescimento econômico. Nesse período, tivemos apenas duas bolhas de expansão e houve aumento do desemprego e urbanização da pobreza. O processo de urbanização havia sido grande com o período de crescimento econômico. Com a eliminação das oportunidades, você tem o recrudescimento da violência nas cidades. Há 30 anos, nossas cidades não eram tão violentas e pobres.

As favelas continuam a crescer nos últimos anos?

Ermínia – As favelas continaram a aumentar não só no período em que não houve crescimento econômico, mas também antes. Mesmo quando o Brasil cresceu muito, com exceção da cidade de São Paulo, as favelas se expandiram muito nas cidades de Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza. Isso mostra que temos uma exclusão histórica em relação à moradia que vem da senzala. A força de trabalho quando se torna livre no Brasil não consegue ganhar o bastante para se sustentar com a compra de mercadorias no mercado formal. Não é verdade que o salário no Brasil cobriu as despesas da força de trabalho. A habitação sempre esteve fora do cálculo de reprodução da força de trabalho. Encaramos essa questão como estrutural, não algo restrito, mas para isso precisamos mudar muita coisa, a começar com o perfil do mercado privado, que hoje é um mercado de luxo e atinge apenas uma minoria da população brasileira. Queremos que esse mercado chegue à classe média. Porque, com os recursos públicos, nós poderemos chegar na baixa renda. Há décadas, os recursos públicos vão para a moradia de renda média.

Mas e a distribuição de renda?

Ermínia – Temos de desfazer alguns paradigmas. A questão é que não se resolve o problema da habitação apenas com subsídio habitacional. Isso é muito defendido tanto por alguns setores da esquerda quanto pelo setor da construção civil. Se colocarmos muito subsídio no mercado da forma que ele é hoje, vamos promover uma ampliação do preço da terra. Iremos alimentar a especulação e não vamos fazer a universalização do acesso. Precisamos de uma reforma fundiária e uma reforma financeira. Senão o governo põe dinheiro e esses recursos vão para a mão dos proprietários de terra, que elevam o preço da terra. Ou vai para a mão de um produto especulativo. Subsídio é necessário, defendemos isso há anos. A população que ganha menos de três salários mínimos responde por 84% do déficit habitacional do país. Essa população depende de subsídio, senão vai continuar a ocupar terra e, em boa parte das vezes, prejudicando o meio ambiente, em áreas de mananciais. Essa população ocupa porque tem que morar em algum lugar. Não há alternativa para a população pobre.

O que seria essa reforma fundiária?

Ermínia – Essa reforma fundiária, que nós chamamos de reforma urbana, se faz com o Estatuto da Cidade por meio do Plano Diretor. É dessa forma que o Estatuto da Cidade direcionou a função social da propriedade. Não é simples. Com essa tradição que temos de exclusão social, não é fácil aplicar uma lei em benefício da população pobre. É uma lei complexa, mas que precisa ser utilizada.

Desde 2001, quando foi aprovado, o Estatuto tem promovido mudanças?

Ermínia – Olha, o Estatuto tem sido muito pouco aplicado. Agora, há mais de duas mil prefeituras que precisam elaborar seu Plano Diretor até 2006. Nós estamos trabalhando para fazer uma campanha com o objetivo de fortalecer as lideranças sociais para conseguirmos fazer Planos Diretores que tenham terra urbanizada para habitação social. Hoje, é raro vermos um Plano Diretor que leva isso em consideração. Agora, o interessante é que essa terra não pode ficar no fim do mundo, na periferia. Estamos falando de terra urbanizada, relacionada com transporte e saneamento.

A senhora vê, na sociedade brasileira, um grau de esclarecimento sobre a necessidade da democratização do solo urbano compatível com o que diz o Estatuto da Cidade?

Ermínia – Legislação no Brasil sempre foi avançada, mas a aplicação, quando não serve aos interesses dos poderosos, é retardada. Programas de regularização fundiária, tanto em nível federal quanto em municipal, enfrentam muita dificuldade para serem realizados. É relativamente fácil nesse país registrar o latifúndio em área de terra devoluta (que pertence ao poder público). Se você pegar a história do Brasil, os exemplos são abundantes. Desde 1850 até pouco tempo, a maior parte do território brasileiro era devoluto. Hoje, no entanto, não é isso que ocorre, pois houve uma privatização dessas terras. Quando você quer fazer uma regularização fundiária de bairros que existem há três décadas, ocupados por uma população pobre, há muita dificuldade.

É possível realizar uma reforma urbana sem discutir a questão agrária?

Ermínia – Essas coisas são paralelas, para que a gente segure o que temos de população no campo – estima-se hoje que sejam 16% dos brasileiros -, a agricultura familiar é fundamental para segurar os jovens e dar a eles uma perspectiva que não teriam nas grandes cidades. E, sem dúvida, é necessário fazer a reforma agrária.

Enquanto isso não ocorre, as migrações continuam?

Ermínia – Continuam e estão seguindo mais para as cidades de porte médio, atualmente, entre 100 mil e 500 mil habitantes, com exceção de Manaus, as capitais do Centro-Oeste e Curitiba, que continuam a crescer muito. Manaus é um caso dramático de altíssima taxa de crescimento sem acompanhamento de política de infra-estrutura e habitação.

Os movimentos sociais urbanos dizem que embora haja maior diálogo com o Ministério das Cidades, falta justamente uma ação estrutural do governo. E dizem também que os programas para baixa renda não são acessíveis pelos níveis de exigências do poder público.

Ermínia – Os movimentos têm razão em relação ao nível de exigência, mas creio que sabem de nosso esforço. As críticas nos ajudam a tentar sensibilizar as exigências. O problema é que nosso país não sabe como é que se trabalha com a população pobre. Toda a dificuldade dos programas sociais do governo reflete isso. Quando é que tivemos política de habitação voltada para baixa renda? É verdade que o Banco Nacional de Habitação (BNH) teve uma parcela de seus recursos destinados para essa faixa da população na construção de conjuntos fora da cidade. Mas nunca foi perguntado para quem quer que fosse, liderança social ou comunitária, se os procedimentos estavam corretos ou não. O BNH fechou em 1985. Depois, não houve mais nada. Temos de reaprender a fazer uma política que seja democrática e tenha um controle social. Os movimentos sabem que estamos tentando reverter a prioridade do investimento em habitação para baixa renda. Quando entramos, em 2002, 70% dos recursos do FGTS foram para rendas acima de cinco salários-mínimos. Reduzimos isso para 50% e, em alguns programas, para 40%.

Quem é
Ermínia Maricato é secretáriaexecutiva do Ministério das Cidades, pesquisadora, arquiteta e militante da reforma urbana. Autora de diversos livros sobre a questão urbana, entre eles, Metrópole na Periferia do Capitalismo e A Cidade do Pensamento Único.