Rumo a uma nova sociedade

Por Heloisa Fernandes Silveira

Inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes

Guararema, 23 de janeiro de 2005

É com muita honra e emoção que comparecemos aqui, Paulo e eu, representando a família de Florestan Fernandes; representando minha mãe, Miriam, meus irmãos, Noêmia, Beatriz, Sílvia, Miriam Lúcia e Florestan Júnior, seus netos, bisnetos, uma grande família!

Começo pedindo desculpas por ler essa minha fala que, propositadamente, não quis formal, acadêmica, mas afetiva e, mesmo, íntima. Recorro à leitura porque ela me preserva não só dos lapsos da memória como, mais ainda, da minha própria emoção.

Inicio retomando a questão da minha honra e emoção.. De fato, neste ano de 2005 vai completar dez anos da morte do meu pai. Nesse período foram muitas, de fato inúmeras, as homenagens que ele recebeu, mas não creio que tenha havido alguma que lhe faça maior justiça e que pudesse lhe despertar maior orgulho.

Falo de justiça e de orgulho porque acredito que, hoje, com a inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, meu pai retorna às suas três casas: não só àquelas que habitou e ajudou a construir,como àquela outra, àquela casa primeira, à casa dos seus ancestrais.

Retorna à primeira casa, à casa do saber; retorna à escola, ao ensino, à universidade. Não àquela casa onde o saber é privilégio que, como dizia Mariátegui, “condena as classes pobres à inferioridade cultural porque faz da instrução o monopólio da riqueza”. Retorna, realizado, àquela casa que ele sonhou e pela qual tanto lutou: onde o saber visa à libertação daqueles que, com Fanon, ele costumava chamar os deserdados da terra. Adentra uma casa do saber onde estão resgatados os melhores ideais pedagógicos do humanismo democrático e socialista.

Retorna, também, à sua segunda casa, àquela onde fixou sua morada e seus mais fervorosos projetos; retorna à casa do socialismo. Ao socialismo da solidariedade internacional, que tornou financeiramente possível a realização desta Escola, e, mais ainda, ao socialismo do trabalho dessas brigadas anônimas de sem-terra, desses “herdeiros da tradição revolucionária da luta pela democratização da posse da terra e da política agrária” que, tijolo a tijolo, garantiram a construção desta Escola.

Retorna, enfim, à sua terceira casa, à casa dos seus ancestrais, à sua herança mais íntima e verdadeira: à casa dos camponeses. Desses camponeses que dormiam em choças construídas acima do curral onde ficam umas poucas vacas que garantem seu sustento e calor. Desses camponeses portugueses que, no início do século vinte, migraram da província do Minho, distrito de Braga, neste extremo norte de Portugal, embarcando num daqueles navios de emigrantes para desembarcar em Santos com destino a Bragança, onde esses meus bisavós, minha avó Maria, ainda criança, mãe de meu pai, e seus sete irmãos, foram trabalhar, como colonos, numa fazenda de café. Desta história familiar restou uma dívida que meu pai assumiu com esses trabalhadores da terra nos quais reconhecia sua gente. Não por acaso, quando acabava de nascer minha filha, seu primeiro neto, meu pai entrou no quarto e me fez um pedido que, na época, julguei surpreendente: ” – Heloísa, gostaria que você soubesse que muito me alegraria se ela se chamasse Ana” , nome da sua avó camponesa, cuja bravura ele tanto amou e admirou. Mal sabia eu, quando aceitei, que, quase quarenta anos depois, estaria aqui, hoje, para atestar essa herança camponesa que foi a dele, como é a minha.

Enfim, como essa é uma fala afetiva, íntima e, até, familiar, permito-me relatar os restos de um sonho que tive na noite desta última sexta-feira. Um sonho que condensa quase tudo que quis dizer aqui. Durmo eu ainda, já de manhãzinha, lá pelas cinco horas, quando ouço o barulho de um caminhão que adentra a minha rua e um vozerio que vai aumentando conforme se aproxima da minha casa. Levanto, sonolenta, e procuro descobrir, pelas frestas da janela, o que é que se passa lá fora, o porquê deste barulho! E eis que vejo muitas pessoas, homens, mulheres, crianças, descendo da carroceria do caminhão. À frente deles, decidido, alegre, sorridente, meu pai: “-Acorda, Heloísa, hoje é o dia do seu aniversário!” E é mesmo! Hoje é dia de festa, é o dia do primeiro dia, meu, do meu pai, de todos nós, rumo, como ele dizia, ” a uma nova sociedade, a uma nova civilização, a um novo ser humano”.