Contra as teses do refluxo

Por Laura Tavares
Fonte Outro Brasil

Em tempos de crise, a confusão política e ideológica também se agudiza. Em uma sociedade ainda dominada pelos interesses conservadores de sempre e pela ideologia neoliberal ainda hegemônica, essa confusão termina beneficiando os setores da direita brasileira – a tradicional e a “moderna”.

Peço licença aos leitores e aos meus colegas desta página (espaço onde sempre respeitamos a diversidade, sem nenhuma falsa “neutralidade”) para sair um pouco daquilo que tem sido o foco das minhas análises nestes últimos dois anos (as políticas sociais do Governo Lula frente à desigualdade brasileira), e cometer a ousadia de fazer uma leitura crítica a uma tese hoje muito difundida: a do “refluxo” (também chamada de “cooptação” ou “silêncio”) dos intelectuais de esquerda e dos movimentos sociais.

A tese do “silêncio” dos intelectuais de esquerda (tendo como alvo principal, não por acaso, os petistas) foi explicitada em matéria de página inteira da Folha de São Paulo[1]. Peço mais uma vez licença aos leitores para contrapor essa tese começando “em casa”. Quem acompanha esta página sabe que os analistas que nela trabalham (ligados ou não ao PT) vêm publicando, mensalmente, desde julho de 2003, análises de conjuntura e, em especial, do Governo Lula. Temos exercido amplamente, ao longo desses dois anos, o espírito crítico, tão caro aos intelectuais de esquerda, e não temos poupado o Governo Lula de críticas, muitas vezes contundentes, nos âmbitos político, social e econômico. Por outro lado, entendendo o papel de um intelectual que se pretenda orgânico nos tempos atuais, tampouco abrimos mão da análise dos limites e possibilidades das alternativas necessárias para mudanças radicais, que entendemos têm que começar a serem construídas no presente, mas que não dependem apenas de atitudes “voluntaristas”.

Nossas análises têm contribuído, sobretudo, para a tarefa de continuar desmontando “consensos” que ainda possuem a marca do neoliberalismo, sob uma falsa roupagem de “modernidade”, no Brasil e na América Latina. Além disso, todos nós, tal como inúmeros intelectuais orgânicos da esquerda brasileira (“ilustres” ou não), somos também militantes das causas sociais e políticas a favor da mudança, viajando o país inteiro para debater com movimentos sociais, estudantis, entidades da classe trabalhadora, universidades, escolas, etc., na tentativa de contribuir com a construção daquilo que João Pedro Stédile, dirigente do MST, chama de “uma nova correlação de forças”, tanto política como ideológica.

Em tempos de “pasteurização”, onde os limites entre esquerda e direita são propositadamente borrados, queremos marcar a diferença, por exemplo, com um dos entrevistados da FSP, o Professor Weffort, que foi um ilustre representante de uma longa fila de intelectuais (antes ditos de esquerda) que fizeram parte não do “silêncio dos inocentes”, mas do “silêncio dos coniventes” que contribuíram, direta ou indiretamente, ao longo da década de 90, com o maior projeto de modernização excludente já perpetrado neste país. Nessa época, nós (os acusados hoje pela FSP de estarmos em “silêncio”) éramos considerados os “neobobos”, os “derrotistas”, os “pessimistas”, os “anti-patriotas”, etc., etc. Aliás, a grande mídia nunca nos deu espaço (pelo menos equivalente ao que dá hoje para os críticos do governo Lula) para divulgarmos nossas idéias contra o governo FHC, que já apontavam, desde o início do seu mandato, para o “desastre anunciado”. Foi uma das épocas mais autoritárias (ao contrário de hoje) do ponto de vista da livre expressão da diversidade, sobretudo quando esta vinha da esquerda, mesmo sob um regime dito democrático. Eram tempos de “consenso único”.

A tese do “refluxo” e/ou “cooptação” dos Movimentos Sociais, a partir do Governo Lula, não se sustenta se fizermos um acompanhamento mais sério do que têm sido as lutas dos Movimentos Sociais nestes últimos anos, bem como uma leitura mais atenta aos documentos e análises políticas emanados desses Movimentos. No campo e na cidade, os movimentos sociais brasileiros têm se mobilizado na defesa não apenas das suas reivindicações específicas, mas na luta por mudanças estruturais tão necessárias para a construção da justiça social neste país.

Não por acaso, ao contrariar interesses enraizados dentro e fora do aparelho de Estado, sobretudo regionais e locais – como as polícias militares dos estados e os poderes judiciários locais, além das milícias privadas dos latifundiários e dos esquadrões da morte das periferias urbanas – foram alvo de repressão e vítimas de violência, pagando muitas vezes com a própria vida. Ingênuos aqueles que, ao contrário dos movimentos sociais, não entendem que o Governo Lula tem agudizado e explicitado as contradições de classe neste país. Tampouco é por acaso que o MST e outros movimentos sociais reivindicam a federalização da política e da estrutura institucional na defesa dos Direitos Humanos. A intervenção federal no Pará, por exemplo, considerada por muitos movimentos já tardia, foi um exemplo dessa situação de confronto, sendo alvo de resistência por parte das elites locais e de críticas pela direita conservadora. Ataques e resistências que tampouco faltaram por ocasião da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. [2]

Nessa luta, os movimentos sociais tampouco pouparam o Governo Lula da crítica aguda à sua política econômica, da crítica pertinente à consecução de políticas e programas que dessem conta da enorme dívida social ainda pendente, bem como daquelas críticas mais gerais relativas ao modelo econômico, social e político ainda vigente. Ao mesmo tempo, em suas análises políticas, esses movimentos levam em conta elementos analíticos como a luta de classes, a correlação de forças, a disputa e o conflito de projetos dentro e fora do governo Lula, a hegemonia conservadora e neoliberal na sociedade brasileira, entre outros.

Elementos esses, aliás, que já foram tão caros ao pensamento de esquerda e que ultimamente andam um pouco esquecidos por alguns que aderiram a uma espécie de “udenismo[3] de esquerda”, limitando o debate a questões morais e éticas em abstrato – agora defendidas enfaticamente pela direita. Defender até as últimas conseqüências a apuração das denúncias de corrupção é relevante mas não é suficiente na atual conjuntura: a direita também o faz.

Os movimentos sociais defendem uma rigorosa investigação, mas explicitando claramente seus propósitos: promover uma radical transformação política do Estado brasileiro, tornando-o mais democrático e, portanto, mais imune aos históricos interesses da classe dominante – que continuam permeando o Executivo, o Judiciário e, sobretudo, o Legislativo – e mais permeável aos interesses das classes historicamente dominadas. Não por acaso esses Movimentos estão se mobilizando por todo o país hoje, organizando manifestações contra a corrupção, mas também denunciando as tentativas golpistas e/ou oportunistas da direita de sempre. Mais uma vez os movimentos sociais respondem na ofensiva, com mobilização e luta, contrariando as teses do “refluxo”.

O último informe do MST[4] ilustra bem essa atitude que está longe de ser “defensiva”, pelo contrário. Ao mesmo tempo em que critica o governo Lula (“… o povo brasileiro se encheu de esperança e expectativas e votou em Lula pela mudança nessa política econômica. Com o passar dos meses, as perspectivas de mudanças em prol da justiça social foram diminuindo conforme os juros aumentavam. Ficou nítida a opção por uma política claramente neoliberal, baseada na alta de juros – a taxa básica, Selic, se mantém em 19,75% e é considerada a maior do mundo – , no estímulo às exportações e na garantia do superávit primário, que deve atingir R$83 bilhões em 2005. Os recursos para a Reforma Agrária, a educação, a saúde, o saneamento e a infra-estrutura do país foram para segundo plano.”); também denuncia o golpismo da direita: “Com as denúncias de corrupção divulgadas nas últimas duas semanas, o circo foi armado. A elite utilizou as declarações de Roberto Jefferson (PTB), da base governista, para criar uma cortina de fumaça e enfraquecê-lo, levantando até a possibilidade de impedimento. O Movimento Sem Terra defende a apuração de todas as denúncias, até as últimas conseqüências. Mas está claro que a direita utilizou a situação para antecipar o calendário eleitoral. Ou eles investem de vez no enfraquecimento do governo e partem para a consolidação de uma candidatura, ou fazem um novo pacto, com o estabelecimento de políticas mais à direita e sem alteração na economia. Um exemplo claro é a proposta de privatizar os Correios como forma de evitar a corrupção, seguindo assim os ditames das mudanças neoliberais. Somos contra a corrupção, mas também somos contra esse golpismo. Por isso, defendemos a apuração de todas as denúncias do governo Lula e dos governos anteriores, principalmente FHC.”

Finalmente, não deixa de fazer um alerta ao Governo Lula: “Este é um momento de decisão. Trata-se de uma disputa de projetos. O governo pode ampliar a política que vem aplicando até agora ou pode vir para o lado do povo, retomar seus compromissos de campanha com os 53 milhões de brasileiros e brasileiras que o elegeram. Precisamos ir para as ruas, mostrar o apoio às decisões de mudanças na política econômica e a prioridade do cumprimento dos direitos sociais. Vamos exigir do governo demonstrações de que está ao lado do povo com a democratização e a defesa das empresas estatais e dos direitos sociais, a favor das reformas políticas democráticas e da Reforma Agrária!”.

Inúmeros outros movimentos, além do MST, podem ser citados como exemplos de mobilização e luta; bem como de compromisso sério na crítica mas ao mesmo tempo na formulação de alternativas, sem medo de se “contaminar” nos espaços do Estado distanciando-se dele. Pelo contrário, tratam de ampliar e democratizar esses espaços, tornando-os verdadeiramente públicos.

Alguns desses espaços foram duramente conquistados desde o período de redemocratização anos 80, como os Conselhos de Direitos e as Conferências Nacionais em diversas áreas das políticas públicas. Para falar do presente, mais uma vez para contrariar a tese da “desmobilização”, nos últimos dois anos e meio gigantescas Conferências foram realizadas (como a da Saúde, das Mulheres, das Cidades, só para citar algumas), com uma igualmente gigantesca participação dos movimentos sociais em todo o país. Cotidianamente os movimentos populares tratam de resistir à cooptação das elites locais, participando ativamente dos Conselhos de Direitos Municipais e Estaduais.

Contra as tentativas de fragmentação dos movimentos sociais, a Central de Movimentos Sociais (CMS) é hoje um exemplo de unidade, congregando diversos movimentos sociais, sindicatos e entidades populares. A rigor, e esta não é apenas uma constatação “teórica” e sim fruto da convivência intensa com esses movimentos, é impressionante o seu processo de amadurecimento e de crescimento político. Nenhum deles hoje se contenta com a simples defesa dos seus interesses específicos e imediatos, totalmente legítimos, mas vêm demonstrando uma capacidade inédita de combinar e unificar bandeiras específicas e universais.

Um grande exemplo dessa capacidade são os atuais Movimentos ou Organizações das Mulheres (muitas vezes no interior de outros Movimentos, como o Movimento de Mulheres Sem Terra, o Movimento de Mulheres Camponesas, entre outros), cuja multiplicidade e diversidade não tem impedido que, além de lutar contra as evidentes desigualdades de gênero e de raça, a luta por direitos universais consubstanciados em políticas públicas efetivas é absolutamente essencial. Esta é também uma constatação fruto da convivência com esses Movimentos, com quem esta autora aprendeu muito, inclusive na reformulação de antigos conceitos e idéias.

Outro exemplo é o de entidades que resgatam o conceito gramsciano de sociedade civil, entendendo seu papel na disputa pela hegemonia política e ideológica e que, portanto, não têm receio de disputar e participar de espaços junto ao Estado, na já mencionada luta por transformá-los em espaços verdadeiramente públicos, na contramão das teses neoliberais promotoras da divisão entre o “societário” e o “estatal”. São entidades que formulam diagnósticos e políticas junto ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, congregando-se muitas vezes em Fóruns para debater e interferir em questões de âmbito nacional, de novo contra as posturas neoliberais “localistas” que promoviam a alienação na defesa da tese de que tudo se resolvia no “local”. Questões áridas e difíceis como o Orçamento Nacional vêm sendo debatidas por Fóruns como o Fórum Brasil Orçamento[5], que congrega movimentos sociais, conselhos profissionais, sindicatos, grupos de pesquisa universitários, etc.; e que neste momento (apesar da crise supostamente “paralisante”) estão participando, por exemplo, dos debates em torno à atual LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) no Congresso.[6]

Nessa linha, associações e sindicatos ligados ao Setor Público – como a ANFIP (Associação Nacional dos Fiscais da Previdência) e o UNAFISCO (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) – têm cumprido um papel de destaque na produção sistemática de dados e informações essenciais para a compreensão da dinâmica dos orçamentos públicos, como o fiscal e o da Seguridade Social. Nas nossas análises temos feito uso freqüente das excelentes informações elaboradas por essas entidades.

Mesmo não tendo sido objeto específico desta análise[7], queremos resgatar da “pasteurização”, diante desse lamentável debate em torno à corrupção “generalizada”, os funcionários públicos – sobretudo aqueles que trabalham em áreas sociais, cotidianamente em contato com o povo. Resgatar a resistência daqueles que ainda lutam por um serviço público universal digno e de boa qualidade, apesar do desmantelamento generalizado da máquina pública no Brasil, justificado devidamente pelas sucessivas “reformas” do Estado que tiveram início nos anos 90. Reformas que não eram para ampliar e democratizar o Estado, mas para “enxugar” e “modernizar” a “máquina estatal”: leia-se, flexibilização dos direitos e terceirização dos contratos. Reformas que, inclusive, mantiveram o livre trânsito dos interesses dominantes no interior do Estado, permitindo a rapinagem dos recursos públicos (em escala nunca antes vista) derivada da “privataria”, onde a corrupção nunca foi investigada. As conseqüências estão hoje à vista de todos. Como sempre, quem “paga o pato” é o povo brasileiro que precisa e demanda mais e melhores serviços públicos. Quem sabe se na esteira da anunciada Reforma Política, não aproveitamos para ampliar e enfrentar o debate de uma verdadeira Reforma do Estado cujo conteúdo seja radicalmente diferente, resgatando as boas e verdadeiras bandeiras reformistas da esquerda e atendendo aos anseios e reivindicações já formulados pelos movimentos sociais e por entidades representativas da sociedade que vêm lutando contra o projeto neoliberal.

Por último, diante do bombardeio contra o Congresso, trata-se aqui também de resgatar a resistência dos parlamentares de esquerda (em franca minoria no Congresso Nacional), que são portadores e defensores não de valores éticos e morais “abstratos”, mas em favor dos fracos e ofendidos (em franca maioria na nossa população). Contra o senso-comum generalizado contra os “políticos” (devidamente alimentado, como diz Emir Sader, pela guerra sistemática contra “a Política”), os movimentos sociais e entidades comprometidas com um verdadeiro processo de democratização da sociedade brasileira sabem que não podem prescindir desses parlamentares.

Talvez esta análise tenha sido movida mais por um “otimismo militante” do que por um “pessimismo analítico”. Nesta última perspectiva, estamos conscientes da gravidade da crise e dos riscos em direção a uma “direitização” política. Exatamente por isso, não podemos cair em imobilismos ou defender teses a la Fukuyama[8] de que tudo acabou. Ainda acreditamos na História e no poder transformador e criativo do povo brasileiro. Cabe aos intelectuais, aos militantes e aos políticos de esquerda aprender com o que hoje temos de melhor, que são as organizações populares; também permeadas de contradições e conflitos, tal como a sociedade brasileira, mas sem medo de enfrentá-los.

A luta continua.

[1] “O silêncio dos inocentes”, FSP, 19 de junho.

[2] Ver texto de um dos manifestos do Conselho Indígena de Roraima, defensor histórico dessa demarcação, em “protesto contra o clima de ‘terrorismo’ instalado no estado de Roraima, fruto da ação de grupos latifundiários, segmentos empresariais e políticos, da própria postura do Governo do Estado, e de incessantes campanhas na mídia local que, semeando a desinformação e o preconceito anti-indígenas, anunciam cada vez mais reações violentas contra a assinatura do decreto de homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol.”. Abril de 2005.

[3] Movimento da UDN que, como disse Wanderley Guilherme dos Santos em entrevista à revista Carta Capital da semana passada, se deslocou do Rio de Janeiro para São Paulo. As matérias da Folha e do Estadão, ambos paulistas, são bem ilustrativas.

[4] Letraviva – MST Informa no. 92 de 18 de junho.

[5] Ver propostas e documentos na página www.forumfbo.org.br

[6] A Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), o Fórum Brasil do Orçamento (FBO) e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para Mulher (UNIFEM) realizaram nos dias 14 e 15 de junho, em Brasília, o seminário “A dinâmica do orçamento público na promoção da justiça social”. O evento contribuiu para o fortalecimento e aprimoramento das práticas de incidência e controle social do orçamento público. Neste sentido, foi dada atenção especial ao Projeto de Diretrizes Orçamentárias (LDO), apresentada pelo governo federal para o ano de 2006, visando apontar seus limites e desafios para a eliminação das desigualdades sociais.

[7] Até porque desde que iniciamos as análises nesta página temos feito a defesa sistemática dos funcionários públicos, sobretudo por ocasião da última Reforma Previdenciária, onde todos eram atacados, linearmente, como “privilegiados”.

[8] “Ilustre” teórico neoliberal da tese do “fim da História”.