Os dirigentes se acomodaram ao conquistar o poder

Por Daniel Cassol Fonte Brasil de Fato Baiano de Santa Maria da Vitória, Clodomir Santos de Morais, 77 anos, é a memória viva das Ligas Camponesas. PhD em sociologia e professor da Universidade Federal de Rondônia, ele viaja o Brasil lançando o seu Dicionário de Reforma Agrária – América Latina, publicado pela primeira vez na década de 1970, em espanhol, e só agora editado em português. Nesta entrevista, Clodomir analisa parte da trajetória das Ligas Camponesas, critica a acomodação das classes dirigentes quando chegam ao poder e aponta caminhos para a luta popular no Brasil.

Por Daniel Cassol
Fonte Brasil de Fato

Baiano de Santa Maria da Vitória, Clodomir Santos de Morais, 77 anos, é a memória viva das Ligas Camponesas. PhD em sociologia e professor da Universidade Federal de Rondônia, ele viaja o Brasil lançando o seu Dicionário de Reforma Agrária – América Latina, publicado pela primeira vez na década de 1970, em espanhol, e só agora editado em português. Nesta entrevista, Clodomir analisa parte da trajetória das Ligas Camponesas, critica a acomodação das classes dirigentes quando chegam ao poder e aponta caminhos para a luta popular no Brasil.

Como foi a sua aproximação com as Ligas Camponesas?

Clodomir Santos de Morais – Eu era um militante de esquerda desde 1941. Morei em São Paulo e trabalhava como operário da Ford, na montagem de automóveis, quando comecei minha militância. Mais ou menos na mesma época, aos sábados e domingos, eu assistia as Ligas Camponesas no interior de São Paulo, que eram patrocinadas pelo Partido Comunista de (Carlos) Prestes. Quando retornei para o Nordeste, já fui organizar as Ligas Camponesas na minha terra. A essa altura eu estava envolvido no movimento estudantil secundarista.

Como a sociedade via as Ligas Camponesas?

Clodomir – Variava de acordo com o estrato social. Num primeiro momento, contamos com a oposição total dos latifundiários, que achavam que aquilo era comunismo, e trataram de colocar o nome de Ligas, para carimbar. Mas no Nordeste não havia esse nome, era sociedade de agricultores e pecuaristas.

O que seriam das Ligas, não fosse o golpe militar de 1964?

Clodomir – As Ligas estariam transformadas, porque já teriam uma estrutura partidária dentro de uma organização de massa. O que sempre se buscou evitar, porque seria uma espécie de fracionismo do PC. O PC do B quis atrair as Ligas, mas elas preferiram continuar como uma organização de massas, onde havia os militantes do PC de Prestes e os militantes do PC de (João) Amazonas, e de outros partidos, até que chegaria o dia em que criaríamos uma estrutura partidária. E isso começou em 1964, meses antes do golpe. Com o golpe se deu conta de que havia um partido de esquerda a mais, e que era ligado aos camponeses. Depois, os camponeses decidiram que não iriam morrer como passarinhos, e para isso era preciso preparar a defesa. Aí começaram a passar por treinamento militar.

Armar os camponeses foi apenas uma atitude de defesa?

Clodomir – Foi uma atitude de defesa, já que o governo de São Paulo estava distribuindo armas aos latifundiários. Depois evoluiu para uma estrutura militar. Evidentemente, clandestina. A estrutura política não conhecia todos os detalhes da estrutura militar. A estrutura de massa, muito menos. Francisco Julião (fundador das Ligas Camponesas) não sabia como funcionava a estrutura militar.

Quais erros e acertos das Ligas servem de exemplo para os movimentos populares de hoje?

Clodomir – Há um livro que vai sair no final do ano que se chama História Militar das Ligas Camponesas. Esse livro irá mostrar o que foi certo e o que foi errado ao longo da história da estrutura militar. Quanto à organização de massa, essa operou de uma forma extraordinária. Criou facilmente alianças com a classe operária e com demais setores da população. Tinha ligas de estudantes, de sargentos, de oficiais, de mulheres, de pescadores, ligas de tudo. Ligas Camponesas era a “marca”. O abarcar de grande parte da sociedade se dava de maneira extraordinária, e permitia cobrir os atos de maior rebeldia.

Como organizar, hoje, a massa humana de favelados, pessoas que perderam muitas referências?

Clodomir – É preciso criar uma organização de massas, e dentro dela uma estrutura política. É a organização política que vai garantir a unidade e a disciplina. Mas isso constitui a grande preocupação dos que estudam a sociologia política. Que destino vai ter isso? O sistema capitalista está em crise. Como não pode dar emprego, dá esmola. Aí vem Fome Zero, e uma quantidade de coisas que o Estado arrecada, da burguesia ou do seu próprio orçamento, para segurar a massa. Porque, se não segura, ela vai para a rua. E isso é no mundo todo. Por isso o FMI e o Banco Mundial financiam esses programas que chamam de “humanitários”.

Mas que argumentos convencem essa população?

Clodomir – Toda organização de massa padece de uma falta de orientação política. São muito imediatistas. Você chega com um programa qualquer, o sujeito diz: “Não entendi nada, mas qual é a minha parte?” É necessário dar um passo seguinte, um meio para que as pessoas possam atuar politicamente. Para isso, precisam passar por cursos, ou serem jogadas na luta. Porque a luta é o que mais ensina o rumo.

Como o senhor analisa a relação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com os movimentos sociais?

Clodomir – Em geral os movimentos sociais sempre foram ligados à Igreja. E também ao PT. Os movimentos sociais têm um papel muito importante na conscientização das massas. A consciência vem da luta, das decepções. A classe operária tem uma quantidade de leis que garantem seus direitos. Num governo autocrático, a diferença entre movimentos sociais e governo era visível. Agora, não. O governo trata de aparecer beneficiando os movimentos sociais. E os movimentos sociais, dada a ideologia dos participantes, se resignam. O que mostra a maior parte deles é formada por pessoas ou que não trabalham ou que não necessitam de empregos, porque podem se arrimar aos pais, aos parentes. É uma espécie de pequena burguesia. Quando um movimento social é formado pelos que trabalham, ou desempregados, se vê a diferença.

Existem alternativas?

Clodomir – Um aspecto que tem que ser estudado seriamente são as organizações de estudantes secundaristas. Esses não têm muita perspectiva, porque tem a barreira do vestibular, a falta de empregos. Temos que centrar o foco nesses estudantes, que são numerosos. E o jovem é generoso, ele se joga à luta. Os adultos pensam antes, porque têm o que perder. A revolução sandinista, na Nicarágua, também precisa ser estudada seriamente, não só porque foi uma clássica revolução do povo, como também porque ela perdeu o poder por ter sido dirigida pela pequena burguesia. A pequena burguesia nunca faz revolução. Tenho a impressão de que está acontecendo no Brasil algo parecido. Se faz uma revolução pacífica, se chega ao poder e os dirigentes se acomodam. E pode acontecer aqui o que aconteceu com Daniel Ortega (ex-presidente da Nicarágua, que foi integrante da Frente Sandinista de Libertação Nacional): vem uma eleição e bota ele para fora. Só os camponeses, os operários, a juventude estudantil, os favelados, esses colocam a pele em jogo.

Quem é

Deputado estadual em Pernambuco, assessor e organizador do movimento camponês das décadas de 50 e 60, Clodomir Santos de Morais foi exilado pelo golpe militar. Atuou em diversos processos de reforma agrária na América Latina, como consultor das Nações Unidas. Na sua volta ao Brasil, na década de 80, conheceu o MST, tendo dedicado grande parte da sua produção intelectual à teoria da organização dos movimentos sociais.