Sociedade em crise

Entrevista de João Pedro Stedile, da Direção Nacional do MST, aos jornalistas Luiz Gonzaga Belluzzo, Mino Carta e Sergio Lirio. Publicada na revista Carta Capital.

Como o MST se coloca diante da crise, tanto em relação ao governo quanto em relação ao PT?

João Pedro Stedile: A crise é muito mais grave do que a imprensa pretende. As denúncias de corrupção são apenas a ponta de um iceberg, que é a sociedade brasileira. A sociedade é que está em crise. Pelo lado econômico, o neoliberalismo não resolveu os problemas estruturais da economia brasileira. As taxas de crescimento, cantadas em verso e prosa pelo ministro Palocci, são medíocres, nós sempre estivemos abaixo da média latino-americana e da média mundial. E os níveis de investimento são os mais baixos de toda a nossa história. É também uma crise social, porque todos os indicadores pioraram. Sobretudo, o do desemprego. Nós encerramos o modelo de industrialização dependente com 2% ou 3%, 1 milhão e meio de trabalhadores desempregados, e agora estamos com 12 milhões de desempregados, somados os 15 milhões do trabalho informal. Dá 27 milhões de adultos da população economicamente ativa fora da força produtiva. Isso é gravíssimo, nós temos uma Argentina dormindo. E temos uma crise ideológica. Por quê? Porque as forças organizadas da sociedade não estão apresentando projetos alternativos para a sociedade. Não há debate na universidade, o neoliberalismo transformou os professores em um bando de cidadãos tíbios, que só pensam nos seus salários e nas suas carreiras acadêmicas. Eu nunca vi tanto individualismo quanto na universidade brasileira. Os partidos não discutem projetos, a imprensa brasileira é uma vergonha, não discute projeto algum, e os movimentos sociais nem têm obrigação de discutir projetos. Nesse contexto é que analisamos, muito perplexos, a situação do governo. Lula perdeu uma chance, ao ser eleito com 52 milhões de votos. De fato, embora ele tenha ascendido sem um programa, sem um projeto de sociedade, ele poderia ter estimulado o debate em busca de uma política econômica alternativa. O governo foi pelo caminho simplório de manter a governabilidade, fazer aliança com partidos conservadores, e depois de dois anos e meio todos aqueles sintomas da crise da sociedade manifestados durante 15 anos de neoliberalismo se agravaram com o governo Lula. E o que para nós é ainda mais trágico é que, na nossa percepção, todos os ministros não têm consciência da gravidade da crise. Acham que não passa de um problema de administração pública, de governabilidade, o que torna, então, a saída ainda mais difícil. Para nós é o de menos saber como temos de nos portar em relação ao presidente Lula, ele é uma peça muito pequena. E é por essa razão que nós achamos que, se não houver uma espécie de mutirão, ou um choque de consciência entre as várias forças sociais para interpretarem a crise e buscarem uma saída, tampouco a solução estará no calendário eleitoral. Ou seja, nós vamos eleger mais um presidente, pode até ser o Lula, em 2006, pode ser um outro qualquer, mas a eleição ainda não resolverá a crise.

Provavelmente piorando…

JPS: E piorando. Se nós não agirmos agora, provavelmente o próximo governo vai ser mais frágil e mais inseguro.

Até a eleição do Lula, o PT representava as aspirações dessas forças sociais. E agora?

JPS: A trajetória recente do PT é ambígua. De um lado, o Zé Dirceu operou uma proposta, honesta, creio eu, da parte dele, de propor uma aliança com setores do capital produtivo brasileiro, mas eu acho que ele não se deu conta de que no Brasil a burguesia já está completamente subordinada ao capital internacional e ao financeiro. Então, não havia forças sociais capazes de consolidar nessa aliança um novo projeto de desenvolvimento nacional. Neste tempo de governo Lula, a administração da política econômica foi entregue aos setores financeiros. O outro lado da ambigüidade do PT, comum a toda a esquerda na América Latina, está num desvio de prática política gravíssimo. É preciso que o partido faça urgentemente uma autocrítica, porque o partido cometeu vários erros como esquerda, e eu repito – o faço até de forma autocrítica, porque não foi só o PT, foi toda a esquerda e a esquerda social, não apenas a partidária. Foi substituída a convicção das idéias pelo marketing político, foi substituído o trabalho voluntário pelo pagamento em dinheiro de qualquer tarefa partidária, foi substituída a generosidade do militante pela disputa de cargos, foi substituído o debate do projeto pelo pragmatismo do comando, como se não fosse necessário, ao chegar ao governo, debater a mudança do aparelho do Estado. Foi substituído o trabalho de base, núcleos de base, por cúpulas centralizadas, muito bem preparadas ideologicamente, mas que não democratizaram o debate. Ao não democratizar o debate tu não ganhas adesões, porque sempre tu ficas esperando os de cima. Então, o problema do PT, de certa forma até parecido com o do governo Lula, é ainda mais complexo.

Com a crise do PT, criou-se um vazio. Mas os movimentos sociais não deixaram de existir porque as questões com as quais eles estão relacionados não deixaram de existir. A crise do PT cria um espaço a ser ocupado por quem, do ponto de vista da representação institucional e parlamentar?

JPS: De fato há uma crise política de representação. Como o Ibope revelou e vocês analisaram, a maioria dos brasileiros não se sente representada por este sistema. É preciso fazer uma reforma política de fundo e nós concordamos com as idéias do professor Fábio Konder Comparato, a favor da criação de instrumentos de democracia direta para garantir que a população autoconvoque plebiscitos. Há várias mudanças que o professor Comparato tem nos explicado e que seriam necessárias para a prática desse processo mais democrático de representação. Mas a crise política não vai ser resolvida tão rapidamente e a crise do PT afeta toda a sociedade. Não se trata de jogar pedra, atrás de bodes expiatórios. Não resolve cassar 18. No fundo, todos os “cassadores” estão envolvidos no mecanismo que precipitou a crise. Ninguém tem moral para cassar ninguém, tá aí o Severino. Agora, do ponto de vista do movimento de massa, vou puxar um pouco a brasa pra nossa sardinha, nós achamos que essa verdadeira sacudida política de renovar instituições, de oxigenar os partidos, de renovar o próprio PT, na nossa opinião, não depende mais de reuniões e articulações. Nós achamos que depende da nova ascensão dos movimentos de massa. Lamentavelmente, o povo brasileiro está apático. As massas sofreram uma derrota trágica em 1989. Foi uma derrota trágica pros destinos do País, porque foi a derrota de um projeto econômico, capaz de desorganizar o mundo do trabalho. Desde então, o movimento de massas não consegue reagir. É por isso que a direita e o capital partem para a ofensiva, mesmo não tendo projeto. Na minha percepção, creio que não haverá muita demora para o despertar das massas. Pode ser que isso não aconteça até o final do governo Lula, mas no próximo governo. E desconfio que os ideólogos tucanos saibam disso. Daí a necessidade de a direita brasileira se preparar em ter um próximo governo muito mais confiável ideologicamente, porque eles sabem que o neoliberalismo não resolveu o problema das massas, só agravou. Registramos cada vez mais sinais de barbárie social e em algum momento as massas vão se manifestar. A direita precisa contar com um governo forte, com capacidade de reprimir.

A gente percebe que o MST mantém uma postura de expectativa em relação ao desfecho da crise, como se estivesse querendo esperar para entender e definir o caminho certo.

JPS: Vocês colocam questões que são, no fundo, a pauta dos nossos desafios. Os desafios como movimento social, os desafios como povo brasileiro, os desafios dos do andar de baixo. É verdade, o MST está preocupado em entender direito o contexto histórico e a crise e nós estamos convencidos de que a crise é grave, profunda, e, portanto, a sua saída será demorada. E se é correta essa nossa leitura da realidade brasileira, o que nós estamos procurando fazer é debater com os outros movimentos, e dentro do nosso movimento, medidas cujos resultados também não vão aparecer logo. Como nós dizemos: agora não é hora de plantar alface. Não se trata de plantar para colher em três ou quatro semanas. Quem quiser fazer isso vai comer em quatro semanas, depois a alface murcha. Agora é hora plantar árvores. Vai demorar a dar frutos, mas, quando eles surgirem, serão duradouros. E esse “plantar árvores”, no nosso modo de ver, é estimular, com as demais forças minimamente organizadas, algumas iniciativas.

Por exemplo?

JPS: Primeiro, é preciso estimular um verdadeiro mutirão de debate de um novo projeto para o País, que supere o neoliberalismo e de fato aponte saídas para os problemas objetivos do povo. Todas as necessidades básicas do povo brasileiro estão sem solução. O problema do trabalho, ao qual já me referi, nunca na história do Brasil nós tivemos 27 milhões de pessoas fora do esforço produtivo da riqueza. Só não tem uma tragédia neste país porque tem o SUS. Quem salva esses 27 milhões é o SUS, porque eles estão fora da cidadania. Eles apenas não adoecem como mendigos. Nós não resolvemos o problema da educação, todos os indicadores são ridículos, 7% chegam à universidade. A Coréia do Sul tem o mesmo padrão econômico que nós, e 98% chegam à universidade. Nós não resolvemos o problema de moradia. Não há nada que justifique que o povo tenha que morar tão mal, num país tropical, com cimento, tijolo, todos os recursos naturais. Nada que explique, não é? Nós renovamos um aeroporto em alguns meses e não conseguimos construir uma casa de 4×4. Nós não resolvemos o problema da terra, que é o nosso peixe, a concentração da terra continua produzindo pobreza e desigualdade social. E nós não resolvemos o problema da cultura, ou seja, o baixo nível cultural do nosso povo é assombroso. E é sempre bom repetir: Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil todo. Isso é o cenário do nosso povo. Imaginar um projeto não é idealismo, quer dizer, tu tens de botar energia, tem de construir força ao redor desse projeto. A segunda linha estratégica de plantar árvores é formar militantes. A esquerda social e os movimentos abandonaram o processo de formação de quadros. E essa é uma tarefa permanente e demorada, e quem não fizer não vai adiante porque não vai conseguir entender a história e não vai conseguir interpretar o presente. E a terceira vertente do nosso plantar árvores é estimular lutas sociais. Para que as lutas sociais gerem consciência nas pessoas e, sobretudo, possam ir acumulando força para um novo período histórico, em que o povo retome força suficiente para mudar a correlação de forças. E o quarto caminho é o da elevação do nível de consciência e de cultura do povo. Aqui faço um parêntese para até fazer uma espécie de alerta ao Lula e ao núcleo do Palácio. Wagner e Dulci não se iludam com os apoios da opinião pública ao Lula, que existem e são reais. Mas quem ainda acredita é uma camada da população brasileira de baixo nível cultural. São os mesmos que acreditam em Xuxa, Faustão, Papai Noel, na Globo… Então, é uma camada da população desorganizada, passível de manipulação por parte dos meios de comunicação social.

A eleição do Lula foi, de certa forma, uma catarse. O Lula é eleito, então renova-se a esperança. Aí desenrola-se esse processo de desmoralização do PT. Vai ser muito mais fácil para a direita fazer um discurso de demonização dos movimentos sociais. A desarticulação do PT e uma certa desmoralização do governo não levarão a uma situação em que os movimentos sociais vão ficar sem espaço e sem voz?

JPS: Eu não sou tão pessimista. Por duas razões: porque, felizmente, a maioria das forças sociais dos movimentos populares não se deixou cooptar pelo governo Lula. Aqui nós não fomos mexicanos. Nós não deixamos que o PRI tomasse conta de nós. E é por isso que nós temos moral para criticar o governo e apontar saídas. E isso eu tenho visto em vários movimentos. A área de pastoral social das igrejas: a Igreja sempre foi um pilar até de propaganda política pro Lula e pro PT. E a Igreja manteve-se autônoma em relação ao governo e está extremamente crítica. Isso é salutar. Os movimentos não se deixaram cooptar, mas também o governo Lula não fez grandes esforços nesse sentido. Claro que sempre tem quem se arraigue mais ao partido. Digo publicamente, porque não faço fofoca, que esse erro quem comete mais é o PCdoB. O PCdoB que tem uma tradição de tratar as frentes de massa como correia de transmissão do partido. Então aí sim tem, acho, problemas políticos. Mas em relação ao PT, não. Em relação ao PT os movimentos sempre tiveram autonomia, autonomia real, mesmo que a imprensa de direita diga “ah, é tudo a mesma coisa, o PT é que manda”. Outra razão de otimismo: o povo brasileiro não tem nenhum apego à institucionalidade. Talvez seja a nossa herança ibérica que o Sérgio Buarque de Hollanda nos ajudou a entender. Somos meio anarquistas. Então, o povo não veste a carapuça “ah, agora o governo caiu”, “ai, agora o PT se foi”. O terceiro aspecto que me deixa mais animado é que, quando o movimento de massas ganha alento, é muito dinâmico. Há um dinamismo das massas que ultrapassa esses esquemas. Então, eu não concordo com as teses que de vez em quando leio nos jornais do próprio pessoal do PT, dizendo “não, agora vai levar 20 anos pra esquerda se renovar”, “a derrota do governo Lula vai ser uma tragédia”. Ou essa babaquice que o Bornhausen disse: “Por 30 anos se vão”. Aí retruco com a sabedoria do Verissimo: o neoliberalismo no Brasil, portanto, o domínio do capital financeiro internacional, daria certo se não houvesse povo.

A vitória de Lula não foi a vitória do povo?

PJS: Nós achamos que a agitação social terminou em 1989. E o Lula só se elegeu agora porque as massas estavam desanimadas com o neoliberalismo, então foi voto de protesto, não foi voto num projeto. E ele só ganhou porque contratou o Duda e porque parte da burguesia brasileira se assustou com a Argentina e resolveu dar dinheiro para ganhar as eleições.

Não teria influído também o declínio da classe média, que sofreu degradação na posição econômica? Os jovens da classe média também. Essa fração, que na verdade era muito anti-Lula e muito conservadora no Brasil, votou contra o Fernando Henrique, não foi a favor do Lula. Fernando Henrique sempre foi o grande cabo eleitoral do PT.

JPS: Se você botasse a Virgem Maria de candidata no lugar do Serra, não ganhava a eleição.

Nem mesmo o Serra votaria no candidato do Fernando Henrique Cardoso.

JPS: O MST trabalha com uma base específica. A nossa sorte é que nós, ao longo desses anos, construímos um projeto ideológico. Não ficamos só na luta corporativa de “quero terra”. E isso permite ter a consciência suficiente de perceber que a própria reforma agrária não tem viabilidade se não se der dentro de um novo projeto. O qual impõe a aliança com os movimentos sociais da cidade. Parte das nossas energias se destina a construir essa unidade com os outros. Na nossa avaliação, hoje o alvo principal é a juventude das grandes cidades. Não mais o operariado industrial, que está debilitado e destruído política e ideologicamente. É possível que daqui por diante se construam novos movimentos. Por exemplo, dos jovens desempregados… Vocês sabem, 70% dos desempregados de São Paulo têm até 24 anos e segundo grau completo. Não é mais o lúmpen. O lúmpen é flanelinha, nem conta como desempregado, conta como trabalho informal. E essas manifestações que houve em Florianópolis, Vitória, de juventude de segundo grau fazendo movimento de massa contra as tarifas de ônibus, são muito emblemáticas. Não houve partido por trás, a garotada foi para a rua. Um movimento que está se ampliando e massificando é o de hip-hop. É um movimento que, com base cultural, aglutina os jovens pobres, negros e mulatos das periferias com idéia na cabeça. Essa garotada não é estúpida. E nem é lúmpen. E nós temos interlocução com eles. No fim de outubro, nós vamos realizar em Brasília aquilo que estamos chamando de uma assembléia popular. Vamos juntar 15 mil militantes de todos os movimentos, igrejas, hip-hop, sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, com o objetivo de criar unidade da leitura da crise e unidade da leitura da saída.

Qual é a dimensão atual do MST?

JPS: O MST é uma organização pequena. O que nos diferencia é que os outros não estão fazendo nada e nós aparecemos. A nossa sombra é maior do que o nosso tamanho. E temos unidade, porque ao longo de 20 anos trabalhamos em cima da experiência do povo brasileiro. Nós estudamos muito a realidade brasileira, os pensadores brasileiros. Vivemos repetindo para a nossa militância como nos faz falta um Florestan Fernandes, para nos ajudar na política, um Raymundo Faoro, para nos ajudar na institucionalidade, e uma Maria da Conceição ativa, porque o projeto vai se basear naquelas velhas idéias da Cepal, de distribuir renda, de resolver os problemas aqui dentro. O Chávez se apropriou da idéia, apelidou o projeto deles de Desarrollo Endógino. O MST tem mais ou menos 15 mil militantes que estão estudando e 140 mil famílias acampadas na beira das estradas, debaixo das lonas. É o nosso exército mobilizável a qualquer hora. Um milhão de pessoas na beira das estradas. E temos em torno de 480 mil famílias assentadas ao longo desses 20 anos. Mas, das 480 mil famílias assentadas, elas sofrem influências políticas de vários setores, do sindicalismo, de partidos, das igrejas, e nós achamos que há umas 300 mil ligadas conosco. Essa é a nossa base. E há mais de 4 milhões de sem-terra, mas é muito difícil organizá-los porque estão pulverizados nas fazendas, porque são muito pobres, porque são analfabetos basicamente concentrados no Nordeste e no Sul. Essa é a base social que procuramos atingir. E acho que a nossa influência se dá inclusive sobre os pobres da cidade. Eles gostam muito do MST. Viramos referência ideológica para eles, por causa da nossa coerência. O que nos salvou foi estudar, estudar, estudar. Nós temos uma regra dentro do movimento: só pode se dizer militante do MST se estiver estudando. Então, quando o cara diz “eu sou militante do MST”, nós dizemos “em qual curso tu estás estudando?” É um esforço permanente, também realizado no âmbito da nossa Escola Nacional de Guararema, que nós apelidamos de Universidade Popular. Temos convênios hoje com 42 universidades do Brasil.

Estão surgindo lideranças novas, jovens?

JPS: Sem dúvida nenhuma. O MST é um movimento de jovens. Lideranças anônimas por enquanto, porque o nosso país é continental, e ainda não conseguem se projetar nacionalmente. Aqui só se transforma em líder nacional se a televisão projetar. De todo modo, há uma renovação de lideranças muito mais preparadas do que na década de 80, com nível cultural mais elevado, mas ainda de base localizada.

Duas perguntas: como democratizar os meios de comunicação? E, na qualidade de economista, qual a sua proposta nesse capitalismo que estamos vivendo?

JPS: A democratização dos meios de comunicação é uma das questões centrais mais graves da sociedade, assim como a concentração de riqueza, a concentração de renda, a concentração da terra, a concentração das universidades. E a concentração dos meios de comunicação. Esses são os cinco problemas que, se não democratizar, não construiremos uma sociedade mais justa, menos desigual. Os próceres da esquerda iludem-se em escrever artiguinhos nos jornais da burguesia e achar que isso é influenciar a opinião pública. Eles te abrem espaço para um artigo e depois ficam um mês inteiro falando mal de você, te desconstruindo, deslegitimando. Para honrar meus antepassados, já dizia Gramsci que as organizações dos trabalhadores têm de ter seus próprios meios de comunicação. Aqui está uma das críticas mais duras que fizemos ao governo Lula. O governo se iludiu, achou que botando a sua publicidade nos jornalões ia se salvar. Eu sempre uso isso como exemplo. E o governo gastou milhões de propaganda do Pronaf, pra dizer para o pequeno agricultor que agora o recurso tinha aumentado, e de fato aumentou. Ora, qual é o meio que tu chegas ao pequeno agricultor e diz pra ele: “olha, tu vais no banco que agora tem dinheiro”? Sabe onde o governo botou a propaganda? Na revista Época. Pagou milhões durante um mês e meio, pagou página inteira, “agora o Pronaf é para ti, pequeno agricultor”. Eu ando o Brasil inteiro e nunca vi um agricultor, nem um fazendeiro, com a revista Época na mão. Essa foi a estratégia de marketing do governo. Bom, foi a revista Época que fez a primeira matéria contra o governo: bem-feito, para eles aprenderem.

A sua proposta para a economia.

JPS: Nós temos uma interlocução com o grupo de economistas do Conselho Federal de Economia, a turma do Rio, e com alguns economistas da Unicamp. Eles chegaram a lançar um manifesto com as dez propostas de mudanças e, dentro do movimento e nos movimentos sociais, há várias formulações, ou, digamos, uma concepção geral. Primeiro, temos de pensar um projeto que seja centrado nas velhas e boas idéias de que é preciso olhar a nossa economia como uma economia nacional. É uma besteira achar que, em nome da globalização, vamos ser salvos pelo capital internacional. Isso são as lições do primeiro ano do curso de economia. Do que trata a economia? É organizar a produção nacional para resolver os problemas do povo, no seu território.

Um projeto nacional para ser inserido na economia mundial, o que os chineses fazem, na verdade.

JPS: Exatamente. Segundo pilar dessa concepção: tem que distribuir renda, tem que dar poder aquisitivo para a população se transformar em cidadã. Observem os indicadores da desigualdade. São estarrecedores (leia à pág. 34).

A propósito: é fundamental um sistema de crédito eficiente, sob o controle público? E isso envolveria também um controle do ingresso do capital financeiro estrangeiro? É uma das características mais marcantes do capitalismo contemporâneo.

JPS: Controlar o capital financeiro: talvez seja a expressão. Aliás, a nação deveria ter consciência de que o Brasil é exportador de capital. Os jornais dizem que o capital estrangeiro vem para desenvolver o País. É mentira. O Brasil tornou-se um ninho de procriação do capital financeiro. Vem aqui, bota seus ovos e vai embora, com os pintinhos dele criados.

Sempre foi assim. A periferia sempre foi exportadora de capital, e agora mais ainda.

JPS: Pois é. Outra coisa: as multinacionais vêm ao Brasil e usam a nossa poupança. Para aumentar as taxas de lucro. Tá aqui o anúncio do Banco do Brasil, “o maior parceiro do agronegócio”, é claro. Usa a poupança nacional que está lá depositada e financiam quem? Todas multinacionais. O Banco do Brasil emprestou no ano passado R$ 4 bilhões, mais do que foi gasto no Pronaf, para 15 empresas multinacionais. Todo esse setor da celulose, que tão cantando em verso e prosa, está se instalando com dinheiro da poupança nacional do BNDES.

Sem falar da Monsanto…

JPS: Ah, a Monsanto está aqui também, é uma vergonha. A Monsanto, na época do Fernando Henrique, ganhou a fábrica dela de Camaçari, não tem sentido nenhum na lógica da produção de agrotóxicos. A base do herbicida vem do pólo de Camaçari. Do ponto de vista da logística deles, seria melhor ter construído em Paulínia, porque a fábrica do herbicida deles está aqui. Por que construíram o pólo em Camaçari? Porque usaram dinheiro da Sudene a juro subsidiado graças ao seu padrinho Marco Maciel, e instalaram uma fábrica lá que inclusive gera risco ambiental, porque os caminhões têm que trazer toda a semana até Paulínia. E por que botaram lá? Porque ganharam a fábrica de US$ 328 milhões. A Sudene e o BNDES financiaram US$ 328 milhões, 20 anos, subsidiados, até eu e tu podíamos montar a fábrica. Não pediu garantia nenhuma, só a fábrica. Bem, para tirar o Nordeste da pobreza, US$ 328 milhões, são R$ 900 milhões. Você tem hoje, no Semi-Árido do Brasil, 1 milhão de famílias de camponeses que passam sede, não têm água. Qual é o custo pra você tirar eles disso? É construir uma cacimba em lugar de fazer aqueles grandes açudes que só desenvolvem construtora. Qual é o custo da cacimba? R$ 900. Multiplica. Com o mesmo dinheiro, tiraria 1 milhão de famílias da sede e da doença.

Última pergunta, só para concluir. Se bem entendemos, o próximo governo viverá dias de agitação social, na sua previsão. É isso?

JPS: É isso. Eu posso chutar, porque não tenho nenhuma base científica, vou pelo meu olfato de classe: este país não passa mais dois ou três anos sem um processo de grande mobilização de massa. E essa é a força renovadora.