Cortina de fumaça

Por Antônio Canuto*
Fonte Rede Social

O ano de 2005, como os demais, está marcado pelo estigma da violência no campo. Até o final de agosto, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 28 assassinatos. Um a mais do que em igual período de 2004, quando foram registrados 27 assassinatos.

Uma morte, porém, no início do ano, teve uma repercussão inusitada. Em 12 de fevereiro, na longínqua e desconhecida Anapu, no Pará, era bárbara e friamente assassinada Irmã Dorothy Stang, missionária norte-americana, naturalizada brasileira, 74 anos. Ela trabalhava, desde 1974, junto aos camponeses do Pará e há mais de 20 anos em Anapu. Apoiava-os na conquista e na defesa da terra. E com eles projetou um tipo de exploração da terra, casando a produção para o sustento familiar e a defesa do meio ambiente, os chamados PDS – Projetos de Desenvolvimento Sustentável.

O fato de a missionária ser estadunidense, mulher, idosa; seu sorriso contagiante e as circunstâncias em que aconteceu sua morte, depois de ter lido para o seu assassino versículos do Evangelho, provocaram comoção geral. A apresentação da publicação anual da CPT “Conflitos no Campo Brasil – 2004” assim registrou a repercussão que o caso provocou:

“Este assassinato provocou uma gigante onda de indignação nacional e internacional. Qual uma verdadeira tsunami, esta tragédia atingiu o Planalto Central, invadiu o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Tomou conta das redações dos jornais e dos estúdios das TVs e das rádios. E seus abalos se sentiram em todo o mundo. A morte de Irmã Dorothy irrompeu com a força da ressurreição. Sua ação, humilde e desconhecida, pequena e quase isolada, multiplicou-se por todos os cantos do Brasil, conquistando corações e mentes e ganhou as dimensões do mundo e do tempo.”

A reação do governo foi rápida. Ministros de Estado se deslocaram até Anapu. Autoridades de todos os níveis se manifestaram condenando a agressão. O Exército Brasileiro deslocou contingentes para a região. Promessas de punição implacável dos culpados se repetiram. Medidas para regularizar a posse das terras foram anunciadas e áreas de proteção ambiental criadas.

Não demorou muito tempo e os dois pistoleiros executores do crime foram detidos. Depois foi preso o intermediário que os contratou e, por fim, dois fazendeiros, apontados como mandantes do crime. As investigações da Polícia Federal apontaram, porém, para uma ação envolvendo um consórcio de fazendeiros e madeireiros interessados na eliminação desta missionária que se interpunha no seu caminho à busca do enriquecimento rápido.

Federalização

O grande problema deste e de outros crimes contra os trabalhadores rurais é o entrave que o poder judiciário representa no julgamento destes crimes, com atenção maior para o Pará. Neste estado, nos últimos 33 anos, houve 772 assassinatos de trabalhadores rurais e de pessoas que os apoiavam. Somente em três casos houve o julgamento de mandantes dos crimes – os casos de Expedito Ribeiro, de João Canuto e de Eldorado do Carajás. Estes julgamentos só foram possíveis pela luta e pressão, com denúncias constantes de entidades de direitos humanos tanto nacionais quanto internacionais. E mesmo nestes três casos os mandantes se encontram em liberdade. No caso de Expedito Ribeiro, o condenado, Jerônimo Alves de Amorim, cumpre a sentença em prisão domiciliar, em sua luxuosa residência em Goiânia. Os mandantes do assassinato de João Canuto, apesar de condenados, há dois anos respondem os recursos em liberdade e o processo ainda continua na presidência do Tribunal. No caso de Eldorado do Carajás, no qual apenas dois comandantes da operação foram condenados, Coronel Pantoja e o Major Oliveira, o primeiro conseguiu junto ao STF habeas corpus para responder a apelação em liberdade. Os advogados do Major Oliveira vão pedir igual benefício para ele.

Outros processos que julgam crimes que também tiveram repercussão continuam parados. São os casos do assassinato do advogado Gabriel Pimenta, em Marabá – há 24 anos; da chacina de oito trabalhadores na Fazenda Ubá, em São João do Araguaia – há 20 anos; da chacina de cinco trabalhadores na Fazenda Princesa, em Marabá – há 19 anos; do assassinato do sindicalista Braz, em Rio Maria – há 15 anos; do assassinato do sindicalista Arnaldo Delcídio, em Eldorado – há 12 anos; do assassinato de Onalício Barros e Valentim Serra, em Parauapebas – há 7 anos.

Diante desta situação, como garantir um julgamento sério e justo dos envolvidos no assassinato de Irmã Dorothy? Não fosse a atuação da Polícia Federal e o rumo das investigações, teria ficado totalmente prejudicado. O nome de alguns fazendeiros não teriam aparecido. E o rumo das investigações poderia ter sido totalmente outro. A polícia civil, inclusive, divulgou que o pistoleiro Rayfran das Neves, assassino da irmã, teria apontado como mandante do crime Francisco de Assis, o Chiquinho do PT, amigo da irmã e batalhador dos PDS, numa tentativa de tumultuar as investigações.

A saída encontrada pelas entidades da sociedade civil, entre elas CNBB, CPT, MST, Fetagri e Caritas, foi pedir que o processo fosse julgado em esfera federal. Membros do governo federal, o Secretário Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e o ministro Miguel Rossetto, do Ministério Desenvolvimento Agrário, também eram da mesma opinião. Infelizmente um acordo foi costurado entre o governo do Estado e setores do governo federal para que o julgamento fosse realizado no Pará. Mesmo assim, o Procurador-Geral da República, Cláudio Fontelles, encaminhou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedido de federalização do processo, com sólida documentação, alicerçado na Emenda Constitucional nº 45. O STF, porém, ao julgar o pedido, no dia 8 de maio, unanimemente o indeferiu, por improcedente.

Esta decisão foi criticada pela CPT em nota do dia 10 de junho:

“Aquela sessão do Tribunal transformou-se no maior, mais repetitivo e mais grandiloqüente panegírico de consagração da Justiça paraense. Uma Justiça modelo para todo o país! No ar pairava a pergunta: E as graves omissões históricas de atuação desta Justiça? “São coisas do passado, não omissão, nem leniência, nem tibieza do Judiciário paraense”, retrucaram vários ministros. Por ironia da história, no mesmo horário desta sessão do STJ, era assassinado em Paraopebas, Pará, Antônio Matos da Silva, pai de um filhinho prematuro que ainda se encontrava no hospital junto com sua mãe. O grande argumento dos magistrados do STJ foi a celeridade do andamento do processo de julgamento do assassinato da Ir. Dorothy. Venceu, pois, a esperteza do Judiciário paraense em se livrar, desta forma, do vexame da federalização. Não obstante esta encenação, três dias depois da morte da Ir. Dorothy foram assassinados dois trabalhadores rurais, cujos casos continuam desdenhados pela tal Justiça.

Esta lamentável decisão tem seus significados e suas conseqüências: Ela foi, sem dúvida, um reforço ao corporativismo do Judiciário e do Ministério Público, que vinham fazendo forte pressão contra a federalização. Foi uma pá de cal sobre a incômoda emenda constitucional nº 45 que, a partir do que se sabe do nosso Judiciário, criou sabiamente a possibilidade de deslocamento de competência em face de incidente e cuja aplicação era a grande expectativa de muitos brasileiros e brasileiras. Foi um especial e curioso apoio ao Judiciário paraense, agora totalmente à vontade para continuar a conivência e a aliança com grileiros, madeireiros e pecuaristas, travestidos do agronegócio, continuamente denunciados por seus crimes contra pessoas indefesas e contra a frágil floresta Amazônica. Foi uma perigosa perda de credibilidade do STJ, que, no episódio, mostrou-se corporativista, insensível à dramática realidade de sofrimento dos lavradores e auto-suficiente ao pontificar monoliticamente sobre o assunto, desconhecendo o dramático simbolismo envolto na morte da Irmã Dorothy Stang.”

O processo contra os cinco presos envolvidos no caso de Ir Dorothy avança num ritmo até rápido para os parâmetros do Pará, numa tentativa de dar resposta à opinião pública. Mas esta mesma justiça caminha no mesmo ritmo de sempre com relação aos demais casos, inclusive nos de outros trabalhadores assassinados nos dias imediatos ao assassinato de Irmã Dorothy, como afirma a nota da CPT.

Impunidade e morosidade não são privilégios do Pará

Impunidade e morosidade da justiça, sobretudo quando se trata de crimes cometidos contra os trabalhadores, não são privilégio do Pará.

Em 2004, dois massacres em Minas Gerais ganharam as manchetes dos grandes meios de comunicação do país. O massacre de Unaí, com o assassinato de três auditores fiscais do Ministério do Trabalho e um motorista; e o massacre de Felisburgo, com a morte de cinco trabalhadores sem terra, ligados ao MST.

No caso de Unaí, sete pessoas acabaram sendo presas por envolvimento nas mortes, além dos dois acusados de serem os mandantes, os irmãos Antério e Norberto Mânica, que também foram presos. Antério Mânica, mesmo tendo sido preso em 16 de setembro, acabou sendo eleito prefeito da cidade de Unaí. Logo no começo de outubro foi-lhe concedido hábeas corpus. No dia 10 de dezembro voltou a ser preso devido a mandado judicial expedido pela 9ª Vara da Justiça Federal de Belo Horizonte. Mas, no dia 16 de dezembro, o 1º Tribunal Regional Federal de Brasília, concedeu-lhe novo habeas corpus. Está em pleno exercício de seu mandato.

Já seu irmão Norberto, depois de pouco mais de um ano preso, conseguiu habeas corpus concedido pelo STF, no dia 16 de agosto de 2005. O relator do pedido, Sepúlveda Pertence, no seu voto favorável à concessão do habeas corpus, disse que a prisão preventiva não pode se prestar à aplicação antecipada da pena. “Prisão preventiva em defesa da ordem pública, ou é coisa diversa à antecipação da pena que se gostaria de aplicar a uma imputação a ser julgada ou é inconstitucional, o que representa claramente antecipação de uma pena sem que o processo chegue a seu termo.” Os nove acusados do massacre foram pronunciados em dezembro de 2004 e devem ir a júri popular. Antério Manica, por ser prefeito, deverá ser julgado pelo Tribunal Regional Federal

No caso do massacre de Felisburgo, acabaram sendo presas 6 pessoas das 16 denunciadas. Três dos presos foram soltos dias depois por falta de provas de seu envolvimento. O fazendeiro Adriano Chafik Luedy, que participou do massacre, preso em dezembro, conseguiu hábeas corpus do STJ no dia 8 de abril. Em 20 de maio, foi decretada nova prisão preventiva contra ele. Ficou foragido da justiça até 28 de agosto, quando foi capturado e preso.

Outro caso em que a justiça tem agido favoravelmente a quem cometeu crimes contra os trabalhadores ocorreu no dia 23 de setembro. O Ministro Cezar Peluso, do STF, concedeu habeas corpus ao coronel Mário Colares Pantoja, condenado em primeira e segunda instâncias a 228 anos de prisão pela Justiça do Pará por liderar a tropa da PM no episódio de Eldorado do Carajás, que resultou na morte de 19 agricultores sem-terra. No seu despacho, o ministro afirma: “A garantia constitucional não tolera execução de sentença condenatória, em qualquer de suas eficácias, antes do trânsito em julgado.”

Cadeia é para pobre

Diferentemente do que se demonstrou acima, os trabalhadores acusados, muitas vezes sem provas e fundamento, dificilmente conseguem o beneficio do habeas corpus. Um grupo de oito trabalhadores da Paraíba ficaram presos por 18 meses, acusados de homicídio. Sem provas contra eles, mesmo assim vários pedidos de hábeas corpus lhes foram negados. Presos em maio de 2002, só no final de 2004 é lhes foi concedido este benefício da lei.

Três trabalhadores sem terra de Itararema, Ceará, estão presos há um ano e oito meses, acusados da morte de um pistoleiro. E o julgamento ainda não foi marcado. O advogado dos sem-terra entrou, no final de setembro, com petição junto ao STF para que o mesmo benefício concedido ao coronel Mário Pantoja seja aplicado aos trabalhadores.

E se pode desfiar um rosário de casos em que para os trabalhadores o hábeas corpus é sistematicamente negado, sob as mais diversas alegações. Fica claro na justiça brasileira que todos são iguais perante a lei. Mas alguns são mais iguais. A quem tem status, nome e recursos a justiça é mais atenta. Cadeia, como se diz popularmente, é mesmo para os pobres.

E as promessas feitas?

Depois das mortes que têm grande repercussão, o governo sempre anuncia uma série de medidas destinadas a dar uma resposta à opinião pública. O professor Plínio de Arruda Sampaio, velho batalhador da reforma agrária, em artigo intitulado “O kit massacre”, publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 24 de fevereiro de 2005, doze dias após o assassinato de irmã Dorothy, dizia:

“O governo federal criou, anos atrás, um “kit” de providências destinadas a administrar as crises provocadas por massacres de posseiros, sem-terra, seringueiros e indígenas – ocorrências freqüentes nos “grotões” do país. O “kit massacre” inclui: declarações indignadas do presidente e seus ministros; presença dos ministros da área no local do incidente (se possível acompanhando o enterro); promessa de punição “implacável” aos criminosos; prisão de três ou quatro suspeitos (logo soltos por falta de provas); e anúncio de “factóides” destinados a dar à opinião pública a impressão de que o governo está agindo energicamente.

A vida média de um “kit massacre” é de 15 a 20 dias. Depois disso, a matéria sai das páginas nobres dos grandes jornais e, em conseqüência, o “kit” é engavetado até o massacre seguinte. O governo Lula herdou essa metodologia e a está aplicando à risca.

O “kit” da irmã Dorothy, por exemplo, já está quase completo. Já teve declarações pungentes, viagem de ministros, semblantes de circunstância, prisão de suspeitos. Nesta semana surgiu o “pacote de factóides”.”

O autor citou como “factóides” a criação de cinco reservas florestais na região amazônica, abrangendo uma área de cerca de 8 milhões de km². A criação destas reservas, segundo ele, não passavam de factóides porque não há qualquer condição de impedir a invasão dessas reservas sem que, ao mesmo tempo, se desenvolva um efetivo processo de reforma agrária.

Na realidade, até fins de setembro, a série de medidas anunciadas não havia produzido efeitos práticos e a violência continuava. O clima no município ainda é extremamente tenso. Grileiros e madeireiros agem com total desenvoltura e com apoio da polícia. No final de agosto, a polícia civil de Anapu, aliada ao fazendeiro e madeireiro Luiz Ungaratti, que chegou a ser citado como um dos envolvidos na morte da Ir. Dorothy, e utilizando um carro do próprio fazendeiro, prendeu dois agricultores, os irmãos Miguel e Francisco Valentino dos Santos, na Gleba 53, área do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança. Os policiais alegaram que os trabalhadores estavam sendo presos porque eram “muito valentões” e porque teriam em suas dependências armas. Depois percorreram o PDS Esperança avisando às famílias que deveriam desocupar os barracos em 15 dias, pois, caso não o fizessem, suas casas seriam incendiadas.

No caso do assassinato dos auditores fiscais, em Unaí, a indignação que o massacre provocou fez retirar das gavetas o projeto de Emenda Constitucional que confisca as terras onde se constata a existência de exploração do trabalho escravo. O projeto, que já havia sido aprovado no Senado, gerou debates e foi aprovado na Câmara Federal. Como sofreu diversas emendas, voltou para o Senado, e até agora, passados quase dois anos do crime, continua engavetado. Não há interesse real em tornar lei este confisco e em punir severamente os que atentam tão abertamente contra a dignidade da pessoa humana.

A desapropriação de terras para o assentamento de trabalhadores, prometida depois do massacre de Felizburgo, anda a passos lentos.

Após o massacre de Eldorado do Carajás o governo Fernando Henrique Cardoso criou um ministério próprio para cuidar da Reforma Agrária, hoje o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O órgão responsável pelo encaminhamento e execução das ações, o Incra, porém, foi sendo paulatinamente sucateado.

Todas estas medidas, como bem dizia o professor Plínio de Arruda Sampaio, no texto citado, são apenas “factóides”. E “esses factóides não passam de cortina de fumaça para esconder a falta de coragem das mais altas autoridades da República em tomar as providências que podem, de fato, evitar massacres de pessoas no meio rural.”

* Antônio Canuto é secretário da Comissão Pastoral da Terra Nacional