A situação agrária em Pernambuco

Entrevista de Jaime Amorim, da direção nacional do MST, à Agência Rets O que aconteceu exatamente nas terras ocupadas? Houve algum tipo de violência?

Entrevista de Jaime Amorim, da direção nacional do MST, à Agência Rets

O que aconteceu exatamente nas terras ocupadas? Houve algum tipo de violência?

Jaime Amorim – A Usina Estreliana tem a história marcada pela violência contra seus trabalhadores e mantém uma prática de escravização do trabalhador e desrespeito à legislação trabalhista. Tentam permanentemente intimidar as famílias dos trabalhadores acampados, mesmo nas terras classificadas como improdutivas pelo Incra. A violência é constante contra os sem-terra. Principalmente após a imissão de posse concedida pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e posteriormente suspensa pelo poder judiciário, militantes e dirigentes do MST têm sofrido freqüentemente atentados e ameaças contra a vida.

O poder dos usineiros no Nordeste não permite que alguém ouse desacatá-los. Mesmo assim, depois de mais de quatro anos acampadas, as famílias continuam resistindo e aguardando a decisão judicial do Supremo Tribunal de Justiça sobre a desapropriação definitiva das terras e o assentamento das 150 famílias. Bem como aguardando com ansiedade a liberdade do companheiro que está preso [José Bernardo Luna] e de nós que estamos com prisão decretada [no dia 8 de fevereiro, a juíza Dulceana Maciel acatou o parecer do Ministério Público de Pernambuco e revogou o decreto de prisão preventiva das cinco lideranças].

Como está a situação legal hoje das cinco lideranças que tiveram a prisão preventiva decretada?

JA – Ontem [dia 8 de fevereiro], foi realizada uma audiência pública no Ministério Público de Pernambuco com a presença de várias organizações de direitos humanos e parlamentares, que foi coordenada pelo procurador-geral Francisco Sales e teve a participação de promotores do Ministério Público. Na ocasião, o promotor Valdir Mendonça apresentou seu parecer, em que considera absurda e estranha a atitude do juiz e do promotor que decretaram as prisões. Ele disse que as decisões foram extremamente subjetivas, ou seja, eles foram mal-intencionados.

O procurador-geral e o promotor Westey Conde aproveitaram a presença da imprensa no evento pra pedir que parassem de criminalizar o MST, o que causou mal-estar entre os jornalistas. Hoje [dia 9 de fevereiro], centenas de famílias estão reunidas em Gameleira pra comemorar a liberdade dos companheiros, que vão estar todos no ato, e ao mesmo tempo anunciar para a Usina Estreliana que as prisões não vão conter o objetivo dos trabalhadores de desapropriar todas as terras da usina.

Os promotores apontaram várias falhas jurídicas no processo. Você acha que isso pode indicar que houve motivação política por parte da Justiça?

JA – Toda a motivação e interesses envolvidos neste caso foram políticos. Há uma decisão dos usineiros de impedir a desapropriação das terras da usina e intimidar a organização do MST na região. Infelizmente, mais uma vez, o comportamento do delegado, do promotor público e do juiz seguiu a tradição de submissão aos interesses dos poderosos donos de usinas. Esta cultura colonialista de submissão do poder político e do poder judiciário se manifesta todas as vezes que os trabalhadores passam a se organizar e lutar pelos seus direitos. Para os usineiros, trabalhadores são considerados escravos, e escravos não têm direitos, muito menos direito a se organizar e questionar os poderes constituídos.

O Incra obteve na Justiça Federal decisão autorizando a imissão de posse da área da usina, mas ela foi cancelada por uma liminar concedida pelo juiz da 7ª Vara Federal de Recife. O senhor acha que há uma resistência do Judiciário em reconhecer a legitimidade e a importância desse tipo de decisão?

JA – O poder judiciário tem se transformado em um dos maiores inimigos da Reforma Agrária, o maior empecilho do Incra para a desapropriação de imóveis improdutivos. Da mesma forma que ocorreu aqui, está acontecendo em quase todos os estados do Brasil. O poder judiciário, a Justiça comum e a Justiça Federal têm se constituído em um grande aliado dos latifundiários. Primeiro a Justiça comum concede liminares de reintegração de posse em todas as áreas ocupadas, sem levar em consideração o cumprimento da função social da terra, nem a improdutividade.

A cada ocupação, há a reintegração de posse imediata, quase que automática, a favor dos usineiros. Conseqüentemente, há violência policial contra as famílias de sem-terra. E durante todo o processo de desapropriação, mesmo a terra sendo classificada como improdutiva pelo Incra, a Justiça Federal suspende o processo e acata normalmente todos os recursos impetrados pelos donos de terras. Se não bastasse a violência do latifúndio e a violência da polícia, temos o poder judiciário que de forma parcial tem agido a favor do latifúndio, que é o maior inimigo do desenvolvimento econômico e social do Brasil.

O manifesto das organizações de direitos humanos denuncia a criminalização do MST por parte da Justiça. Essa criminalização do movimento é comum em Pernambuco?

JA – A burguesia trabalha freqüentemente com a idéia da criminalizaçao da luta pela terra. E conta para isso, normalmente, com a grande imprensa, que tem trabalhado com a divulgação de uma imagem violenta do MST. Através da vinculação da luta pela terra à violência e à bandidagem, tenta confundir a opinião da sociedade em relação à questão da Reforma Agrária e do MST. Além disso, há a tentativa histórica de nos empurrar para a ilegalidade. Principalmente através de leis, como a Medida Provisória que impede a desapropriação das terras ocupadas, que impedem a livre organização e reivindicação dos trabalhadores sem-terra.

O processo brutal de tentativa de criminalização do movimento e a tentativa de nos empurrar para a ilegalidade têm como objetivo principal a desmobilização da luta pela Reforma Agrária e o isolamento do MST da sociedade e de organizações e entidades aliadas ao movimento.

Você acha que podemos dizer que é uma tendência em todo o Brasil?

JA – É uma tendência em todo o território nacional que vem sendo orquestrada desde o início do governo de Fernando Henrique Cardoso e se aprofundou durante o seu último mandato.

Algum representante do governo federal ou do Legislativo se manifestou em relação a esse documento enviado pelas entidades ligadas a movimentos de direitos humanos?

JA – Inicialmente, o governo federal é um dos prejudicados neste processo porque a atitude do poder judiciário tem se constituído um detonador de violência contra os sem-terra. Tem legitimado muitas das ações de latifundiários, além de aumentar os protestos e o descontentamento dos trabalhadores. Neste sentido, a Ouvidoria Agrária tem se demonstrado atenta ao processo e estamos aguardando em breve a vinda a Pernambuco do ouvidor agrário nacional [Gercino José da Silva Filho] e do ministro de Direitos Humanos [Paulo de Tarso Vannuchi, secretário-especial de Direitos Humanos].

Acusações como “incitar o crime” e “invadir propriedade” vêm sendo utilizadas freqüentemente pela Justiça, pela mídia e por proprietários de terra como referência a ações do MST. Você acha que existe uma certa intolerância em relação às ações do MST por parte da sociedade que legitima, de certa forma, atitudes como a do juiz que decretou a prisão das lideranças do MST?

JA – O poder do latifúndio vem de cinco séculos. Está enraizado nas elites e atravessa todas as classes, que, por falta de conhecimento, não vislumbram um país sem latifúndio nem sem miséria. A intolerância ao Movimento é fruto de um conjunto de ações que as elites têm tomado para tornar o latifúndio e todo o seu aparato intocável. Fruto daqueles que não abrem mão dos seus poderes históricos e continuam produzindo e reproduzindo uma sociedade de explorados, excluídos e miseráveis. Intolerante e intransigente é todo o poder que impede que os trabalhadores possam ser considerados cidadãos brasileiros.

Você acha que o método de reivindicação e pressão usado pelo MST é o melhor caminho para alcançar a Reforma Agrária?

JA – Infelizmente, não temos outro caminho. Ou continuamos lutando e acreditando na nossa força ou seremos mais um vez derrotados e tratados pela burguesia como sempre trataram aqueles que ousaram se rebelar contra o poder constituído. Como fizeram com Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Sepé Tiaraju, Antônio Conselheiro, com as Ligas Camponesas e todos que ousaram lutar. Sucumbiram.

A única ferramenta que temos é a nossa organização e a nossa decisão de continuar lutando. Melhor morrer lutando do que morrer de fome. Mais de 60 milhões de brasileiros passam fome no Brasil e não têm perspectiva para as gerações futuras.