Santa a Aracruz? Malditas as Mulheres?

Por Frei Gilvander Moreira

No dia 20 de janeiro deste ano, a Aracruz Celulose mobilizou helicópteros, bombas, armas, tratores e 120 agentes da Polícia Federal, para destruir duas aldeias e expulsar 50 pessoas dos povos indígenas Tupiniquim e Guarani de sua terra tradicional, no município de Aracruz, Espírito Santo. Na mídia, não se viu nenhuma mãe Tupiniquim ou Guarani com seus filhos chorando, nenhum ministro do Governo condenando a ação, ou mesmo o dono da empresa lamentando a violência.

No dia 8 de março último, Dia Internacional da Mulher, mais de mil mulheres da Via Campesina ocuparam um centro de pesquisa da Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul. Destruíram 1.000.000 de mudas de eucalipto e danificaram pesquisas que fortaleceria a monocultura do eucalipto, pau reto que entorta a vida do povo.

A mídia, latifúndio da comunicação, esbravejou contra as mulheres condenando-as. Mostrou dezenas de vezes uma pesquisadora da Aracruz chorando. Lideranças se posicionaram. Vandalismo? Violência? Arruaça? Atentado à democracia? (Que tipo de democracia?) Antipetismo? (Petismo do início do PT ou o de agora?). As expressões acima foram bombardeadas contras as Mulheres, mas é necessário perguntar: Quem, de fato, praticou vandalismo, violência, arruaça? Quem atentou contra a democracia? As Mulheres ou a Aracruz? Diga o que tu fazes, que direi quem tu és.

A Aracruz Celulose S/A é uma multinacional controlada por quatro acionistas majoritários que detém o direito a voto: Grupo Lorens (28%), Banco Safra (28%), Votorantin (28%) e BNDES (12,5%). Com a monocultura do eucalipto, já transformou o Espírito Santo em um “deserto verde” e foi “laboratório” para treinar os 300 mil homens que, com 300 mil motos-serras, podem desmatar 40% da floresta Amazônica até 2050, 76% do Mato Grosso e 97% do Maranhão. (cf. MEDEIROS, Rogério, Ruschi, o agitador ecológico, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1995; e FSP, 23/03/2006, p. A17).

Nos últimos três anos, só a Aracruz Celulose, que tem cerca de 250 mil hectares de eucalipto no Brasil, recebeu do governo brasileiro quase 2 bilhões de reais. Em dezembro de 2005, foi aprovado empréstimo de quase 300 milhões de reais pelo BNDES à Aracruz que, entre outros, servirá para modernização da sua fábrica de celulose no Rio Grande do Sul. O prazo de carência desses créditos do BNDES é de 21 meses, só a partir daí começam as amortizações do empréstimo, cujos prazos chegam a 84 meses. Tudo isso a juros de 2% ao ano, enquanto as taxas de juros praticadas no Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) vão até 8,75% ao ano! O BNDES também emprestou US$ 318 milhões para a construção da fábrica da Veracel (empresa da Aracruz Celulose e Stora Enso, sueco-filandesa – são concorrentes, mas ao mesmo tempo sócias, alguém entende?), na Bahia.

A Aracruz teve lucro líquido de R$ 1,2 bilhão em 2005. Suas más ações vão desde a expropriação de terras indígenas até a desertificação “produtiva” que solapa a natureza para gerar lucros para uns poucos. E isso com a participação ativa de instituições do governo como BNDES tendo a polícia federal como guardiã e o judiciário como cúmplice.

Mais de 90% da celulose produzida pela Aracruz é exportada, principalmente para os Estados Unidos, que consomem 9 vezes mais papel que os brasileiros. Já são 5 milhões de hectares de monocultura de eucalipto no Brasil, 52,6% em Minas Gerais (cf. INDI 2003). O eucalipto, originário da Austrália, é um vampiro das águas. Tem raiz vertical do tamanho da árvore. Chupa as águas superficiais e as mais profundas. Com tronco reto, cascas e folhas finas, suga a água com facilidade e não a retém. No cerrado, onde as árvores são retorcidas, com cascas e folhas grossas, a água é retida e forma a conhecida “caixa d’água do Brasil. “As plantas do cerrado dispensam as folhas na época da seca. Assim economizam água e fertilizam o chão”, diz dona Ermelinda, uma geraizeira. O “deserto verde” da monocultura do eucalipto tem causado um êxodo rural violento, a expulsão familiar do campo, além de incontáveis impactos ambientais: a biodiversidade destruída, os solos empobrecidos, rios secos, sem contar a enorme poluição gerada pelas fábricas de celulose que contaminam o ar, as águas e ameaçam a saúde humana.

Há 506 anos “ciclos” históricos de monoculturas mantêm o povo do Brasil em situações análogas à escravidão (pau Brasil, borracha, cana-de-açúcar, ouro, café, minério, soja, eucalipto). Pressionado por ONGs ambientalistas, o Ministério Público instaurou inquérito contra três grandes indústrias de celulose que estão se instalando no Rio Grande do Sul, a Votorantin, a Aracruz e a Stora Enso. Isso porque elas estão plantando sem licenciamento ambiental.

“As Mulheres camponesas, pela sua ação disseram que o agronegócio de papel e celulose é espinheiro e abrolhos que não garantem uso social e ecológico da terra e da água. A expansão da monocultura da celulose quer inviabilizar a necessidade da reforma agrária e agrícola no Brasil. Não produz alimento. Ninguém come eucalipto. Não gera emprego proporcional à quantidade de terra utilizada. Não garante uma relação responsável com o ambiente inteiro. Não distribui riqueza, fazendo do Brasil um ponto subordinado – também na área da pesquisa! – no quadro internacional do capital papeleiro. As necessidades infindáveis e insustentáveis de consumo de papel e derivados no capitalismo têm como referência os padrões de uma burguesia mundial que precisa demais do papel porque escreve demais! Embrulha demais! Empacota demais! Compra demais! Gasta demais! Faz propaganda demais! Este modelo absurdo de consumo não vai ser imposto ao campesinato mundial”, profetisa a pastora Nancy Cardoso Pereira.

O papel higiênico, as fraldas, os jornais, os livros, o material de propaganda e as embalagens das milhares de mercadorias do Primeiro Mundo dependem da nossa terra, da nossa água e do nosso clima para existir. Expandir a produção de celulose alimenta este padrão insustentável de consumo que depende da exploração da natureza de uma região do planeta, o sul pobre, para manter o padrão de vida de outro, o norte rico. As plantações de eucalipto alimentam as carvoarias, onde há trabalho escravo, e saciam a fome das caldeiras das siderúrgicas que exigem mineração que detonam com as nascentes e lençóis freáticos.

Os evangelhos da Bíblia (Mateus 21,12-13; Marcos 11,15-19; Lucas 19,45-46 e João 2,13-17) relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que o laboratório da Aracruz que tem a cruz no seu nome, mas uma cruz de sangue e dor que ela impõe aos pobres. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de Mulheres guerreiras que não aceitam mais nenhuma opressão.

As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma medida provisória (= “Decreto Lei”) que mandava matar as crianças do sexo masculino, se organizaram e fizeram greve e desobediência civil. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à pessoa e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, dizia em seus corações as Mulheres do “sistema de saúde” do Egito. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso.” (Ex 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade. O Movimento das Mulheres campesinas é legítimo herdeiro do Movimento das parteiras do Egito. O mesmo Deus que impulsionou as parteiras está com as Mulheres que assustaram a Aracruz. Ontem, lutavam contra o império dos faraós; hoje, lutam contra o império das multinacionais.

No Dia Internacional da Mulher, as Mulheres camponesas, com um espírito profético, usaram a força simbólica contra a violência estrutural de uma empresa que pensa poder, impunemente, comprar a vida das pessoas e transformar a terra em mercadoria. O gesto das companheiras do MST e Via Campesina convida a todos, homens e mulheres, comprometidos com a justiça e a defesa da Terra a continuar esta marcha profética e aprofundar a invasão simbólica de tudo o que pertence ao povo e dele foi roubado, em nome do dinheiro e do progresso mentiroso.

“A ação das Mulheres da Via Campesina, na Aracruz, está em consonância com as ações de Gandhi e Martin Luther King Jr., mártires dos oprimidos. Elas e eles fizeram desobediência civil: desafio a leis injustas sem agredir pessoas. Como gesto extremo, querem acordar consciências anestesiadas que são cúmplices de sistemas opressivos. A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas”, pontua Plínio de Arruda Sampaio (FSP, 24/03/2006, p. A3). O boicote do sal e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionistas no Sul dos Estados Unidos e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo causaram grandes prejuízos materiais aos capitalistas, mas trouxeram conquistas para a humanidade.

As Mulheres camponesas foram compelidas a realizar um gesto extremo pois não estão sendo ouvidas, por isso vivem um drama há muito tempo. Se a Reforma Agrária fosse feita pra valer e o ambiente estivesse sendo preservado, se as cartas e os documentos por elas, cuidadosamente, elaborados e apresentados, tivessem sido acolhidos, não existiria Aracruz destruindo como está. Não precisaria das mulheres destruírem um milhão de mudas de eucalipto. Todo o povo brasileiro viveria mais feliz.

Para os capitalistas, a terra, as águas, as sementes, o ar, as matas são recursos que devem ser explorados conforme seus interesses econômicos. Para as Mulheres camponesas, estes elementos da natureza são dádivas e base da vida, não tem preço e jamais podem ser mercantilizados. Para as Mulheres camponesas a terra deve cumprir função social não comercial, deve alimentar a vida, não os lucros. Defendem a agricultura familiar que produz 70% dos alimentos da mesa do povo brasileiro; é a que mais emprega no campo; fixa o homem ao campo; desenvolve agricultura ecológica; preserva a biodiversidade; respeita a pluralidade cultural das populações; gera trabalho, renda e dignidade para a população.

“O que fere a consciência democrática de todos os brasileiros” é a redução violenta da biodiversidade, a exterminação da fauna e da flora brasileiras, a diminuição do volume de água nos locais do plantio, a contaminação do solo, da água dos rios e córregos pelo uso exagerado de herbicidas e outras substâncias tóxicas, provocando um grande desequilíbrio biológico com a infestação de pragas que atingem as residências e as produções agropecuárias da população vizinha ao eucaliptal;

O conflito está estabelecido: De um lado, um Movimento de Mulheres que estão grávidas de Um Outro Brasil, justo e solidário; De outro, uma transnacional que explora, expulsa e destrói a saúde de trabalhadores (as), acaba com o ambiente, concentra terra, renda e riquezas em nome da tecnologia e da modernidade. De que lado vamos ficar?

As Mulheres foram, não às mudas, mas à raiz do problema. O que fascina no gesto simbólico delas é a lição de que não precisamos e não devemos tolerar o desterro produzido em nosso próprio país. É preciso olhar toda a criação como um bem comum e do qual a humanidade é apenas um dos parceiros, não sua proprietária. As Mulheres nos dão impressionante recado de que a sobrevivência da espécie não pode ocorrer às custas de tantas vidas e tanta destruição.

Deus está nas Mulheres em movimento e no Movimento das mulheres.

Frei Gilvander Luís Moreira é biblista, assessor da CPT/MG, CEBs, CEBI e SAB.