Leila e as musas

Por Alípio Freire

Nos anos 60, com generosas idéias na cabeça e um fuzil nas mãos, muitas mulheres foram à luta. Tornaram-se ícones, musas de toda uma geração. Animavam sonhos e expectativas de um mundo novo (este ainda construiremos: socialista). Acendiam luzes pelas trevas do mundo. Eram nossas companheiras e camaradas, não importando onde lutavam, que língua falavam, que chão pisavam – deixando marcas que nem o tempo nem a avalanche da propaganda do inimigo serão capazes de apagar.

No Brasil, muitas estavam bem ali, ao nosso lado – sem o que, estou convencido, toda aquela luta teria sido menos brilhante; sem o que, teria faltado muito do seu caráter épico e libertário. Destas, algumas
tombaram em combate ou foram assassinadas – como esquecer Lola, Yara, Elenira e tantas outras? Muitas continuam por aí, Brasil e mundo afora, tentando cerzir fragmentos das velhas e sempre atuais bandeiras, e construir caminhos. Vocês lembram da Vilma, que foi da ALN, ou da Marta, da Ala Vermelha?

Há um par de anos assisti um documentário, “Mulheres do Vietnã”. Estavam lá três delas: a generala, a médica e a diplomata da mesa-redonda das negociações de Paris. Em frentes diferentes, as três comandaram a maior surra que o maior império militar que o mundo já conheceu, levou. A primeira morreu – morte natural, pouco tempo depois da vitória. A segunda, em desencanto com os rumos do seu Partido e do Estado vietnamita, retirou-se de todos os cargos, e hoje dirige uma ONG. Continua uma bela e aguerrida senhora. A terceira, Tinh Binh (Nguyen Tinh Binh – como era tratada) faz parte do primeiro escalão que dirige a República Socialista do Vietnã. Sem querer ser leviano, fez (no filme) um depoimento que, para ser sincero, me desapontou um tanto. Talvez tenha sido isto que lhe retirou muito do brilho que antes carregava, e não o fato de ter engordado um pouco … e logo ela de quem – apesar de minhas fobias em relação a “pais” ou “mães dos povos” – fiz um retrato poético, quando estávamos presos no Carandiru. Ainda tenho o desenho.

Pouco depois, entre escombros da Palestina, vi em noticiário da TV uma outra dessas inesquecíveis mulheres: Leila Khaled. Lembrei-me da primeira imagem que me ficou. Era um grande cartaz em preto-e-branco, creio que de 1966 ou 1967: uma jovem morena, com os cabelos apanhados para trás, um lenço palestino nos ombros e uma metralhadora (creio que uma Thompson) na mão direita. O corte da imagem era mais ou menos pouco abaixo da pélvis, e a jovem aparecia de lado, em movimento, andando em direção à direita do cartaz e, ao mesmo tempo, em direção ao espectador. Mostrou-me um amigo que poucos anos depois seria assassinado. Sinceramente, hoje não tenho certeza de que fosse realmente a Leila. Mas foi a idéia e a imagem que ficaram daquela conversa com o Benê e que, de todo modo, prezo manter.

Não sei exatamente qual o projeto que Leila Khaled defende para a Palestina. Ainda que o soubesse, teria dificuldade em avaliar, pois as informações a respeito da região não me são suficientes. Mas, em todo caso, ela está ali, dissonante de todos os consensos e desse senso comum estabelecido que transformaram a política em um grande e bem comportado minueto. Gente que, em nome de uma não-violência de conveniência, boceja frente aos desmandos dos Bush e se escandaliza frente a qualquer manifestação de insubordinação dos oprimidos. E é neste quadro que, nesta madrugada, leio sobre Leila Khaled. Leio uma curta entrevista com Leila Khaled. Lá está ela defendendo, na contracorrente, os “maus
modos” – no mínimo, o direito à pedrada. E quando leio isto (o que outrora nos soaria tão pouco), sinto que não estamos tão sozinhos. Ou, pelo menos, que não ando tão sozinho.

É, meus camaradas, os deuses ainda não nos abandonaram de todo. As musas ainda andam soltas pelo mundo a clamar pelo direito à insubordinação.