Impunidade: estímulo à violência

Por Dalmo de Abreu Dallari

O Brasil está comemorando dez anos de um dos fatos mais vergonhosos de toda a história brasileira: o massacre de Eldorado dos Carajás, o assassinato covarde e premeditado de 19 trabalhadores rurais pobres, que numa rodovia do Estado do Pará promoviam manifestação pacífica, pedindo, com base na Constituição, que se fizesse a desapropriação de um latifúndio improdutivo situado naquele Estado, como parte da reforma agrária. Aqueles trabalhadores estavam exercendo direitos expressamente consagrados na Constituição brasileira. Basta assinalar que, além de outros, as vítimas do massacre estavam exercendo vários dos direitos fundamentais enumerados no artigo 5º da Constituição, a saber, o direito à livre manifestação de pensamento (inciso IV), o direito à liberdade de locomoção (inciso XV), o direito de petição aos Poderes Públicos (inciso XXXIV, a) além do direito à reforma agrária, como previsto nos artigos 184 e seguintes da Constituição.

É muito importante o enquadramento jurídico dos fatos, para que fique clara a gravidade dos crimes configurados no massacre e para que, informados e esclarecidos, os brasileiros percebam que o seu silêncio, sua indiferença ou a aceitação da impunidade dos criminosos, caracterizam uma forma de cumplicidade e têm o efeito de apoio à delinqüência socialmente bem posicionada. Como já tem sido amplamente demonstrado, a impunidade dos criminosos estimula a prática de novos crimes e gera a convicção de que violar a lei e agredir direitos pode ser um bom caminho para conseguir e manter posições de prestígio político e social e para a obtenção de riqueza.

No caso do massacre de Eldorado dos Carajás, os autores, direta ou indiretamente responsáveis pela ação criminosa, além de praticar homicídio premeditado contra pessoas indefesas agiram por motivos torpes, impediram o exercício de direitos, excederam-se no uso de meios e ainda praticaram o crime de prevaricação definido no artigo 319 do Código Penal brasileiro, por se terem valido de seus cargos para a obtenção de resultado ilegal. Os fatos, que projetaram internacionalmente uma imagem negativa do Brasil, foram noticiados com riqueza de pormenores. Um dos acusados, o coronel Mário Pantoja, comandante da tropa da Polícia Militar paraense que massacrou os trabalhadores, revelou que, segundo estava informado, a ordem para reprimir de qualquer maneira os manifestantes foi dada pelo governador do Estado, Almir Gabriel, aliado político dos latifundiários da região.

O Coronel Pantoja informou ainda que, pouco antes da investida, comunicou-se com o comandante-geral da Polícia Militar, alertando-o para a iminência de um massacre, pois a tropa só dispunha de armamento pesado, como fuzis e metralhadoras, e ia investir contra pessoas absolutamente indefesas, tendo recebido a ordem de prosseguir na operação de guerra para atender a vontade do governador. A ordem foi transmitida aos soldados, com o trágico resultado, facilmente previsível e que poderia ter sido evitado pelo próprio coronel, que não estava obrigado a cumprir uma ordem que, na circunstância, era manifestamente ilegal. Disso tudo existe prova, estando comprovados fatos que levam à clara configuração dos crimes, além da precisa identificação dos responsáveis. Só falta a punição, que deve ser a conseqüência natural num Estado Democrático de Direito.

As vítimas do massacre eram trabalhadores rurais pobres, exercendo direitos. É mentiroso, desonesto e injusto querer apresentá-los como criminosos, agitadores políticos ou desordeiros, como alguns tentam fazer para justificar o massacre e a impunidade. Como se tem noticiado, o Estado do Pará é a parte do Brasil em que se concentra a mais alta criminalidade ligada a disputas pela terra. Juízes e defensores de direitos humanos são ameaçados por pistoleiros profissionais contratados pelos latifundiários, entre os quais existem muitos grileiros, invasores de áreas indígenas e de outras terras do patrimônio público.

É necessário e urgente que de todo o Brasil levantem-se vozes, de pessoas de boa vontade, organizações sociais e instituições, que, com serenidade, independência e coragem, exijam a punição dos criminosos e dêem apoio firme aos juízes e tribunais envolvidos no caso. Não há exagero em dizer que existe uma expectativa internacional em tal sentido, sendo imperativa uma decisão rápida e final da Justiça, para que o mundo saiba que no Brasil já não há ambiente para a existência de criminosos privilegiados.

Dalmo de Abreu Dallari – Professor e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade de Paris