Os pobres possuirão a terra

Pronunciamento dos Bispos e Pastores Sinodais sobre a terra

Introdução
1 Após se completarem 25 anos do documento Igreja e problemas da terra, aprovado pela Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1980; quando a Comissão Pastoral da Terra (CPT) acaba de celebrar os 30 anos de existência, a serviço dos povos da terra; ao comemorarmos o trigésimo aniversário da morte do Padre João Bosco Penido Burnier (12/10/1976), o vigésimo da morte do Padre Josimo Morais Tavares (10/5/1986), o décimo aniversário do massacre de Eldorado de Carajás, com a chacina de tantos leigos pobres (17/4/1996) e o primeiro aniversário da morte de Irmã Dorothy Stang (12/2/2005), mártires da terra, terra sempre prometida por Deus e sempre negada pelos detentores do poder, nós, bispos das Igrejas Anglicana, Católica e Metodista, pastores sinodais da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e membros do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), queremos refletir a realidade do campo, da água e das florestas do Brasil, neste início do século XXI. Buscamos encontrar os melhores caminhos para apoiar a causa de todos os que vivem do trabalho da terra em nosso país e suas organizações e movimentos, para que cresçam na construção de sua autonomia e na busca de soluções duradouras e eficazes para seus problemas.
2 Os problemas enfrentados pelos camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro, notadamente pelos pequenos produtores rurais, posseiros, meeiros, arrendatários, sem-terra, acampados e assentados, assalariados rurais e pelas diversas e diferentes comunidades ribeirinhas, extrativistas, quilombolas e povos indígenas, estão presentes no horizonte das preocupações pastorais de nossas Igrejas. Elas continuam a ouvir o clamor desses povos, muitos em condições mais difíceis e precárias que antes e mais excluídos dos bens que a natureza e a sociedade oferecem.
3 É com preocupação que olhamos o presente e o futuro do povo que vive do trabalho na terra. O neoliberalismo se implantou e tornou o capital e o mercado valores absolutos. A política oficial do País subordina-se aos ditames implacáveis desse sistema e apóia e estimula abertamente o agronegócio intensivo e extensivo, que está estrangulando nossos pequenos agricultores e os trabalhadores em geral, tanto da cidade, quanto do campo, inviabilizando sua sobrevivência.
4 A questão da terra não afeta somente o campo, mas é uma questão nacional e planetária. A acelerada e violenta agressão ao meio ambiente e aos povos da terra revela a crise de um modelo de desenvolvimento alicerçado no mito do progresso que se resume nos resultados econômicos e esquece as pessoas, sobretudo as mais pobres, e todas as demais formas de vida. Por isso convidamos todas as pessoas, de qualquer credo, que desenvolveram o senso de justiça e fraternidade a que procurem conhecer mais e em profundidade a emergência da situação ambiental e a realidade das pessoas que vivem da terra, a se solidarizarem com elas, a apoiarem suas, mais que justas, lutas e reivindicações. Convidamos toda a população brasileira para juntos procurarmos construir uma sociedade alicerçada na solidariedade capaz de combater a idolatria do mercado.

1
Resgatando a história
A contribuição de nossas Igrejas
5 Nas décadas de 1970 e 1980, era tão rica e diversificada a experiência de organização e tão forte a capacidade de luta por terra e pelos direitos dos trabalhadores, que a ditadura militar decidiu implantar estruturas claramente repressivas militarizando a administração da política agrária. E como, em sua visão, as organizações dos camponeses e trabalhadores rurais assalariados poderiam resultar em movimentos revolucionários, o governo passou a acusar as Igrejas de serem insufladoras de idéias comunistas e de estarem por trás das ações ligadas aos conflitos fundiários. Chegou-se ao ponto de dizer que “a CPT criava os conflitos pela terra”. De fato, foi a partir da atuação das Igrejas que os conflitos, as violências, os assassinatos de trabalhadores passaram a ser conhecidos, tornados públicos, denunciados. Nesse sentido, pode-se dizer que ela colaborou para visibilidade “política” dos conflitos e violências. Por ser uma pastoral, seus agentes tiveram uma cobertura institucional maior. Sem isso teriam sido vítimas fáceis da truculência da ditadura, como ocorreu com muitos camponeses, trabalhadores assalariados e militantes sociais.
6 As Igrejas sentiram-se desafiadas a ter uma compreensão mais profunda do que estava acontecendo e a tomar posição diante da realidade. Como fruto dessa reflexão, o documento aprovado pela CNBB, em 1980, fez uma importante distinção entre terra de trabalho e terra de exploração. Terra de exploração ou de negócio é a propriedade destinada ao enriquecimento contínuo por meio da exploração dos trabalhadores ou por meio da especulação. Terra de trabalho, pelo contrário, é a terra de quem nela trabalha e vive. O documento ressalta que a responsabilidade pelos crescentes conflitos por causa da terra tem sua origem na expansão da propriedade capitalista da terra de exploração. A reflexão teológica e pastoral sobre a questão da terra, realizada também com apoio da análise sociológica, resultou numa série de compromissos por parte da CNBB, em nome da Igreja Católica. Foram respostas a três desafios: que faremos para que a terra seja um bem para todos? Que faremos para que a dignidade da pessoa humana seja respeitada? Que faremos para que a sociedade brasileira consiga superar a injustiça institucionalizada e rejeitar as opções políticas antievangélicas?
7 A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) desde os primeiros momentos foi uma das protagonistas das ações da Pastoral da Terra. Um destacado grupo de pastores assumiu as lutas e as causas dos camponeses e camponesas, sobretudo em algumas regiões do país. Em 1982, a IECLB colocou como reflexão do ano a temática da terra, com o lema “Terra de Deus, terra para todos”. Levou para dentro da Igreja o debate sobre a realidade da terra (mais da metade dos membros da Igreja era formada por pequenos agricultores). As comunidades de confissão luterana se debruçaram sobre essa realidade. O Concílio Geral da IECLB, em 1990, aprovou que a Igreja “voltasse a se empenhar pela reforma agrária”.
8 A Igreja Católica, em 1986, também dedicou a Campanha da Fraternidade ao tema da terra visando sensibilizar as comunidades católicas e toda a sociedade. Com o lema “Terra de Deus, terra de irmãos”, apresentou dados sobre a concentração da terra no Brasil, o êxodo rural que esvaziava o campo e inchava as periferias das grandes cidades, os grandes projetos tanto públicos quanto privados, apoiados pelos governos, a violência contra os camponeses e trabalhadores.
9 Em 1996, as Igrejas-Membro do Conselho Nacional de Igrejas (Conic) e da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) lançaram o documento Os pequenos possuirão a terra, resultado do esforço comum dessas duas instituições. O documento foi entregue ao governo e foi divulgado, junto com uma Carta ao Povo Brasileiro, conclamando para um dia nacional de oração pela reforma agrária.
10 Em 1997, o Pontifício Conselho de Justiça e Paz, do Vaticano, lançou o documento Por uma melhor distribuição de terras – o desafio da reforma agrária, no qual analisou a situação da concentração da terra, a situação vivida pelos agricultores, e apontou caminhos para solução. Tinha caráter universal e dirigia-se, de forma clara, ao Brasil.
11 O Colégio Episcopal da Igreja Metodista elaborou, em 2000, o documento Diretrizes para a ação missionária na questão da terra. Destaca que a questão da terra é uma das mais difíceis e conturbadas necessidades do povo brasileiro. Afirma ainda que interesses, nem sempre voltados para os mais carentes, se impõem e desafiam a atuação evangélica e missionária dos metodistas.
12 “Dignidade humana e paz – novo milênio sem exclusões”. Com esse tema, no ano 2000, a Campanha da Fraternidade teve caráter ecumênico e foi organizada e assumida pelas Igrejas que compõem o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Essa Campanha assumiu compromissos com os excluídos, mais diretamente com os povos indígenas, com as populações de rua e com as populações do semi-árido. Com relação a estas últimas, apoiou a construção de cisternas de placas para captar água de chuva na perspectiva da convivência com o semi-árido.
13 Os Bispos da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, em carta pastoral de 2003, propõem um estilo de vida mais fraterno e generoso, aberto à partilha dos bens, à solidariedade para com os excluídos, e pedem que se pressionem os governos para que se implementem “reformas (entre elas a agrária) justas e necessárias, mesmo que essas limitem vantagens de alguns em favor de todos.”
14 A Campanha da Fraternidade de 2004, com o tema “Água, fonte de vida”, tornou-se uma referência nacional e internacional. Trouxe para a reflexão os “múltiplos valores da água”, a água como um bem público, patrimônio de todos os seres vivos e direito fundamental da pessoa humana. Denunciou a política privatista e mercantilista da água embutida no discurso da “oligarquia internacional da água”, formada por um grupo restrito de empresas do ramo, com apoio de organismos multilaterais e governos locais. Hoje, a luta pelo reconhecimento da água como direito humano é ecumênica e globalizada, assumida como uma bandeira pelo Conselho Mundial das Igrejas.
A reforma agrária
15 Durante os últimos trinta anos, nossas Igrejas têm se manifestado insistentemente sobre a necessidade de se realizar uma profunda e verdadeira reforma agrária. Porém todos os esforços e campanhas feitos para que houvesse mudanças na estrutura fundiária brasileira foram infrutíferos. Às mobilizações da sociedade por reforma agrária os governos responderam com tímidas políticas compensatórias que visavam amenizar os conflitos e desmobilizar os movimentos sociais, muitas vezes com forte repressão.
16 Com o fim do regime militar, o governo José Sarney sinalizou na direção de uma possível reforma agrária com a criação do Ministério Extraordinário da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Rural (Mirad) e com a formulação do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que se propunha a meta de assentar 1.400.000 famílias. O plano não passou de uma carta de intenções: só foram assentadas 89.945 famílias.
17 O Congresso Constituinte, em 1988, foi um dos palcos onde se defrontaram as forças pró e contra a reforma agrária. A questão agrária provocou intensos debates e foi um dos últimos pontos a ser votado. Foram recolhidas mais de 1.200.000 assinaturas em todo o país em defesa da reforma agrária. Apesar disso a bancada ruralista, com apoio da União Democrática Ruralista (UDR) — ator estratégico e armado do latifúndio — conseguiu incluir no texto da Constituição dispositivo que impedia a desapropriação de terras consideradas produtivas. Dessa forma retirou a força de outros artigos que subordinavam e condicionavam a propriedade à sua função social. Estabeleceu um novo ordenamento legal que representava um retrocesso em relação à legislação anterior e ao Estatuto da Terra. Com a definição de “justas indenizações pecuniárias”, instalou-se no país uma verdadeira indústria de superindenizações de latifúndios desapropriados.
18 As chacinas de Corumbiara e de Eldorado de Carajás, com a repercussão que tiveram, sobretudo no exterior, e as pressões dos movimentos sociais levaram o governo Fernando Henrique Cardoso a criar o Ministério Extraordinário da Reforma Agrária (1996), que mais tarde passou a se chamar de Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Não se estabeleceu, porém, um programa real de reforma agrária e um plano com objetivos e metas para a desconcentração fundiária. Cresceu a pressão dos movimentos sociais com manifestações, marchas, ocupações de terras e de prédios públicos. Isso levou o governo a assentar dezenas de milhares de famílias como política compensatória para amenizar os focos de tensão social. A tão propalada reforma agrária, porém, nunca foi tratada como prioridade.
19 Acolhendo a estratégia de amenização da pobreza, concebida pelo Banco Mundial para as áreas rurais dos países do Terceiro Mundo, em especial para a América Latina e Caribe, o governo de Fernando Henrique Cardoso adotou um novo modelo de reforma agrária denominado de “novo mundo rural”. Era uma autêntica contra-reforma agrária. Visava substituir gradativamente o instrumento de desapropriação de áreas, por mecanismos de compra e venda de terras. Para isso foram criados os programas Cédula da Terra e Banco da Terra e outros programas nos quais se inclui hoje o Crédito Fundiário. Dessa forma buscava-se privatizar os instrumentos de arrecadação de terras, transferir para Estados e Municípios o controle dos programas e desonerar a União dos seus custos financeiros e políticos. Nesse contexto, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foi perdendo sua função, culminando com o desmonte da autarquia.
20 Para conter o crescimento dos movimentos e suas ações, o governo Fernando Henrique Cardoso lançou a propagandeada “reforma agrária pelo correio”, que só existiu nos meios de comunicação. Os sem-terra preencheriam um formulário nos Correios e em poucos meses receberiam seus lotes. Praticamente ninguém foi assentado por ela. O objetivo dessa reforma agrária era desmobilizar os movimentos sociais, na tentativa de desconstruir qualquer ação organizada e coletiva. Veio acompanhada de uma série de medidas que criminalizavam as ações dos movimentos: a criação de um departamento específico na Polícia Federal para apurar crimes contra violações da propriedade rural; a proibição da vistoria das terras ocupadas, ou sob ameaça de ocupação, mesmo que improdutivas; o impedimento do assentamento das pessoas; e a proibição de acesso a recursos públicos das entidades que, direta ou indiretamente, se envolvessem com ocupações coletivas de latifúndios etc.
21 Com a eleição de Lula para a presidência da República, criou-se na sociedade brasileira em geral, e sobretudo nos movimentos sociais do campo, a expectativa de que a reforma agrária se concretizaria. Foi criada uma comissão que apresentou um alentado e bem fundamentado programa de reforma agrária. Entretanto, esse programa foi reduzido e descaracterizado. Só foi anunciado após uma marcha organizada pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, ao final do primeiro ano do mandato (2003)
22 Além disso, a bancada ruralista no Congresso Nacional, formada por parlamentares de diversos partidos, tem servido de instrumento para barrar todo e qualquer avanço da reforma agrária e dos direitos dos trabalhadores do campo. Não se consegue, por exemplo, votar a proposta de emenda constitucional que estabelece a expropriação de propriedades onde se explora mão-de-obra em condições análogas à escravidão. Essa bancada, majoritária na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Terras, rejeitou o relatório final que denunciava a grilagem das terras públicas e aprovou um relatório substitutivo no qual os trabalhadores, vítimas da violência no campo, são denunciados como responsáveis pela mesma. Também propõe que as ocupações de terra sejam tipificadas como crime hediondo e ato terrorista. Nunca, porém, foi criminalizada a grilagem, conforme a lei já prevê desde 1966 .
Nova consciência
23 Vivemos uma mudança de época. Nossa geração assiste ao fim da concepção de desenvolvimento baseado no modelo industrial — em que se pressupunha a inesgotabilidade da natureza — e ao início de um modo de civilização baseado na sustentação de todas as formas de vida. O marco que separa essas duas concepções de mundo, sem dúvida, foi a tomada de consciência da “crise ecológica”. A devastação dos solos, da flora e da fauna, dos mananciais de água doce, a emissão de gases poluentes, com o conseqüente aquecimento global, feriram perigosamente o planeta em que vivemos.
24 No decurso dos últimos anos, tem crescido a consciência dos trabalhadores em torno aos valores da terra e se resgata uma relação com a terra mais totalizante. É com satisfação que vemos que a terra está deixando de ser olhada como mero meio de produção, para ser contemplada como espaço de vida, realização e felicidade de todos os seres vivos. A terra, sem deixar de ser um fator importante para a produção dos bens necessários à vida, passou a ser percebida como o meio ambiente, ou seja, lugar e fonte da vida. A terra é solo, água, ar, espaço, morada. Reflexões científicas mais aprofundadas deram novos fundamentos às percepções de que a Terra comporta-se como um ser vivo, onde não só uma forma de vida está vinculada à outra, mas onde a vida, para existir, pressupõe relações quase que indecifráveis também com os seres não vivos. Essa constatação científica coincide com a intuição de povos ancestrais, que viam a Terra como mãe, e que ela guarda mistérios que têm a ver com a possibilidade de compreensão do próprio ser humano.
25 Indissociável dessa nova concepção da terra está uma nova concepção da água. Hoje, em reação ao discurso da escassez, privatização e mercantilização da água em todo o planeta, ela passou a ser realçada — por ecologistas, cientistas, religiosos e estudiosos da questão social — como um bem fundamental, indispensável a todas as formas de vida, patrimônio da humanidade e de todos os seres vivos, que não pode ser privatizada e mercantilizada. Em contraposição aos “múltiplos usos” da água, fala-se nos seus “múltiplos valores”: biológico, ambiental, social, religioso, medicinal, turístico etc. Exigem-se uma nova racionalidade e uma nova cultura da água, em contraposição à prática predadora que determinou seu uso desde a Revolução Industrial. Ainda mais, ambientalistas, defensores dos direitos humanos e Igrejas lutam para que a água seja reconhecida como um direito fundamental da pessoa humana. Essa bandeira prospera no mundo inteiro, apesar das resistências das transnacionais da água, dos organismos multilaterais e dos governos locais.
26 Cresce também o sentimento de que corremos o grave risco de um desastre total em relação à vida na Terra. Se não forem feitas mudanças profundas nas relações humanas com ela, a destruição direta dos bens naturais e a produção de diferentes tipos de poluentes reduzirão perigosamente a capacidade de a Terra reciclar o que a agride. O aquecimento global, o efeito mais devastador desse modelo civilizatório, é a prova de que a humanidade precisa mudar seu relacionamento com o planeta que a abriga.
27 Os governos, principalmente dos países mais ricos, e as grandes corporações econômicas, que são os maiores responsáveis pela agressão ao planeta Terra, pouco ou nada mudaram. Investem bilhões de dólares em monoculturas como a do eucalipto e da soja, sem se importarem com as comunidades preexistentes, a depredação ambiental, o ressecamento dos solos. Investem outros bilhões na produção de venenos a serem jogados no solo e nas plantações a qualquer custo, e na produção e controle de sementes, inclusive as geneticamente modificadas. As pessoas que manipulam os venenos e os consumidores não contam nada. Só contam o lucro e os impostos que a atividade pode gerar. Coloca-se em perigo o equilíbrio da natureza, sempre em nome do progresso econômico. Os empresários aumentaram ainda mais seu tradicional controle sobre a terra agricultável, sobre o comércio das sementes e sobre a exploração de recursos naturais, como água, minérios, fósseis e florestas. Corre-se o risco de que a Lei 11.284, de 2/3/2006, aprovada e sancionada recentemente, signifique a entrega das florestas públicas para a exploração privada e predatória por parte de corporações que controlam a extração e comércio de madeira no mundo. Empresários e governantes têm resistido às advertências vindas de pesquisadores, de religiosos, de ecologistas, de entidades da sociedade civil e de camponeses. Continuam aferrados à falsa idéia da terra como um bem infinito que pode ser explorada sem limites.
28 Tudo isso faz com que seja ainda mais contraditória a situação do Brasil. As demais nações do planeta já não têm mais solos para expandir sua agricultura. Enquanto isso o Brasil ainda tem como expandir sua fronteira agrícola, pois detém aproximadamente 25% dos solos agricultáveis do planeta, 13,8% da água doce, entre 15 e 20% da biodiversidade planetária e praticamente 3 mil horas de sol sobre todo o território durante o ano inteiro. Deixando intactos os latifúndios improdutivos, a expansão agrícola está devastando biomas, como o cerrado e a floresta amazônica. O Brasil tem os bens, mas não tem uma estratégia própria de aproveitamento desses bens. Infelizmente, por tradição histórica, continuamos sob a dependência dos mercados externos, depredando mais do que aproveitando os solos e os demais bens disponíveis. As tecnologias aplicadas no agronegócio, não raro, ocultam a agressão ao meio ambiente, a superexploração dos trabalhadores, quando não o trabalho escravo contemporâneo. Causa indignação que, para ampliar sua produção e para ser competitivo no mercado mundial, o Brasil precise utilizar esses meios espúrios e criminosos .
2
Situação do campo hoje
A realidade agrária e agrícola
29 Vivemos, nos últimos anos, uma mudança total nas premissas que historicamente fundamentaram a política econômica. O mercado capitalista financeiro passou à condição de ente supremo para a solução de todos os problemas da economia brasileira e, inclusive, para a regulação das relações entre capital e trabalho.
30 Passaram a ser levadas a cabo reformas neoliberais radicais, que resultaram, entre outras coisas, na supressão de direitos sociais constitucionalmente garantidos e na precarização das já aviltantes condições de trabalho. Essas reformas foram responsáveis também pela privatização do patrimônio público com a venda de empresas estatais; pelo crescimento da grilagem de terras — a ocupação irregular e ilegal de terras públicas, inclusive as indígenas — e pela agressão, cada vez mais desenfreada, ao meio ambiente e pelo aumento do trabalho escravo.
31 A ausência de um programa eficaz de reforma agrária mantém e mesmo agrava a estrutura fundiária esboçada desde a época colonial. A concentração de terras, ao invés de diminuir, cresce. Em 1980, ao ser elaborado o documento Igreja e problemas da terra, os dados do Censo Agropecuário de 1975 indicavam que os estabelecimentos rurais com menos de 10 hectares eram 52,3% do total e ocupavam 2,8% da área. Os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares eram 0,8% do total e ocupavam 42,6% da área. Em 2003, segundo os dados cadastrais do Incra, o número de imóveis com menos de 10 hectares estava reduzido a 31,6% dos imóveis, ocupando somente 1,8% da área, enquanto o número de imóveis com mais de 1.000 hectares representava 1,6% dos imóveis, que ocupavam 43,8% da área.
32 Um dado significativo emerge da comparação dos dados cadastrais do Incra de 1992 e 1998. Segundo esses dados os imóveis rurais acima de 2 mil hectares que, em 1992, ocupavam 121.874.647 hectares, em 1998 passaram a ocupar 178.172.765 hectares. Ou seja, tiveram um acréscimo de área superior a 56 milhões de hectares. No mesmo período foram destinados à “reforma agrária” só 16 milhões de hectares. Isso quer dizer que para cada hectare de terra destinado à reforma agrária, o latifúndio concentrou mais 3,5 hectares. Além disso os governos não têm tomado medidas suficientes para cumprir a Constituição no sentido de reaver as terras públicas griladas e de destiná-las para reforma agrária e para demarcar as terras indígenas e quilombolas. Nem têm agido no sentido de regularizar as terras devolutas.
33 Os parcos e burocráticos recursos destinados aos pequenos agricultores, o aviltamento dos preços da produção agrícola, a falta dos mais elementares serviços públicos de saúde e educação têm levado muitos camponeses ao desânimo. Com isso o êxodo rural continua. O governo Fernando Henrique Cardoso alardeava ter realizado o maior assentamento de famílias em toda a história do Brasil, 480 mil famílias assentadas (cerca de 2,4 milhões de pessoas) entre 1995 e 2000. Em contrapartida, entre 1996 e 2000, entre cinco e sete milhões de pessoas, em grande parte jovens, abandonaram as áreas rurais. Um saldo negativo de mais ou menos duas ou três vezes o número dos assentados .
34 As políticas agrícola e agrária acabaram se submetendo aos interesses do agronegócio, com expansão do programa Crédito Fundiário e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). O Crédito Fundiário acelerou o processo de uma reforma agrária traída e entregue à lógica do mercado. Trata-se, como já foi provado pelos anteriores programas Banco da Terra e Cédula da Terra, de um caminho que leva à inadimplência e, o que é mais grave, à progressiva substituição da figura constitucional da desapropriação por interesse social que pune o latifúndio. Em muitos casos as terras negociadas são aquelas menos férteis, devastadas ou que, pela localização e pela presença de acidentes geográficos que dificultam a mecanização, não são do interesse dos empresários do agronegócio. Por sua vez, o Pronaf leva os pequenos agricultores a se submeterem à lógica do agronegócio. Está direcionado a apoiar, sobretudo, projetos de pecuária e de monocultivos. Grupos organizados de agricultores ecológicos e outros, porém, pressionaram e conseguiram ter acesso a esses recursos para projetos alternativos.
35 Além disto muitas medidas tomadas pelo governo Lula vêm afetando o pequeno produtor camponês. Várias portarias do Ministério da Agricultura normatizam as agroindústrias e estabelecem tamanhas exigências, sem oferecer políticas de apoio e incentivo aos pequenos agricultores, que apenas as grandes ou médias empresas conseguem sobreviver. Os pesados investimentos econômicos que exigem, levam, por exemplo, milhares de pequenos produtores de leite e de outros produtos a se retirar do mercado fornecedor. Com isso inviabiliza-se a possibilidade de os pequenos agricultores e os assentados da reforma agrária terem e manterem suas agroindústrias.
36 As grandes corporações controladoras de sementes e alimentos pressionam para ter o domínio completo sobre estas e sobre toda a cadeia alimentar, levando à uniformização do padrão alimentar. Usam de estratégias, as mais diversas, para difundir o plantio e a comercialização de suas sementes, inclusive as transgênicas. Facilitam o contrabando e o plantio ilegal destas últimas e depois usam do fato consumado para que o governo reconheça e libere tanto o plantio como a comercialização das mesmas. Isso aconteceu com a soja. E no mesmo caminho estão indo o milho e outras sementes. As famílias e as organizações camponesas encontram muita dificuldade em utilizar e comercializar suas próprias sementes face à falta de informação e às investidas das multinacionais e dos meios de comunicação. Com isso as empresas querem eliminar as centenas e centenas de variedades de sementes nativas, patrimônio milenar da humanidade, e provocar a total dependência dos agricultores dos seus laboratórios e comércio. A padronização dos alimentos, por outro lado, leva ao empobrecimento da dieta alimentar. Substitui a rica e imensa variedade de alimentos que as famílias consumiam, pelos poucos produtos, comercializados em todos os lugares do mundo, mas que estão sob o controle dessas empresas.
37 Essas corporações transnacionais acabaram impondo sua concepção à maioria dos deputados e senadores que aprovaram a lei de biossegurança, sem as necessárias precauções que a razão e o bom senso exigem. Ainda não se conhecem, suficientemente, os efeitos que os produtos transgênicos podem causar à saúde humana e ao meio ambiente.
O agro e o hidronegócios
38 A agricultura e a pecuária, nos últimos anos, passaram por um acelerado processo de modernização com constantes ganhos de produtividade pelo melhoramento genético e pela aplicação de tecnologias de ponta. O maquinário e os implementos agrícolas, de última geração, vão indicando, a cada metro do terreno, a qualidade do solo e a quantidade de fertilizantes e de sementes necessárias. As feiras agropecuárias se tornaram as vitrines onde todas as maravilhas e conquistas da tecnologia são apresentadas para deslumbramento dos visitantes.
39 À agropecuária, assim modernizada, deu-se o nome de agronegócio. Ele tem sido apresentado como o grande promotor do desenvolvimento nacional, responsável pelos crescentes superávites da balança comercial brasileira. Essa é a nova roupagem com que se apresenta hoje a agropecuária capitalista. Com isso quer se vender a imagem de desenvolvimento e progresso deixando intacta a perversa estrutura fundiária existente. E, dessa forma, oculta-se o caráter concentrador e predador do latifúndio para destacar somente a produtividade.
40 Além disso, o agronegócio tenta convencer a todos de que é responsável pela geração de milhares de empregos e coloca em sua conta a totalidade da produção agropecuária, incluindo a da agricultura camponesa e familiar .
41 Apesar dos constantes ganhos de produtividade, os defensores do agronegócio se opõem ferrenhamente a que sejam alterados os índices de produtividade estabelecidos, ainda na década de 1970, e que são utilizados para definir a produtividade da terra, para fins de desapropriação. Exigem, porém, uma produtividade cada vez maior dos trabalhadores.
42 A produção agropecuária do agronegócio tem endereço certo: o mercado mundial. Produz para quem paga mais, sem a menor preocupação em garantir a segurança alimentar da nação . É prioritariamente uma produção para exportar. Por isso o grande crescimento de áreas destinadas a pastagens e à produção de soja, cana e algodão .
43 Contudo os números disponíveis mostram que são as pequenas propriedades familiares, com sua produção diversificada, as que mais produzem, tanto quantitativa como qualitativamente. Nas regiões onde há concentração de pequenos agricultores, a desigualdade é menor e, por conseguinte, os índices de desenvolvimento estão entre os maiores . É a pequena propriedade que coloca os alimentos na mesa dos brasileiros. Os dados são claros. Há também empresas rurais modernas que contribuem para o desenvolvimento econômico e social, no respeito aos valores éticos, ecológicos e da legislação trabalhista.
44 Não é o agronegócio, principalmente a monocultura, que gera mais empregos no campo. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE 1995/1996, é a pequena propriedade que absorve mais mão-de-obra, 86,6% do total. A média propriedade absorve 10,9%, e a grande, só 2,5%. A pequena propriedade, além da força de trabalho familiar, emprega ainda 40,3% da mão-de-obra assalariada. Já a média propriedade emprega 45,5%, e a grande, somente 14,2% .
45 O agronegócio também se torna responsável por uma crescente onda de grilagem de terras. Velho problema fundiário brasileiro, a grilagem tem sido responsável pela devastação de grandes áreas de floresta, pela violência contra comunidades autóctones e pela invasão de territórios indígenas. O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Grilagem chegou à conclusão de “que a área grilada na Amazônia legal pode chegar a 100 milhões de hectares”. Áreas públicas da Amazônia são oferecidas, pela Internet, inclusive para estrangeiros, ao preço de US$ 60,00 o hectare.
46 Chama a atenção a incongruência da ação do Estado que se, de um lado, se diz preocupado em combater a ocupação ilegal e irregular das terras públicas, do outro, financia empreendimentos nelas implantados e delas recolhe impostos, através da Receita Federal, dando-lhes, assim, uma cobertura de aparente legalidade, sempre protegida pelos sigilos bancário e fiscal. É patente, também, a falta de vontade política de muitos governos estaduais que não realizam as necessárias ações discriminatórias em terras devolutas facilitando assim a grilagem das mesmas e a impunidade dos grileiros.
47 O agronegócio agride o meio ambiente. Carrega na sua esteira o mais surpreendente e rápido desmatamento de que se tem conhecimento na história brasileira. Este desmatamento atinge dois biomas em especial, o cerrado e a floresta amazônica. Na região Norte, de 1500 a 1970, somente 2% da cobertura vegetal haviam sido removidos. De 1970 para cá 17% dessa cobertura foi destruída para plantações de soja, algodão e milho, como também para pastagens. O cerrado, ecossistema que cobre quase um quarto do território brasileiro, é o mais ameaçado. Qualificado como a savana mais rica do mundo, o cerrado é a grande caixa d’água do país de onde nascem vários dos mais importantes rios. Desde 1970, a produção de soja no cerrado aumentou de 20 mil para 29 milhões de toneladas, ou seja, passou de 1,4% para 58 % da produção nacional do produto . Com isso a vegetação é destruída, espécies da fauna entram num processo crescente de extinção, fontes de água são afetadas e contaminadas pelo uso intensivo e indiscriminado de agrotóxicos — inseticidas, herbicidas — e fertilizantes químicos atingem a lavoura dos pequenos. Registra-se o aumento de incidência de câncer e de outras doenças, inclusive com várias mortes.
48 Outra forma da violência do agronegócio se dá com a destruição da floresta:
• pela ação das madeireiras que, muitas vezes, burlando a legislação ambiental, ou se escondendo atrás de falsos projetos de manejo florestal, destroem nossas matas, exportando nossa madeira, inclusive como contrabando;
• pelo crescimento desordenado da indústria siderúrgica, que transforma a madeira em carvão vegetal para a produção do cobiçado ferro-gusa, muitas vezes com a utilização de trabalho escravo;
• pelo incremento da atividade mineradora, muitas vezes licenciada sem a devida discussão da sociedade, que além de destruir a floresta, contamina as águas dos nossos rios pelo uso de produtos químicos e pelos dejetos neles lançados.
9 O crescimento da produção agrícola não se dá só pelo aumento da área agricultável, mas, em boa parte também pela expansão da irrigação . Cerca de 70% da água doce utilizada no planeta se destina à irrigação. No Brasil esta é feita sem a devida outorga exigida pela lei de águas. É principalmente em busca das águas que se dá a expansão das fronteiras agrícolas brasileiras. A voracidade com que os grandes produtores, sobretudo de grãos, avançam sobre as fontes de água coloca em risco rios como o São Francisco, o Araguaia e o Tocantins, a região amazônica, o bioma do Pantanal, as chapadas e gerais do oeste da Bahia, de Balsas e das bacias do Parnaíba e do Uruçui, no Maranhão e Piauí. Hoje, exportar grãos é exportar água. Essa situação fica ainda mais alarmante se acrescentarmos os estragos produzidos pelas pastagens e pelo “reflorestamento” comercial intensivo, sobretudo, do eucalipto e do pínus.
50 Apesar de o discurso ser outro, o projeto de transposição de águas do rio São Francisco, que o governo Lula assumiu como prioridade e quer realizar a qualquer custo, obedece à mesma lógica da expansão da agricultura irrigada. Além dos interesses de grandes empresas da construção civil e do cimento, escondem-se por trás desse empreendimento os projetos de irrigação para exportação de frutas e de criação de camarão. É mais um capítulo da conhecida indústria da seca.
51 Os interesses em torno à água, sua utilização econômica, sua privatização, sua mercantilização, justificam que já se fale em hidronegócio. A água transformada em mercadoria fica subordinada às leis do mercado e do capital e exclui um número significativo de pessoas, em especial os mais pobres.
52 Diante da crise social e ecológica do mundo contemporâneo, é necessário fazer uma leitura crítica do chamado avanço da ciência e da tecnologia. Com efeito, elas são a extensão do corpo e da inteligência humana. Porém, a pretexto de aumentar a produtividade, amenizar e até substituir o esforço humano em algumas atividades, muitas tecnologias modernas tornam-se excludentes e predadoras. No campo não é diferente. Não raro, as pesquisas de novas tecnologias acontecem sob encomenda de empresas privadas, visando prioritariamente ao lucro, alçando interesses privados sobre os interesses do conjunto da humanidade e do ambiente. As inovações tecnológicas são inevitáveis e até necessárias, mas não basta mais que sejam sofisticadas ou de ponta, é preciso que respeitem o meio ambiente e a pessoa humana.
Os conflitos
53 O avanço da predadora, excludente e desmobilizadora dominação do agronegócio tem feito aumentar a violência contra o meio ambiente, a natureza, o patrimônio público e as pessoas. Consegue combinar relações de trabalho modernas e as mais atrasadas, como a exploração de mão-de-obra escrava. E é responsável por uma constante onda de migrações que deixa os migrantes cada vez mais vulneráveis à exploração de seu trabalho. Um caso exemplar é o dos bóias-frias da cana-de-açúcar. Eles têm de se esforçar cada vez mais para manter o emprego e não serem devorados pela mecanização da colheita. Na década de 1980 um trabalhador no corte da cana cortava, em média, oito toneladas de cana/dia. Hoje a média que se exige é de 12 toneladas. Se não for atingida, o trabalhador é dispensado. Esse esforço demasiado tem sido responsável por dezenas de mortes por estresse e exaustão, fenômeno que os trabalhadores denominam de morte por birola. Infelizmente essas mortes acabam sendo computadas como conseqüência de outros problemas de saúde não aparecendo a real causa mortis. Enquanto se exige uma produtividade cada vez maior dos trabalhadores, o agronegócio se empenha a que não sejam alterados os índices de produtividade de suas propriedades.
54 No Pará e Mato Grosso a abertura de novas áreas, muitas delas griladas, continua a ser feita com mão-de-obra escrava. Nesses Estados, seguidos por Maranhão e Tocantins, é que se dá o maior número de denúncias da prática. Mas o trabalho escravo é também denunciado em Estados onde não se imaginava existisse. Surgem denúncias da prática na Bahia, em Goiás e até no Rio de Janeiro e em São Paulo.
55 O que chama a atenção é a persistência e até o recrudescimento dessa prática. Apesar do trabalho sério do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e do Emprego, criado em 1995, e de diversas medidas anunciadas para combater esse crime, a prática está longe de ser eliminada. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 1997, realiza uma Campanha de Combate ao Trabalho Escravo que tem por objetivo denunciar as situações de trabalho degradante e escravo, apoiar as vítimas e sensibilizar governo e sociedade sobre essa realidade. A CPT contabilizou, só em 2005, 262 casos de trabalho escravo, envolvendo 7.447 trabalhadores. O Ministério do Trabalho fiscalizou 149 dessas ocorrências e resgatou 4.361 pessoas. De 1995 até 2005 foram resgatados 18.694 trabalhadores.
56 Depois do assassinato de três auditores fiscais do Ministério do Trabalho e do motorista que os acompanhava, em Unaí (MG), em 2004, cresceu o clamor nacional para que o Congresso aprovasse a proposta de emenda constitucional, em tramitação há mais de dez anos, que prevê o confisco das terras em que se constate a existência desse crime. Já votado e aprovado pelo Senado, o projeto sofreu na Câmara alterações propostas pela bancada ruralista com o objetivo de protelar sua adoção definitiva. O projeto continua engavetado até hoje.
57 Além disso, os órgãos responsáveis pelo combate de tal crime não têm recebido os recursos suficientes e os meios proporcionais à gravidade da situação e, sobretudo, o efetivo respaldo por parte das autoridades e da Justiça. A falta de alternativas de sobrevivência nas regiões de aliciamento, a tolerância da Justiça e a ausência de severas sanções reais, tanto penais quanto econômicas e financeiras, mantêm o clima de impunidade, gerando uma reincidência assustadora, tanto dos autores desses crimes quanto das vítimas envolvidas nessa forma extrema de exploração.
58 Mas a violência contra os trabalhadores é a mais diversa e se mantém constante e até se amplia. Em 2005, a CPT registrou 1.881 conflitos no campo envolvendo 1.021.355 pessoas. Chama a atenção a violência que se abate sobre os trabalhadores pelas mãos do próprio poder público. Em 2004 foram despejadas, por ordem judicial, 37.220 famílias (o número mais elevado dos vinte anos de registro) e em 2005, outras 25.618 famílias.
59 O Poder Judiciário tem-se mostrado, quase sempre, um dos grandes aliados do latifúndio e do agronegócio. Ao mesmo tempo em que é lento para julgar os crimes contra os trabalhadores, é extremamente ágil para atender às demandas dos proprietários, expedindo liminares de reintegração de posse que, na maioria das vezes, acabam se tornando sentença definitiva sem sequer ouvir a parte acusada.
60 É o número de assassinatos que impressiona. De 1985 a 2005 ocorreram 1.063 conflitos com morte. Foram assassinadas 1.425 pessoas entre trabalhadores, lideranças sindicais ou de movimentos, agentes de pastoral e outras pessoas que apóiam a luta e a causa dos trabalhadores. O que mais nos causa indignação, porém, é que somente 78 desses homicídios foram julgados. Foram condenados apenas 67 executores e 15 mandantes. A impunidade desses crimes alimenta cada vez mais a espiral de violência.
61 Uma análise acurada dos dados da CPT, realizada nos anos de 2003 e 2004, relacionando os conflitos e a violência com os números da população rural de cada estado conclui que a violência é maior onde se dá a expansão do agronegócio. A violência cresce no rastro do agronegócio .
Os movimentos sociais
62 Nos últimos anos vemos com alegria crescerem organizações autônomas dos trabalhadores e trabalhadoras do campo que, teimosamente, buscam se contrapor ao modelo de desenvolvimento imposto pelas elites brasileiras e pelos interesses do mercado nacional e internacional. A CPT nasceu no contexto da ditadura militar, que reprimiu e até destroçou com violência os movimentos camponeses. Os governos militares continuaram a atrelar politicamente os sindicatos, reduzindo-os a exercer um papel meramente assistencialista. Muitas foram as resistências e muitos foram os mártires e as mártires do movimento sindical que não se dobrou a essas pressões. Mesmo assim, de cima para baixo, foram criados muitos sindicatos “pelegos” na tentativa de esvaziar a força de todo o movimento. Hoje, depois de muita luta e de trabalho nas comunidades camponesas, com os quais colaboraram de forma direta e atuante as nossas Igrejas e a própria CPT, podemos festejar o protagonismo atuante de dezenas de movimentos e organizações que representam as mais diferentes categorias dos camponeses e camponesas e de trabalhadores e trabalhadoras do campo.
63 A organização sindical (Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], CUT [Central Única dos Trabalhadores] e outros), a Fetraf (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar), o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), o MMC (Movimento das Mulheres Camponesas), o CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros), as inúmeras articulações dos camponeses e trabalhadores rurais do semi-árido nordestino e muitas outras organizações de camponeses, trabalhadores rurais e de sem-terra que surgiram no país foram e são os protagonistas de muitas ações e mobilizações que lhes permitiram exercer a legítima pressão política para que as reivindicações dos sem-terra e dos homens e mulheres do campo fossem atendidas. Iniciativas como acampamentos, ocupações de terra, “empates” (ação dos seringueiros para impedir a derrubada da floresta), ocupações de prédios públicos, marchas, mobilizações, acompanhadas de muitas atividades de formação, foram, muitas vezes, o único caminho para se fazerem ouvir pelas autoridades e para escancararem aos olhos da nação a realidade da injusta distribuição de terras no Brasil e a situação aviltante a que são submetidos os camponeses e demais trabalhadores do campo. Sem essas ações e ocupações organizadas, por exemplo, não se teria conseguido a maioria dos assentamentos que hoje existem .
64 Os povos indígenas, também, desenvolveram suas formas próprias de organização e continuam lutando para defender suas terras, sua cultura e seus direitos, alguns dos quais garantidos pela Constituição. Denunciam o descaso e cobram um atendimento efetivo da Funai (Fundação Nacional do Índio), que muitas vezes se omite. O preceito constitucional que obrigava a estarem demarcadas, em cinco anos, todas as áreas indígenas tornou-se letra morta. O governo federal, pressionado por agropecuaristas, mineradoras, madeireiras e pelos governos locais e estaduais, continua lento, quando não cria obstáculos para a demarcação das terras indígenas.
65 As comunidades negras, remanescentes de quilombos, resistindo à ideologia do processo de branqueamento da sociedade brasileira, vêm mantendo e revitalizando, cada vez mais, seus valores culturais e exigem o reconhecimento das áreas que ocupam desde o tempo da luta contra a escravidão e de outras que lhes são devidas por uma dívida histórica.
66 Essas populações originárias e tradicionais ocupam e vivem em seus territórios, na maioria das vezes sem o reconhecimento legal da posse da terra, usando, com sabedoria e comunitariamente, os recursos naturais num processo permanente de reconstrução e de resistência diante da violência do capitalismo agrário. São verdadeiros territórios de autonomia e de liberdade vivenciados por populações que não devem ser consideradas como “carentes” ou “indigentes”, destinatárias de políticas compensatórias, mas como sujeitos, autores e destinatários da construção de um Brasil novo que se reconheça pluriétnico, plurilingüístico, pluricultural, plurirreligioso.
67 Todos esses movimentos presentes no campo brasileiro, continuadores corajosos de uma longa história de lutas camponesas, são, hoje, os protagonistas de organizações sólidas e fortes que, pela gestão a partir das bases, e pela amplitude de sua luta, buscam a superação da pobreza e o resgate da cidadania para os milhões de brasileiros excluídos.
68 São todos esses movimentos sociais e populares que teimam em querer uma verdadeira reforma agrária, camponesa, respeitadora das diversas culturas, capaz de garantir terra e vida aos muitos grupos excluídos. Questionam o atual modelo energético, defendendo novas formas de geração de energia, mais adequadas e menos agressivas às pessoas e à natureza. Lutam pela soberania e segurança alimentares e por políticas públicas que atendam ao conjunto dos trabalhadores, com especial atenção à identidade própria da mulher camponesa e trabalhadora rural, e para conseguir políticas de educação, saúde e previdência que garantam a homens e mulheres do campo um atendimento adequado para sua sobrevivência. Querem evitar a derrubada de milhares de hectares de floresta e promover uma exploração racional das riquezas que esta mesma floresta proporciona e que é muito maior do que a riqueza produzida pela ação, quase sempre predadora, das madeireiras e dos agropecuaristas. Defendem a criação das reservas extrativistas conquistadas por sua luta e protegem, com todas as suas forças, lagos e rios, que garantem a reprodução dos peixes e o alimento para as famílias. São capazes de iniciativas eficazes e simples como a captação da água de chuva para o uso cotidiano das famílias do semi-árido nordestino. Ao contrário de depredar os parcos recursos hídricos da região, cercados e colocados a serviço de poucos, querem cooperar com a natureza e em solidariedade ao meio ambiente, o que abre perspectivas para o uso agrícola da água de chuva, através de tecnologias apropriadas, respeitadoras das características ambientais locais. São esses camponeses e camponesas que fazem proliferar, pelo Brasil afora, muitas e variadas formas de convivência harmoniosa com a natureza que vão desde a produção orgânica de alimentos, a produção e a conservação de sementes crioulas, os cultivos agro-florestais, buscando reproduzir na atividade agrícola o que a natureza realiza espontaneamente passando por diferentes formas de irrigação, chegando aos PDSs (Projetos de Desenvolvimento Sustentável) nas áreas de florestas.
69 Diante de tantas lutas e iniciativas benéficas, causa-nos indignação a cultura camponesa ser vista ainda como sinal de atraso e o povo brasileiro que vive no campo ser discriminado em seus direitos de acesso à educação. De cada três pessoas com mais de 15 anos, uma ainda é analfabeta ; de cada quatro crianças, apenas uma está na pré-escola; há muitas escolas de educação fundamental no campo sendo fechadas, muitas crianças permanecem mais tempo no transporte escolar do que na escola. A oferta de educação de nível médio no campo não chega a 5% dos jovens de 15 a 17 anos e boa parte dos professores ainda não tem titulação e menos ainda formação adequada para atuar nas escolas do campo . A educação escolar, uniformizada segundo padrões urbanos, tem contribuído para submeter camponeses e camponesas a um grave processo de perda de identidade e de auto-estima, roubando-lhes o sonho de produzir uma vida digna no campo. Para resistir à pressão cultural, feita pela escola e pela mídia, e reagir à discriminação, muitas comunidades rurais e assentamentos estão se mobilizando pelo direito de ter escolas no campo e produzindo novas formas de educação contextualizada, vinculadas a um projeto de formação do ser humano capaz de construir alternativas ao agro e hidronegócios. Essas iniciativas articulam-se hoje em torno à “educação do campo”.
70 Causa-nos ainda maior indignação ver como os movimentos e organizações de camponeses e trabalhadores rurais vêm sofrendo sérios ataques por parte das organizações patronais, do aparelho de segurança do Estado e dos meios de comunicação social. Desde sempre controlados pelas elites dominantes e controladores da opinião pública, procuram criar uma imagem negativa dos movimentos sociais do campo, sobretudo dos mais combativos. Apresentam-nos como grupos de “baderneiros” e “fora-da-lei”. As suas justas e legítimas formas de luta, como as ocupações de terras, são vistas como meios para criar a desestabilização. Nunca consideram que a concentração de terras que deixa milhões de famílias sem terra e sem trabalho é uma afronta aos mais elementares direitos da pessoa humana, uma agressão à razão humana e uma usurpação ilegítima de um bem comum. Trata-se, em muitos casos, de uma verdadeira guerra que, muitas vezes, culminou no assassinato de inúmeros mártires, mulheres e homens, velhos e jovens e até crianças que só defendiam o direito humano, divino e constitucional de ter uma terra onde poder trabalhar e viver em paz.
71 O outro lado de uma violência disfarçada é a tentativa, por parte dos governos, de criar, com esses movimentos, uma relação de dependência e até de cooptação e manipulação política. A oferta de dinheiro público para a execução de projetos de interesse comunitário é muitas vezes condicionada ao apoio e à defesa dos interesses dos políticos de turno e à desmobilização da iniciativa comunitária. A necessidade desses recursos para combater situações de exclusão e, em alguns casos, a falta de uma leitura crítica ou até a atuação de pessoas corruptas fazem com que várias associações e organizações camponesas se sujeitem a essa verdadeira chantagem do poder e percam sua força de mobilização. Será nosso dever prioritário envidar todos os esforços para que essas distorções sejam corrigidas e não tornem a acontecer.
3
Exigências éticas à luz das Sagradas Escrituras
Símbolos e sonhos nos revelam o projeto de Deus
72 Diante desta realidade que clama por vida e por justiça, é nosso dever de Igrejas interpretar estes verdadeiros “sinais do tempo” e testemunhar a palavra da salvação que nos foi revelada e confiada pela bondade de Deus, nosso Pai e Mãe, que quer que todos os seus filhos e filhas tenham vida e a tenham em abundância (cf. Jo 10,10). Essa é a palavra que nos vem da tradição apostólica, orienta nosso discernimento e dá firmeza e segurança ao nosso julgar. Esta palavra, prioritária para nós cristãos, nos faz atentos e abertos às múltiplas outras vozes, sobretudo das tradições indígenas e africanas que, de maneira plural, celebram a vida e a divina presença na história da humanidade.
73 Ao abrir o tesouro que nos foi confiado nas Sagradas Escrituras, deparamo-nos com a narração da criação dos céus, da terra e das águas (cf. Gn 1 e 2). As últimas páginas bíblicas, por sua vez, nos falam de novos céus e nova terra, nos falam da nova Jerusalém que desce do céu, cujas portas estão abertas para todas as pessoas que tenham seu nome escrito no livro da vida (cf. Ap 21 e 22). O A e o Z das Sagradas Escrituras nos falam de terra, de água, de frutos e de vida para toda a humanidade, como sinal da presença criadora e salvadora de Deus na história.
74 O fato de essas páginas estarem carregadas de uma forte dimensão simbólica lhes confere uma autoridade incomum, pois nelas estão condensados, com toda sua força poética, o resultado de séculos de reflexão popular, os princípios éticos, teológicos e antropológicos que devem orientar a maneira de nos relacionar com a vida, a natureza e tudo o que existe.
75 O livro do Gênesis nos fala de Deus que, desde o princípio, com seu poder criador, vence as trevas, as águas dos abismos e o deserto — antigos símbolos mesopotâmicos da ausência de vida — e gera vida: as trevas viram luz, as águas viram rios, mares e chuvas, o deserto vira terra verde cheia de vida. O sol, a lua e os astros povoam o mundo de luz; os peixes povoam as águas; os pássaros os ares; os animais terrestres e o ser humano — homem e mulher — povoam a terra. Tudo numa perfeita harmonia e integração, vida gerando vida, onde tudo está feito para ser bom, muito bom.
76 A criação, segundo o olhar de Deus, é, assim, ao mesmo tempo, mãe — da terra nasceste —, dom, casa e jardim onde tudo convive em paz, onde tudo é parte essencial do todo, onde homem e mulher podem se amar, imagem viva e exclusiva de Deus, com o poder de “dominar a terra”, por sua paixão criadora e amorosa em vista da felicidade de todas as pessoas e de todos os seres vivos.
77 Uma interpretação fundamentalista desse “domínio”, porém, acabou justificando a propriedade privada, legitimando uma equivocada centralidade do homem sobre a natureza, embasando, teologicamente, a chamada “civilização” que produziu a concentração de terra, a devastação ambiental e a violência exploradora e assassina do ser humano sobre outros seres humanos. O ser humano, “imagem de Deus”, não pode se tornar grileiro de terras, destruidor de florestas, explorador do trabalho escravo e financiador da pistolagem. Esse verdadeiro exército de devastadores e assassinos, cuja violência está retratada em todas as páginas da história humana, nada tem a ver com a mensagem bíblica da criação.
78 “Dominar a terra” não nos autoriza a fazer o que queremos com a natureza; não nos dá a liberdade de explorar, de destruir, de devastar. “Dominar”, no sentido bíblico, é a capacidade de continuar, ao longo dos séculos, a cuidar, a zelar por nossa casa comum à semelhança do cuidado amoroso do Deus Criador. É a obra criadora permanente da humanidade quando luta contra todas as forças caóticas da morte, transformando-as em luz, água e terra boa para viver. Só assim a humanidade será a imagem verdadeira do Deus da vida.
79 A Nova Jerusalém, a cidade-jardim do fim da história, confirma, por sua vez, que este é o mundo que Deus quer para toda a humanidade. Suas imensas dimensões — cada lado mede 12.000 estádios = 2.200 Km (cf. Ap 21,16) — nos indicam que não se trata de uma cidade privilegiada, isolada e separada, mas é o Reino de Deus que vem substituir o império dominador que persegue e esmaga os santos de Deus, embebedando-se com o sangue dos mártires . Suas 12 portas, sempre abertas, suas terras férteis, atravessadas por um rio de água viva, suas praças que mais parecem pomares, cheios de árvores da vida, dando fruto 12 vezes ao ano, carregados de folhas medicinais, sem trevas, sem mar e sem deserto, apontam para uma terra fértil e espaçosa onde todos possam viver em paz e se amar, assim como se amam o Espírito e a Esposa.
80 Essas páginas contêm em si o imaginário bíblico a respeito da criação e de seu destino, o mesmo imaginário que inspirou o movimento profético a proclamar as promessas de Deus a seu povo sofrido: “Vou criar novos céus e nova terra […]. Já não haverá ali criancinhas que vivam apenas alguns dias, nem velhos que não completem a sua idade […]. Construirão casas para nelas habitarem, plantarão videiras e comerão de seus frutos […]. Os meus eleitos comerão eles mesmos o fruto do trabalho de suas mãos […]” (Is 65,17-25). É assim que o jardim vai entrar em nossas casas e no nosso cotidiano e o sinal da paz e da vida será descansar, esposos, filhos e filhas, debaixo das vinhas e das figueiras (cf. Mq 4,4; Zc 3,10; Mc 14,12).
81 O texto sagrado nos revela profundas verdades teológicas e, por sua vez, antropológicas, que devemos reafirmar com segurança ao falarmos de terra, de água, de vida. A terra é dom de Deus para todos os seus filhos e filhas, sem exclusão. É por isso que muitas vezes, ao falar da terra do trabalhador, as Sagradas Escrituras usam a palavra “herança” para indicar o direito inalienável que todos têm de viver e de gozar de um pedaço de terra e dos frutos do seu trabalho. A terra não pode ser transformada em simples mercadoria para produzir lucros, através da especulação ou da exploração do trabalho. Quando a propriedade e o uso da terra forem causa de pobreza e de opressão para as pessoas, nós temos a certeza de que a aliança com Deus foi rompida, que sua vontade foi desobedecida e que o pecado domina nossas relações.
82 A terra é nossa mãe e nossa casa; a ela devemos carinho cuidado e respeito. Nossas relações com a natureza não podem ser orientadas pelo valor utilitário de consumo ou pelo valor de mercado. Toda forma de vida e todos os seres vivos possuem um valor intrínseco de bondade e têm direito ao respeito. O uso irracional e devastador da criação, provocando danos graves e, muitas vezes, irreversíveis ao meio ambiente, deve ser condenado com veemência por atentar contra a força criadora permanente que Deus insuflou em toda a natureza. Como nos diz o apóstolo Paulo, entre as pessoas e a criação há uma conexão inquebrantável para o bem ou para o mal. A criação é “sujeita à vaidade” por nossa causa e, conosco e como nós, geme como em dores de parto e vive em ardente expectativa, aguardando na esperança ser redimida do cativeiro da corrupção (cf. Rm 8,19-23).
83 Todas as pessoas têm direito à água potável, ao ar puro, ao solo não contaminado e à segurança alimentar. Não podemos aceitar a monocultura, o uso de agrotóxicos e de produtos transgênicos sem a garantia do controle sobre seus efeitos nos seres vivos e na natureza. Muitas vezes, mascarados com a desculpa de aumentar a produção para atender às necessidades alimentares da população mundial, só servem para os interesses financeiros de grandes grupos econômicos, causando dependência, além de interferir de maneira nefasta no meio ambiente e na vida das pessoas.
84 A preservação do meio ambiente é um imperativo ético. É nosso dever proteger e restaurar a diversidade, a integridade e a beleza dos ecossistemas do planeta, vivendo de modo sustentável, promovendo e adotando formas de consumo, produção e reprodução que respeitem e salvaguardem os direitos de todos e de todas, o bem-estar comunitário e a capacidade regenerativa da terra.
85 Com gratidão de filhos e filhas, reafirmamos que a criação, fruto da ação vivificadora de Deus, é, por sua vez, fonte sagrada de vida e, como tal, deve ser amada e respeitada. O ser humano, homem e mulher, imagem de Deus, deve continuar participando do mistério permanente de criação e re-criação da vida, cuidando de todos os seres criados e protegendo-os contra todos os projetos caóticos de morte.
86 Precisamos, como humanidade, vencer a tentação orgulhosa de nos considerarmos patrões e donos da natureza, como se fôssemos os únicos seres realmente importantes aos quais todo o resto é direcionado e condicionado, para nos sentirmos parte de uma imensa vida, dom de Deus e de seu amor sem fim. Longe de nos considerarmos os dominadores absolutos da terra, autorizados a fazer dela e nela o que quisermos, precisamos recuperar a espiritualidade bíblica e franciscana que acredita na “irmã nossa mãe-terra, a qual nos sustenta e nos governa” .
87 Essa espiritualidade é decisiva neste momento histórico em que a humanidade toma consciência de estar numa “encruzilhada”, quando é preciso decidir qual o caminho a ser tomado, tendo como única referência ética a vida de toda a criação e da nossa e das futuras gerações. É necessário superar a visão predominante no mundo neoliberal que, ao olhar a terra, a água e as florestas, só enxerga “recursos naturais” a serem transformados em ganhos e lucros, para recuperar e reconstruir, com firmeza e coragem, a compreensão das nossas populações ancestrais que veneravam a terra como verdadeiro útero gerador perene de vida . “Somos da terra e dela recebemos o que é nosso” . Os cientistas hoje confirmam que isso não é sinal de atraso e de primitivismo ingênuo, mas a percepção correta da natureza que, assim, deve ser respeitada e amada. É a única forma de garantir a existência dela e da humanidade, construindo um mundo, baseado na sustentação de todas as formas de vida. O planeta é nossa casa. Com as populações indígenas e afro-brasileiras precisamos aprender sua maneira de cuidar e proteger a mãe-terra. Elas têm o direito a preservar sua espiritualidade, seus conhecimentos, suas terras, territórios e recursos. Sua maneira de se relacionar com a natureza nos enriquece e, ao mesmo tempo, questiona as práticas de exploração, muitas vezes destruidoras, estimuladas pela economia de mercado.
88 Muitas comunidades na floresta amazônica — entre elas comunidades de seringueiros e ribeirinhos — vêm mantendo, há anos, uma relação sustentável e solidária com a natureza, que nos prova que é possível uma atividade econômica sem precisar destruir a floresta. A conservação da natureza não pode ser vista só como um ônus econômico e social. Sua importância deve ser valorizada e estimulada: quem preserva este imenso patrimônio da humanidade tem o direito de fazer da preservação uma fonte suficiente e digna de sua vida.
Uma história de luta e resistência
89 A história da salvação, revelada através das Sagradas Escrituras, mostra que, desde o começo, na constituição do povo, a terra e a água são dons que se conquistam e se partilham. O acesso do povo ao uso da terra e da água sempre foi marcado por conflitos e tensões. O poço, fonte de vida essencial naqueles lugares semi-áridos, foi presença central na história das mães e dos pais de Israel. Para Agar, Rebeca, Raquel, Séfora, Abraão, Isaac, Jacó e Moisés, os poços foram o lugar da revelação de Deus, lugar de vida e de encontros e, ao mesmo tempo, lugar de disputa e conflito.
90 Em dado momento, as terras e as águas passaram a ser controladas pelos mais fortes, pelos reis, e colocadas a serviço dos interesses de poucos, às custas da opressão do povo do campo, pesadamente tributado ou reduzido à escravidão. Era o que previam as sérias advertências atribuídas a Samuel quando os israelitas quiseram ter um rei, igual aos povos vizinhos (cf. 1Sm 8,11). A história da salvação registrou especialmente os sofrimentos do povo de Israel e suas lutas para ter o direito de viver em paz, sem exploração, participando da herança de Deus. A luta paradigmática entre Moisés e o faraó para que o povo conquistasse a liberdade em busca de uma terra fértil e espaçosa, terra de leite e de mel, tornou-se o centro da fé de Israel, sua memória fundante. A ela foram indissoluvelmente ligadas a festa da Páscoa, a celebração da aliança com Deus, a legislação sempre atenta aos direitos dos mais fracos e dos mais pobres e o critério de discernimento profético presente na história.
91 Essa história, carregada de memórias de salvação nos revela o rosto do nosso Deus, magistralmente descrito nas palavras do salmo 146: “O Senhor faz justiça aos oprimidos e dá pão aos que têm fome. O Senhor liberta os encarcerados. O Senhor abre os olhos aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama os justos. O Senhor guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva” (Sl 146,5-10).
92 Essa história nos revela também que o nosso Deus não legitima e não compactua com nenhum projeto de dominação e de opressão — “Quem é igual a ti para livrares o pobre do mais forte, o oprimido do explorador?” (Sl 35,10). Sua vontade é que “os oprimidos possuam terra e nela se deleitem com paz abundante” (Sl 37,11; Mt 5,5).
93 Essa história de conflito não é a única vertente a ser considerada. A palavra profética, tão dura contra quem é causa da injustiça e do sofrimento do mais fraco, torna-se extremamente exigente quando requer de todos nós que nos convertamos à solidariedade e à fraternidade. A Palavra nos manda abandonar todo sentimento de cobiça, de ganância e de egoísmo, abrindo nossas mãos generosamente aos pobres, que sempre teremos entre nós, repudiando todas as formas de escravidão, de dominação, de discriminação. Só assim se realizará o sonho do Pai e da comunidade: “Não deve haver pobre no meio de ti, porque