Ariovaldo Umbelino: soberania alimentar requer rompimento com o agronegócio

Por Valéria Nader Fonte Correio da Cidadania Ariovaldo Umbelino, professor aposentado do instituto de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), fala nessa entrevista sobre as reivindicações recentes dos agricultores no Brasil e sobre as mazelas deixadas pelo agronegócio, além de criticar a atuação do governo Lula em relação à Reforma Agrária.

Por Valéria Nader
Fonte Correio da Cidadania

Ariovaldo Umbelino, professor aposentado do instituto de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), fala nessa entrevista sobre as reivindicações recentes dos agricultores no Brasil e sobre as mazelas deixadas pelo agronegócio, além de criticar a atuação do governo Lula em relação à Reforma Agrária.

Depois de vários anos dourados, com grande expansão do mercado externo para commodities agrícolas até 2004, qual o determinante da atual crise, origem das últimas manifestações de produtores rurais? As atuais reivindicações estão veiculando interesses legítimos do setor do agronegócio?

Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, é preciso refletir um pouco a respeito do mercado mundial de commodities. Se a gente lembrar, há dois, três anos atrás, nas safras 2002/2003, 2003/2004, o preço da soja no mercado mundial alcançou o seu mais alto grau na bolsa de Chicago, batendo todos os recordes. Isso foi no mês de março de 2004. No meses de outubro e novembro, ela alcançou o mais baixo preço da história. Esse fenômeno se deu em função de que os Estados Unidos, que são o maior produtor mundial de soja, tiveram duas quebras de safra, nos períodos que citei. Portanto, criou-se uma situação de falta do produto no mercado mundial. A Índia também teve quebra de safra, além de vários países, e a China vem sendo um grande comprador no mercado mundial. Esses fatores associados fizeram com que os preços quebrassem esses recordes.

A conclusão inexorável é que os produtores de soja no Brasil nunca ganharam tanto dinheiro quanto nesse período. Inclusive, um consórcio privado de grandes empresas e produtores estava disposto até mesmo a pavimentar a rodovia Cuiabá-Santarém para melhorar a saída da produção pelo rio Amazonas. No Mato Grosso, a televisão, as revistas, os jornais endeusaram o agronegócio, quando, na verdade, tudo não passou de um negócio ocasional do mercado mundial. A situação normal do mercado de grãos é de queda relativa dos preços, onde a agricultura só se sustenta a partir de um conjunto de políticas que garantam subsídios. E isso atinge tanto pequenos quanto grandes produtores; a produção de soja, sobretudo na região sul do Brasil, vem majoritariamente das pequenas propriedades. As unidades com menos de 200 hectares produzem cerca de 30% a 35% do volume total da produção de soja. É óbvio que qualquer crise atinge indistintamente pequenos, grandes e médios produtores, e os pequenos são mais vulneráveis nessas crises.

O problema é que os grandes proprietários estão se aproveitando de ter vivido, em safras passadas, uma situação de excepcionalidade e querem agora tirar do governo todo tipo de subsídio que porventura possam conseguir. Por isso, a primeira coisa que não querem é pagar dívidas. Nesse ponto, é necessário fazer um retrospecto, voltar ao passado. Já na década de 90, em 1996, FHC teve que negociar – quando disputava no Congresso a possibilidade da reeleição – com a bancada ruralista e prorrogou o pagamento das dívidas da bancada até o ano 2000. Durante as eleições de 1998, negociou novamente e alongou o prazo de pagamento dessas dívidas para 2005. É uma loucura. O país teve que desembolsar uma grande quantia em dinheiro para poder manter essas negociações. Estão agora fazendo a mesma coisa. Por isso, defino o agronegócio como a reatualização do passado, ou seja, continuamos a viver as mesmas políticas que vivemos desde o período colonial: o Estado foi sempre chamado a custear essa política de exportação que o Brasil mantém.

O agronegócio é visto por empresários do setor como uma atividade ímpar para o país, na medida em que estaria incrementando o PIB, gerando empregos em várias regiões e também divisas em moeda forte. Qual é a veracidade dessa idéia?

AU: Veja, o grande equívoco dos agricultores brasileiros foi desenvolver aqui a tese de que a agricultura capitalista é capaz de competir no plano mundial, com possibilidade de vencer essa competição capitalista. Isso aconteceu exatamente porque se conseguiu, nesses esquemas de securitização das dívidas, camuflar os subsídios, ou melhor, a sua ausência. No mundo inteiro, a agricultura é subsidiada. George W. Bush, no início de seus dois mandatos, tratou de votar o Farm Bill, que destinava, em quatro anos, algo em torno de US$ 250 bilhões de dólares para a agricultura norte-americana. O Brasil é o único país do mundo onde agricultores e alguns economistas dizem que é possível uma agricultura capitalista que não se insira nesses moldes. O que observamos é que, quando as vacas são gordas, como nas safras acima citadas, ninguém reclama; agora, quando o mercado volta ao seu curso normal, os produtores não têm mais capacidade capitalista de competir com a agricultura do restante do mundo.

Posso citar alguns exemplos que podem ajudar a compreender melhor esse pensamento. Se olharmos hoje o mercado da soja e sua produtividade – ou seja, a quantidade de soja produzida por hectare -, ela é praticamente a mesma no Brasil, nos Estados Unidos e na Argentina. Pode haver pequenas variações decorrentes de alguns eventos específicos, como uma seca no Rio Grande do Sul, mas, se tomarmos os anos normais, a produtividade é praticamente igual. Algumas regiões, inclusive, produzem mais do que os Estados Unidos: é o caso da Chapada dos Parecis, no estado do Mato Grosso, onde ficam municípios como Campos Novos dos Parecis, Tapezal, Campos de Julho, que alcançam produtividade acima da média, que é algo em torno de 3,2 toneladas por hectare.

A produção mundial de soja no ano passado, na safra 2004/2005, foi de 213 milhões de toneladas. A produção mundial de milho, que é o grão concorrente da soja, pois também é majoritariamente destinado à industria de produção de ração, foi de 400 milhões de toneladas. Nos Estados Unidos, produz-se majoritariamente o milho, não a soja – que é um quinto da produção do milho. Lá, a produtividade do milho está entre 9 e 10 toneladas por hectare. No Brasil, ela está entre 2 e 3 toneladas por hectare. Na realidade, a agricultura brasileira não tem condições de competir no mercado mundial.

Os agricultores brasileiros conseguiram, no entanto, convencer a mídia e uma série de intelectuais de que são competentes do ponto de vista capitalista e que podem disputar esse mercado, criando o mito de que a agricultura e o agronegócio são os responsáveis por boa parte das divisas internacionais do Brasil e que têm uma participação significativa no PIB. Isso é uma grande mentira, porque, se nós tomarmos a participação dos produtos agrícolas no mercado mundial, vamos verificar que a agricultura responde por menos de 10% das exportações mundiais. No caso brasileiro, inseriram no que eles chamam de PIB do agronegócio a parte da indústria e também os supermercados, inflando os dados e o próprio mito. E é esse mito que garante a importância do agronegócio, o combate à reforma agrária e que proporciona uma reivindicação maior de recursos do “fundo público”, como diz Chico de Oliveira.

Estamos, portanto, diante de mais uma daquelas típicas situações de privatização dos lucros e socialização das perdas, em função da infinita possibilidade de refinanciamento de empréstimos, no lugar de se praticar uma agricultura que subsidie não só os grandes, mas os pequenos agricultores.

AU: Exatamente. Por que na hora em que o Brasil vai à OMC, como já foi na disputa pelo mercado de vários produtos, o país ganha? Porque, quando a entidade vem fazer os estudos aqui no país, vêem que aquilo que o governo oferece é crédito. Para efeito da inteligência mundial, todo crédito tomado tem que ser pago. Trata-se de uma loucura, pois, ao final, não há pagamento e, com isso, driblam a própria OMC.

O último dado que vi, ainda nesse mês de maio, é que o Tesouro gasta por ano cerca de 9 bilhões de reais para sustentar a dívida dos ruralistas. Isso ocorre de diferentes formas, incluindo a securitização. E podemos ir ainda mais longe: dei o exemplo das dívidas da década de 90, mas, se retroagirmos à década de 70, verificaremos, no setor açucareiro, que não se pagaram e não se pagarão as dívidas associadas ao Proálcool.

Se o agronegócio é tão privilegiado em nosso país, por que os ruralistas ainda assim não se sentem satisfeitos com as medidas tomadas pelo governo Lula?

AU: Porque conseguiram seduzir um amplo espectro de pessoas, que acreditam nessas fantasias que contaram. E o governo, como evidentemente fez um pacto com esse setor do ponto de vista da governabilidade, sobretudo a partir dos acordos político-partidários no Congresso nacional, não consegue com ele fazer nenhuma política de enfrentamento.

O exemplo talvez mais significativo foi a expansão da soja transgênica no Brasil, quando era proibida. Por duas safras seguidas, Lula baixou um decreto permitindo que o grão fosse cultivado no país. A outra grande vergonha aconteceu mais recentemente, quando, propositalmente, o setor açucareiro deixou de colher, na safra passada de cana, uma parte expressiva do produto, para forçar a falta do álcool e provocar o aumento do preço do combustível. Na verdade, o governo Lula é uma espécie de refém desses setores.

O pacote recém-anunciado contra a crise agrícola, prevendo, até o fechamento dessa edição, um gasto de R$ 50 bilhões voltados basicamente ao financiamento da próxima safra agrícola, é uma resposta às reivindicações desses setores?

AU: Isso é o plano safra de 2006/2007. Veja bem, o setor do agronegócio sai de 44 bilhões para 50 bilhões de reais e a agricultura familiar passa de 9 bilhões – que não foram integralmente utilizados na safra passada, na qual foram despendidos cerca de 7 bilhões – para 10 bilhões de reais. Como se esse aumento por si só resolvesse o problema.

Esse é o dinheiro disponível para a próxima safra, mas penso que o que eles querem é novamente um conjunto de medidas que permita aumentar o perfil da renegociação da dívida das safras passadas. O que querem é não pagar os empréstimos dessa safra de 2005/2006.

Não seriam minimamente razoáveis algumas das reclamações dos produtores, como, por exemplo, a valorização do real, que teria prejudicado as exportações, e a falta de investimentos em infra-estrutura devido às restrições fiscais?

AU: Tomando alguns preços em dólares, a média de preço nessa safra de 2005/2006 ficou oscilando na casa dos US$ 13 a saca. Se pegarmos as safras 2002/2003, 2001/2002, o preço da saca estava em torno de US$ 9 dólares.

Tomando os números em reais, se compararmos o comportamento da safra 2003/2004 com a safra 2004/2005, receberam uma média de 36 reais por saca. Na safra 2005/2006, recebem uma média de 29 reais por saca.

O que argumentam é que, quando contrataram a dívida para plantar a safra, o fizeram com um dólar em patamar mais alto. No momento da venda, o dólar estava mais baixo, e as máquinas não foram compradas sob o efeito desse dólar mais baixo que hoje temos. Trata-se de um argumento esquizofrênico: se olharmos a participação do Brasil nas exportações mundiais, ela é crescente. Como podem estar tendo prejuízo se estão vendendo? Há uma mentira no meio dessa história toda. A verdade contábil não está vindo à tona.

Nós não estamos assistindo a nenhuma manifestação das multinacionais que controlam as exportações de grãos, não as ouvimos reclamando do mercado mundial de soja. É evidente que, se a situação do mercado mundial de soja fosse crítica, elas seriam as primeiras a reagir nesse conjunto. Eu penso que aí há um jogo de braço para abocanhar uma fatia maior do fundo público.

É evidente, nesse sentido, que precisamos separar o setor dos pequenos agricultores, que estão sob o efeito dessa mesma conjuntura. Eles estão em sua maior parte no sul do Brasil, que, além de tudo, foi penalizado com a seca. Na realidade, a questão lá é mais grave, mas quem está reclamando são os grandes produtores do centro-oeste.

Eu entendo que todas essas ações são políticas. Trata-se de setores organizados, historicamente contrários ao governo Lula. Como setores organizados, têm o direito de fazer suas brigas e reivindicações. O problema é o governo ceder. Acho que essa é a questão principal.

Os pequenos produtores deverão sair lesados desses últimos episódios, em sua opinião, em função de não terem como articular seus interesses?

AU: Exceto aqueles que estão organizados na CTA (Central de Trabalhadores da Agricultura) ou na FAF (Fundo para a Agricultura Familiar), o que conseguiram foi um aumento do rebatimento do crédito. O que acontece, entretanto, é que qualquer acordo que os grandes fizerem será bom para eles.

Mas não dá pra falar também que toda a agricultura está em crise. Isso é outra inverdade. Se há algum setor que está chiando é o setor da soja. Se fossem competentes como dizem, não precisariam nem de recursos públicos. Poderiam colocar o seu capital para produzir, como manda qualquer manual de economia capitalista.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA, declarou, em resposta a reportagem publicada na Folha de São Paulo, que o Pronaf, um programa de incentivo à agricultura familiar, cresceu muito: passou de R$ 2,2 bilhões e 900 mil contratos em 2002 para R$ 9 bilhões e 1,7 milhão de contratos em 2005. Qual a sua avaliação sobre o desempenho do governo Lula no setor agrícola? Houve realmente incentivo e apoio à agricultura familiar?

AU: É verdade que houve esse crescimento no volume de recursos disponíveis. Mas o governo não diz qual é o número de pessoas que tomaram empréstimos e estão inadimplentes. Se olharmos, ademais, o Pronaf do ano passado, vemos que só as faixas mais altas tomaram dinheiro; caiu brutalmente a tomada de dinheiro pelas faixas mais baixas – ou seja, os agricultores mais pobres.

Os números são, portanto, ilusórios. Aquilo que chamam de dinheiro alocado para os pequenos está sendo destinado para os médios. Assim sendo, apenas metade do que o governo diz é verdade.

Se eu tivesse que fazer uma análise macroeconômica do governo Lula no que se refere à agricultura, diria ainda mais: desde o seu primeiro ano, privilegiou o agronegócio.

Quais seriam as vantagens da agricultura familiar sobre o agronegócio para o nosso país?

AU: Primeiro, temos que pensar qual é a lógica do agronegócio hoje. O agronegócio é controlado por empresas, chamadas genericamente de tradings, que dominam o mercado de grãos: a Bunge, a Cargill, a Archer Daniels Midland (ADM) e a Louis Dreyfuss, empresa francesa que no Brasil opera com o nome de Coimbra. Essas são as quatro gigantes mundiais. No Brasil, há a Maggi, da família do governador do Mato Grosso, a Caraburu, de Goiás; há também outros grupos nacionais e internacionais menores.

A lógica predominante nessas empresas, que pode ser aplicada também em outros setores, como a avicultura, suinocultura, é a seguinte: os agricultores fazem acordos com as multinacionais, que lhes fornecem sementes e fertilizantes e passam a ser as avalistas, no sistema financeiro, do empréstimo que esse agricultor vai fazer. Na realidade, o dinheiro do Banco do Brasil vai, portanto, para as multinacionais. Para ilustrar, na revista da Agrishow deste ano, há uma propaganda do Banco do Brasil que mostra as empresas que são seus maiores clientes. Ali estão todas essas empresas que mencionei anteriormente. Para se ter uma idéia, para a Bunge, foram movimentados 370 milhões de reais; para a ADM, movimentaram-se 401 milhões de dólares.

No setor de carne Bovina, há duas empresas fortes: a Friboi e a Bertin, que também figuram entre os clientes do Banco do Brasil, assim como a Perdigão, a Sadia, outros grupos da avicultura, do setor cafeeiro e ainda a Coopersucar, que congrega os usineiros. Esse último setor é, provavelmente, o mais organizado da agricultura brasileira, pois atua monoliticamente. A única pessoa que quebrou seu monopólio foi Olacyr de Moraes. O empresário ficou fora do grupo quando montou a usina Itamaraty, no Mato Grosso, e fez acordos laterais com grupos de produtores de trigo argentinos, criando um mercado cativo que fez com que os usineiros chiassem.

Ou seja, estamos diante de uma lógica que se repete em todos os setores.

AU: É um setor que está completamente oligopolizado. Para se ter uma idéia, a Friboi acabou de comprar um grande frigorífico na Argentina, e até mesmo a UDR foi contra, fazendo manifestações contrárias e entrando no CADE para contestar a aquisição. Os pecuaristas, que sempre foram organizados, estão perdendo o controle do mercado. Isso fora o fato de a carne de frango estar comandando o preço da carne de boi e de porco, já que é a carne mais vendida – talvez por ser a mais barata.

E como mudar esse perfil agrícola no Brasil? Qual é o modelo agrícola que nos interessa?

AU: Na minha opinião, seria preciso que o governo olhasse de uma maneira diferenciada a agricultura camponesa. Essa corrida em direção ao chamado “agronegocinho” – como dizem os agricultores da FAF – para os pequenos não se sustenta do ponto de vista macroeconômico, já que a única âncora que ainda existe para o Plano Real é a âncora verde. O preço da cesta básica não subiu desde 1994. Tudo bem que há mágicas para manter esse cenário, mas, de uma maneira geral, isso quer dizer que os preços dos produtos agrícolas estão contidos. Se há uma inflação, ainda que pequena, o que ocorre ano a ano é uma desvalorização dos produtos agrícolas. Hoje, esse é o calcanhar de Aquiles do Plano Real.

Ao mesmo tempo, precede-se ao crescente direcionamento da produção para a exportação ou para a agricultura energética, ao que tem correspondido a fragilização da produção de alimentos para abastecer o mercado interno. Se olharmos o volume da produção de arroz, feijão e mandioca, que são os três principais alimentos da população pobre desse país, não há nenhum crescimento desde 1992.

O preço da âncora verde é, assim, o não-aumento da produção. E se a produção não aumenta, mas a população cresce, temos que recorrer à importação. Hoje, o Brasil é o maior importador de trigo do mundo. Importamos também arroz, feijão, o que é um absurdo total, uma vez que são culturas que o país podia produzir. Se não produz, é por falta de uma política voltada para a proteção à agricultura de pequeno porte. O resultado é que não temos hoje, em pleno século XXI, nem segurança alimentar e nem muito menos soberania.

O que fazer para inverter essa rota perversa? Seria necessária uma ruptura?

AU: Como os Estados Unidos conseguem ser um país que tem abastecido o seu mercado com todos os principais produtos necessários e, ao mesmo tempo, ter excedente para exportação? Porque possuem uma forte agricultura centrada nas chamadas family farms, pequenas unidades de produção. Como a Europa se sustenta do ponto de vista do abastecimento alimentar? Porque tem uma agricultura centrada nos camponeses de diferentes países. No Japão, ocorre a mesma coisa.

Então, não precisamos reinventar a roda. O problema é que a história do Brasil é marcada pelo apoio aos grandes. Qualquer governo que queira segurança e soberania precisa ousar romper esse apoio à grande agricultura de exportação.

Ou seja, para essa tarefa, não é necessário nem mesmo apelar para os princípios socialistas.

AU: Não, o raciocínio que estou fazendo é capitalista. Porém, há algo que é preciso dizer: como é que se constrói uma política dessa natureza, voltada para a pequena agricultura?

Bom, de um ponto de vista teórico-político, há que se acreditar que a agricultura de pequeno porte é a que vai sustentar essa produção mundial de comida. Ocorre que os teóricos do Brasil não pensam assim; se pegarmos o principal teórico da concepção agrária do governo Lula, que é José Graziano da Silva, ele vive dizendo que a agricultura é produzida pelos grandes, ainda que os dados estatísticos mostrem o oposto. Temos esse problema de cultura – tanto do ponto de vista acadêmico, quanto no sentido social e político. As teses da secretaria agrária do PT são todas voltadas para a grande agricultura.

Como existem também os movimentos sociais, é obviamente necessário que se lhes dê uma resposta. O caminho escolhido é aí o das políticas compensatórias.

Políticas compensatórias estas que são hoje a resposta predominante à maioria dos problemas sociais.

AU: Exatamente. Esse é um problema delicado que faz com que o esboço de um projeto para a agricultura seja posto em xeque.

Para dar um exemplo, recentemente estive num debate organizado pela secretaria agrária do PT de São Paulo, para começar a discutir o plano do Aloísio Mercadante. Lá, recebi uma cópia de um texto com uma evidente idolatria ao agronegócio. Ao final da tarde, quando outras pessoas que não compartilham dessa concepção, assim como movimentos sociais, deram sua opinião, receberam a ressalva de que “não podiam escrever no documento que eram contra o agronegócio”.

Não podemos esquecer também que o ex-ministro Antonio Palocci veio de Ribeirão Preto. Durante o seu governo, a cidade passou a ser a capital do agronegócio.

Em que medida se associam a política agrícola e as medidas voltadas à reforma agrária? Como foi a atuação do governo Lula no que diz respeito à reforma agrária?

AU: A minha posição é que o governo Lula não cumpriu e não cumprirá sequer as metas do II PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária – que ele mesmo fez em 2003. O balanço dos últimos três anos, de acordo com o governo, diz que teriam sido assentadas mais de 200 mil famílias. Isso não é verdade. Como dizem os economistas da FEA da USP – e de acordo com a ciência da “matemagia” -, a estatística é a arte de torturar os números até que eles confessem.

O II PNRA tem dez metas, atingindo setores diversos, todos importantes. Vou destacar duas delas: a primeira meta, que é o assentamento de 400 mil famílias em quatro anos de governo, e a outra, que se refere à regularização fundiária, ou seja, reconhecer o direito de posse àqueles que, por lei, o têm garantido. Há também uma outra meta que envolve ações voltadas para reconhecer assentados para que possam ter direito a acessar o Pronaf, pois só pode acessar o programa quem é reconhecido.

O governo – e não estão errados em fazer isso, só estão errados em mentir – está contando a regularização fundiária como assentamento de reforma agrária, o que é um absurdo total. Na medida em que se expurgam os dados divulgados, temos em torno de 90 mil famílias realmente assentadas nestes três anos. Por exemplo, em 2005, disseram ter assentado 127 mil famílias; feito o expurgo, mostra-se que apenas 40 mil famílias foram assentadas realmente. Ainda assim, existem assentamentos feitos em terras públicas na Amazônia, que poderiam não ser compreendidos como reforma agrária. Há também as terras que foram compradas, e não desapropriadas, com títulos da dívida agrária.

Na realidade, o governo Lula não fez a reforma agrária. Inclusive, há um estudo, feito por um assessor parlamentar do PT, sobre o programa de um eventual segundo mandato de Lula, que mostra que o governo petista desapropriou menos hectares que o governo FHC. A reforma agrária não foi uma política prioritária, mas sim compensatória, e foi feita sem enfrentamento ao agronegócio.

Em 2003, quando participei juntamente com Plínio de Arruda Sampaio da formulação do primeiro PNRA, ouvíamos de Miguel Rossetto que havia uma ordem da Casa Civil para não se fazer desapropriação em áreas em que houvesse agronegócio. Não é, portanto, difícil concluir que a prioridade foi dada ao agronegócio, e não à reforma agrária.

Não se pode negar que houve ações do governo Lula que foram importantes para o setor da pequena agricultura, como, por exemplo, a reinstalação da assistência técnica, que havia sido destruída por FHC. Há sim ações positivas, mas, reforma agrária, o governo está devendo.