Luísa Mahin

“Nasci a cidade de São Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado na rua do Bângala. Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de nação), de nome Luísa Mahin. Ela era baixa de estatura, magra, bonita. A cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa”.

É através desta carta, enviada pelo escritor Luís da Gama a Lúcio de Mendonça, que se tem o registro mais detalhado da vida da lutadora Luísa Mahin. A carta é de 25 de julho de 1880. Luísa, mãe de Gama, desapareceu em 1837.

Ela foi uma das principais lideranças das revoltas que povoaram o período imperial no Brasil: “dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito”, relata Gama.

Origem incerta

O sobrenome Mahin identifica Luísa como pertencente à nação jeje. Não se sabe se veio escrava da África ou se já nasceu em Salvador.

A nação jeje é originária do Golfo do Benin, noroeste africano que no final do século 18 foi dominada pelos muçulmanos, vindos do Oriente Médio. Nessa época, sob o comando de Usman Del Fodio, os muçulmanos iniciaram uma série de conquistas territoriais e religiosas. Até hoje, 17 países da região adotam o islamismo como doutrina.

Na vinda para o Brasil, os negros da nação jeje continuaram cultivando sua religião e conseguiram expandir o islamismo entre os escravos brasileiros.

Gama confirma a opção religiosa de Luísa em sua carta: “minha mãe era pagã, sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”.

As revoltas

Depois de liberta, em 1812, ela fez de sua casa um quartel general de articulação dos levantes escravos na Bahia. Entre 1800 e 1830, foram mais de vinte levantes. Na revolta de 1830, estava grávida de Gama, um dos maiores abolicionistas do Brasil.

Porém, a mobilização mais importante ainda estava por vir. Em 1835, Luísa se tornou por algumas horas, senhora das ruas de Salvador. Junto com outros 600 escravos e recém-libertos, na madrugada de 25 de janeiro, eles iniciaram a Revolta dos Malês. Malê era o termo adotado para os muçulmanos na Bahia.

O levante foi planejado cuidadosamente. Aproveitando-se de seu trabalho como quituteira, Luísa despachava mensagens escritas em árabe para outros rebelados, valendo-se de meninos para levar os bilhetes.

O dia foi escolhido propositalmente: enquanto os senhores celebravam no Bonfim, em Salvador, o dia de Nossa Senhora da Guia, os malês encerravam o Ramadã, mês de jejum dos muçulmanos.

De acordo com a crença islâmica, celebra-se nesse dia o Lailat al-Qadr, a Noite da Glória, quando Alá prende os espíritos do mal e reordena o mundo.

Junto com os malês estavam rebeldes negros vindos de outras nações africanas: os iorubás, conhecidos também como nagôs, os haussás, gegês e tapas. “Morra branco, viva nagô” foi o grito de guerra mais ouvido naquela noite.

Para o historiador João José Reis, um dos principais estudiosos da rebelião, além da inspiração religiosa do movimento, a origem africana e a condição escrava colaboraram para a união das nações.

A repressão veio logo. O resultado foi devastador: 70 mortos e cerca de 500 insurgentes que foram punidos com penas de morte, prisão, açoites e deportação.

Segundo Reis, a operação foi grandiosa e se fosse projetada para a Salvador dos dias atuais, com seus três milhões de habitantes, resultaria na punição de cerca de 24 mil pessoas.

Nos papéis encontrados nos corpos dos malês, a promessa de sucesso: “a vitória vem de Alá. A vitória está próxima”.

Os líderes que conseguiram fugir foram perseguidos brutalmente. Luísa escapou ilesa para o Rio de Janeiro, onde se formou um grande pólo muçulmano. Presa na cidade, foi, provavelmente, deportada para a África.

Gama conclui seu relato a Lúcio de Mendonça: “Em 1837, depois da Revolução na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Côrte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma ‘casa de dar fortuna’ em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’ fossem mandados por fora pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela”.

A luta de Luísa foi transmitida a seu filho: Gama libertou-se em 1848 após uma fuga e, anos depois, se formou em Direito, conseguindo libertar mais de 500 escravos.

Documentos da escravidão foram queimados

Encontrar documentos sobre a vida de Luísa Mahin é uma tarefa árdua. Quando a escravidão foi abolida no país, em 13 de maio de 1888, uma preocupação tomou conta do governo brasileiro: o pagamento obrigatório de indenização aos senhores de escravos, que alegavam a perda de 800 mil trabalhadores.

Para evitar problemas financeiros e jurídicos, Rui Barbosa, ministro das Finanças do primeiro governo republicano, assinou um despacho em 14 de dezembro de 1890, determinando que todos os livros e documentos referentes à escravidão existentes no Ministério das Finanças fossem recolhidos e queimados na sala das caldeiras da Alfândega do Rio de Janeiro.

Seis dias mais tarde, o Congresso Nacional “felicitou” o Governo Provisório por ter ordenado a eliminação nos arquivos nacionais sobre a escravidão. Com esta perda irreparável, uma importante página de nossa história se resume a cinzas.