A crise na agricultura brasileira

O integrante da direção nacional do MST, João Pedro Stedile, analisa na entrevista abaixo a crise da agricultura brasileira. Para ele, a situação atual do agronegócio tem raízes na dependência às empresas transnacionais, que controlam os comércio agrícola e o fornecimento de insumo aos produtores de monocultura para exportação. Dessa forma, ficaram reféns da dinâmica do mercado internacional de preços, que abalaram os lucros do setor.

O integrante da direção nacional do MST, João Pedro Stedile, analisa na entrevista abaixo a crise da agricultura brasileira. Para ele, a situação atual do agronegócio tem raízes na dependência às empresas transnacionais, que controlam os comércio agrícola e o fornecimento de insumo aos produtores de monocultura para exportação. Dessa forma, ficaram reféns da dinâmica do mercado internacional de preços, que abalaram os lucros do setor.

“O governo precisaria pensar uma política mais estável, que de fato priorize a organização de toda a produção agrícola, baseada na pequena e media agricultura. Os grandes produtores, auto-suficientes no agronegócio, que se virassem no mercado. No entanto, o que acontece é que quando o agronegócio dá lucro mandam o governo e a sociedade brasileira às favas”, explica.

Além das críticas ao agronegócio, Stedile propõe um novo modelo agrícola, baseado em pequenas e médias propriedades, para fomentar a produção para o mercado interno de alimentos saudáveis sem agrotóxicos. “O novo modelo agrícola passa necessariamente por um novo modelo de desenvolvimento nacional, que priorize a distribuição de renda, a industria nacional e a prioridade absoluta em gerar trabalho e emprego para o povo ter renda”, afirma.

Leia a seguir a versão integral da entrevista.

Qual é o motivo da atual crise na agricultura brasileira?

A agricultura brasileira está dividida entre três segmentos claros. Tem os pequenos agricultores, familiares e camponeses, que produzem para o mercado interno. Temos os médios produtores de 100 a 1000 hectares, que são agricultores e empreendedores. Por fim, temos o chamado agronegócio, dos grandes fazendeiros acima de mil hectares de terra. A crise se manifesta de forma diferente em cada um deles.

Qual a diferença?

Entre os agricultores familiares, temos uma crise de falta de mercado e de contenção de preços. A população não tem renda para aumentar consumo de queijo, pão, leite, iogurte, carnes e embutidos produzidos por essa faixa. Já os médios e grandes, que aderiram ao agronegócio, passa apenas por uma crise de taxa de lucro. Ficaram dependentes de transnacionais, que controlam todo o comercio agrícola e o fornecimento dos insumos. Como o preço da soja e das commodities agrícolas, em geral, é manipulado pelas empresas transnacionais, estão dependentes delas. O lucro da exploração agrícola, que antes ficava com os latifundiários, agora vai para as empresas transnacionais. Veja que engraçado: deu seca nas lavouras nos Estados Unidos; deu seca aqui e o preço da soja caiu mesmo assim. Porque? Com a palavra a Monsanto, Bunge e Cargill. Em resumo, a crise se deve à natureza dependente desse modelo neoliberal que entregou as exportações aos interesses das empresas transnacionais que controlam o comercio internacional.

Até que ponto o pacote agrícola bilionário do governo federal resolve o problema?

O pacote não atingiu em nada a natureza da crise. Não muda a relação de dependência. Não muda preços de insumos, salários nem o preço dos produtos, que são os três componentes da viabilidade do negócio. O governo apenas transferiu as dívidas que a falta de lucro do agronegócio no país gerou para serem cobradas ao longo de cinco anos. Prometeram mais recursos de crédito para a próxima safra que começa em agosto. E baixou a taxa de juros dos médios e grandes para o mesmo patamar dos pequenos, ou seja, apenas 8,75% ao ano. O Tesouro Nacional vai assumir a diferença até da Taxa Selic. O dinheiro é do banco, não do governo. O custo dessa diferença, seja das dívidas passadas (ao redor de 20 bilhões) seja do credito desse ano (ao redor de 40 bilhões) será superior a 6 bilhões de reais para os cofres públicos.

Nesse quadro, o que o governo brasileiro deveria fazer?

O governo precisaria pensar uma política mais estável, que de fato priorize a organização de toda a produção agrícola, baseada na pequena e media agricultura. Os grandes produtores, auto-suficientes no agronegócio, que se virassem no mercado. No entanto, o que acontece é que quando o agronegócio dá lucro mandam o governo e a sociedade brasileira às favas. Aplicam em bens de luxo. Quando dá prejuízo correm para cobrar a conta para que todos paguemos. É o famoso capitalismo sem risco, que só dá lucro, mas somente para alguns. Depois reclamam que aumenta a pobreza e a desigualdade.

A atual crise pode ter que tipo de reflexo para os trabalhadores do campo? Pode haver um aumento de trabalhadores sem-terra?

Não é só a crise que gera conseqüências sociais. Na verdade, é o modelo do agronegócio que traz enormes prejuízos para os trabalhadores rurais e toda a sociedade brasileira. O modelo agroexportador está baseado nas premissas de organizar a produção especializada na monocultura, em grandes extensões de terra, usando sempre venenos – os agrotóxicos. Utilizam a mecanização intensiva, portanto, despedem mão-de-obra e produzem simplesmente para exportar. O pior é que pagam os mais baixos salários da sociedade brasileira. Dificilmente um assalariado rural ganha mais do que um salário mínimo. Há até casos de trabalho escravo. Dos 60 milhões de hectares cultivados, temos hoje 70% dedicados a apenas cana, soja e laranja. O modelo é perverso. Exaure nossos recursos naturais, pratica técnicas que comprometem o futuro da natureza, impõe a monocultura que destrói a biodiversidade e expulsa mão-de-obra do campo. Só nessa crise, mais de 300 mil trabalhadores assalariados rurais perderam o emprego. Vieram para os acampamentos do MST ou foram para as periferias engrossar a miséria das grandes cidades. Isso abre os caminhos para a criminalidade e leva as pessoas para os presídios. A sociedade brasileira precisa pensar outro modelo para a organização da produção agrícola. O agronegócio não resolve a pobreza e a desigualdade do povo brasileiro no meio rural. Pelo contrário, só agrava.

Qual a relação dos protestos dos produtores rurais do centro-oeste e as manifestações do MST? Há um objetivo comum nos dois casos ou são causas completamente diferentes?

Houve apenas uma coincidência de calendário. De um lado, os fazendeiros do agronegócio levaram seus tratores e seus empregados rurais para fazer número e bloquearem estradas para pressionar o governo para liberar mais dinheiro para pagar as dividas do setor, em especial da soja e algodão. De outro lado, de abril até maio, se intensificaram as manifestações de trabalhadores sem-terra em todo o país para cobrar do governo mais pressa na Reforma Agrária e cobrar a solução dos problemas dos assentamentos. O governo nem se quer vem cumprindo o Plano Nacional de Reforma Agrária que ele mesmo assinou. Não se cumpre também a lei, que determina a atualização dos índices de produtividade para medir se uma fazenda é produtiva ou não para encaminhar a desapropriação. Os índices são ainda de 1975. O governo não tem coragem de atualizar a tabela e cumprir o que a lei manda.

Os produtores reclamam que, apesar de serem desestimulados a continuar a plantar, não podem reduzir as áreas plantadas sob pena de desapropriação. Qual é a sua opinião a respeito?

A choradeira que aparece nos jornais de que alguns especuladores ameaçam deixar de plantar é própria de quem não é agricultor. O verdadeiro agricultor, mesmo o fazendeiro capitalista, sabe que sua profissão é plantar. Mas os oportunistas querem apenas mamar nas tetas do Estado. São os grandes latifundiários, que moram aqui em São Paulo, vão de avião para suas enormes fazendas, ai ficam fazendo essas ameaças. De fato, ficam mudando de ramo: às vezes estão no gado, depois pulam para a cana-de-açúcar, para especulação na bolsa, imóveis urbanos etc. A lei é clara: quem não produz devidamente deve ser desapropriado. Segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e os estudos do II Plano Nacional de Reforma Agrária, poderia hoje se desapropriar 120 milhões de hectares sem afetar praticamente a produção de grãos e alimentos. As áreas mais afetadas seriam da pecuária extensiva da exploração predatória e áreas que de fato seus proprietários têm outros negócios. A Reforma Agrária não assusta ninguém que realmente produz.

Qual seria o cenário ideal para que produtores rurais e trabalhadores do campo convivessem pacificamente? Isso é possível?

Nós vivemos numa sociedade complexa e dividida entre ricos e pobres. Daí a enorme desigualdade social. No entanto, é possível e necessário uma convivência pacifica. Primeiro, os fazendeiros precisam se dar conta que no modelo neoliberal os seus inimigos são as empresas transnacionais e os bancos. E não os pobres do campo, que não tem onde sobreviver. Em segundo lugar, precisam se dar conta que nenhum deles fabricou terra e os bens da natureza. Os bens da natureza pertencem a toda sociedade e a todo o povo brasileiro. Portanto, devemos discutir uma forma de organizar a produção e o uso que beneficie a toda população e não apenas meia dúzia de especuladores do agronegócio. O uso da natureza deve ajudar a combater a pobreza e a desigualdade social. Em terceiro lugar, temos que construir um novo modelo agrícola baseado na pequena e média propriedade. Para isso, precisamos estabelecer limites no tamanho da propriedade rural. Não se pode admitir que uma empresa qualquer tenha 100 mil ou 1 milhão de hectares apenas porque tem dinheiro. Os verdadeiros agricultores, mesmo capitalistas, sabem que com uma fazenda de 1000 hectares pode ganhar muito dinheiro. Em quarto lugar, temos que organizar a produção, antes de tudo, para o mercado interno. O maior mercado de alimentos potencial não é a Europa nem Estados Unidos, são os pobres do Brasil. Aqui temos 60% da população que se alimenta mal. Ou seja, temos 120 milhões de brasileiros querendo consumir, mas não tem renda. O novo modelo agrícola passa necessariamente por um novo modelo de desenvolvimento nacional, que priorize a distribuição de renda, a industria nacional e a prioridade absoluta em gerar trabalho e emprego para o povo ter renda. Por último, temos que passar a adotar técnicas de produção agrícola que respeitem o ambiente, produzam alimentos saudáveis e não cheios de agrotóxicos, que afetam a saúde de toda a população, inclusiva a da cidade, que muitas vezes pensa que não tem nada a ver com isso. Depois, podem pagar a conta desse desconhecimento no hospital.