Mesmo evidente, empregador nega mortes de cortadores por cansaço, diz professor

Por Clara Meireles Fonte Agência Notícias do Planalto

Por Clara Meireles
Fonte Agência Notícias do Planalto

Durante a década de 60, um trabalhador rural cortava nas lavouras cerca de três toneladas de da cana-de-açúcar por dia, em média. A partir da década de 90, este mesmo trabalhador passou a cortar 12 ou mais toneladas por dia. Os dados são da pesquisa realizada no estado de São Paulo pelo professor Francisco Alves, do departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Em entrevista, Alves explica que os canavieiros estão se esforçando cada vez mais porque ganham por produção. No entanto, as condições de trabalho são as piores possíveis. Um exemplo deste cenário é a morte, por excesso de trabalho, de mais de 400 trabalhadores do setor em 2005, segundo os dados da Delegacia Regional do Trabalho (DRT). Ouça agora a entrevista.

Qual é o cenário enfrentado pelos cortadores de cana atualmente?

Francisco Alves: O problema é que hoje os trabalhadores estão cortando muito mais e ganhando muito menos. Você teve ao longo desse processo [entre as décadas de 60 e 90] uma redução de salário e um aumento do desgaste do trabalhador provocado pela natureza deste trabalho.

Segundo relatório da DRT, morreram cerca de 416 pessoas no ano passado no estado de São Paulo nos canaviais. Por que as mortes?

FA: São mortes decorrentes do excesso de trabalho. E mortes como essas não vão para a comunicação de acidente de trabalho. O Brasil é campeão de acidente de trabalho e assim mesmo o trabalho é mais subnotificado no Brasil que em outros lugares. Quem faz a notificação que houve acidente de trabalho é o empregador. Vamos supor que o trabalhador tenha sofrido um acidente na fazenda. Ele estava manuseando uma máquina que quebra e atinge seu dedo. Se o trabalhador perde o dedo é muito difícil subnotificar. Agora, se ele está trabalhando e passa mal em decorrência de um gás que ele inalou, por exemplo, isso [também] é um acidente de trabalho. No entanto, se esse “passar mal” é notificado como acidente de trabalho, a empresa é responsável pelo pagamento do trabalhador nos primeiros 15 dias até que ele se recupere. Mas se o empregador não notificar, esses dias que ele ficar em casa para se recuperar serão pagos pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. E não pelo empregador. O sistema foi montado para que haja subnotifciação mesmo. Para a empresa é mais interessante subnotificar porque ela não paga a recuperação do trabalhador. É por isso que quando se fala das mortes por excesso o setor patronal nega. Eles negam porque não querem assumir a responsabilidade. Há por trás de todas as empresas uma iniciativa de esconder o acidente, porque o acidente é decorrente de uma falha dela, mesmo quando ela imputa falha ao trabalhador. Quando ocorre dentro da empresa, ela é que é penalizada, e para fugirem da penalização a empresa vai negar a ocorrência e subnotificar.

E por que a fiscalização não é rígida nesses casos?

FA: Há sempre a idéia de que é um setor que emprega muito e que, portanto, o governo deveria olhar com certa condolência para as irregularidades. O tempo todo o setor aponta que, entre todos, é o que mais gera emprego. E isoladamente os números são fantásticos, mas quando você olha para a qualidade do emprego, aí a questão é diferente. O que eu estou denunciando é que a qualidade do emprego é ruim e que os números estão em queda e justamente em um período em que o setor sucroacooleiro está muito bem financeiramente. Está todo mundo em um processo de migração da soja para a cana, do gado para a cana.

Então podemos afirmar que, apesar da subnotificação, as mortes dos 416 cortadores de cana em São Paulo são decorrentes do excesso de trabalho?

FA: Havia e ainda há até este momento a história do setor patronal querer negar as mortes decorrentes de excesso de trabalho como mortes por acidente de trabalho. Então, querem justificar as mortes por outras coisas. E insistem em que não há um nexo causal entre a morte dos trabalhadores e o excesso de trabalho. Eu estou dizendo que esse nexo causal é explícito. Basta a gente se debruçar sobre o processo de produção e o processo de trabalho. Quanto o trabalhador anda por dia, a vestimenta que ele usa, quanto ele sua, quantos golpes ele dá, quantos movimentos ele faz se levantando e abaixando, etc. Se você analisa isso, fica claro o nexo causal. E mais: eu vou mostrar que isso é decorrente da forma de pagamento desses trabalhadores: eles são pagos por produção e esse tipo de pagamento é algo já combatido desde o nascimento do capitalismo.

Na cana, o trabalhador não sabe quanto ele vai ganhar no dia porque depende de uma conversão da tonelada de cana por metro. Ele só sabe esse valor ao final do dia quantos metros ele cortou, mas ele não sabe o valor do metro. É uma conversão feita exclusivamente pela usina o trabalhador não tem controle.

E em vários setores já se conseguiu que se interrompesse o pagamento por produção. Foi uma NR [norma regulamentadora jurídica] que impõe o fim do pagamento por produção em atividades repetitivas, pensando nos trabalhadores urbanos. Só que essa norma não foi estendida para a área rural. E como sempre, as normas e as leis trabalhistas chegam com certo atraso para a área rural no Brasil. No caso da legislação trabalhista ela chegou com mais de 30 anos de atraso. Só em 1963-64 é que ela chegou aos trabalhadores rurais.

E quais as razões desse atraso tão grande?

FA: Esses dados mostram que quando se fala em rural no Brasil você está diante de um poder político muito grande, que é o poder dos grandes proprietários de terra. E dentro disso, o poder do setor canavieiro é incontestável, sobretudo no estado de São Paulo. O poder político do agronegócio no estado de São Paulo é impressionante e no Brasil inteiro. Até nas esferas mais altas do poder, como o exemplo do nosso ex-ministro da Agricultura [Roberto Rodrigues], que era um grande produtor de cana. E é evidente que ele não estava lá apenas por sua competência técnica, e sim porque ele representava interesses políticos cristalizados no interior do estado.