Schafik Handal

Por Miguel Urbano Rodrigues*

Foi em San Salvador, há quase dez anos, que conheci Schafik Handal. Encontrava-me na capital salvadorenha como observador internacional durante as eleições legislativas.

A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) transformara-se em partido político e conquistou tantos lugares no Parlamento como a Arena, organização de direita que governava o país sob a tutela dos Estados Unidos.

Leonel Gonzalez, que era na época o coordenador da FMLN, marcou uma entrevista com Schafik, que na última hora foi cancelada por um problema de agenda. Ao despedir-se, ele fez uma sugestão: “Estude um pouco a história de El Salvador se quiser compreender este povo”.

Quando voltei a encontrá-lo em Havana, a camaradagem estabelecida evoluiu para um sentimento de amizade. Ele estava na capital cubana para tratamento médico. Já fizera uma operação de coração e os controles periódicos eram recomendados pelos médicos.

Historiador sem diploma, Schafik evocou episódios do tempo da guerra que me ajudaram a compreender melhor a epopéia da FMLN e, sempre apoiado em situações vividas, esboçou o quadro social de El Salvador após os acordos do cessar fogo, quando a Frente, com o fim da luta armada, passou a atuar no quadro institucional como partido político.

Guardo dessas conversas uma lembrança muito forte porque cada uma delas continha lições de estratégia. Eu tinha consciência das dificuldades que nascem para um movimento revolucionário quando os seus quadros saem do campo e nas cidades, são integrados, num cotidiano moldado pela burguesia.

Os renovadores

Não esqueço a impressão desfavorável que na primeira visita a San Salvador me causou o então comandante Facundo Guardado. Era então um dirigente tão destacado que foi candidato pela FMLN à presidência da República. O seu discurso conciliador, tímido, aplaudido em Washington não ajudou. Mas conseguiu chegar à liderança do Partido.

Quando em 2002 voltei ao país a fim de participar de uma Conferência internacional de solidariedade com as forças progressistas da Colômbia, estava no auge a campanha midiática que apresentava os “renovadores” da FMLN como a alternativa aos revolucionários marxistas da velha guarda, incompatíveis com a modernidade e com a democracia. Facundo, ainda na FMLN, mas já afastado da direção, fora transformado pela direita no bom revolucionário, o homem no qual a esquerda, se lúcida, poderia encontrar o seu guia e salvador.

Em Portugal os auto-intitulados “renovadores” do PCP, faziam muito barulho nos meios de comunicação. A linguagem era muito semelhante, apesar de diferenças abissais entre as sociedades salvadorenha e portuguesa.

Facundo é hoje um cadáver político e os portugueses que então proclamavam a sua impaciência militante para lutar pela “renovação” do marxismo comportam-se como anticomunistas. Na América como na Europa, a febre renovadora não está, aliás, mais na moda. Os seus porta vozes perderam toda a credibilidade.

Coerência

O Partido da FMLN, entretanto, cresceu na fidelidade aos princípios. A capital de El Salvador e as principais cidades são governadas por seus quadros. Schafik foi candidato à Presidência nas últimas eleições e somente não venceu porque os Estados Unidos intervieram na campanha, ameaçando suspender as remessas de divisas dos imigrantes salvadorenhos se o candidato da oligarquia local — o homem de Washington — não fosse eleito. Num país onde esse dinheiro é a principal fonte do Produto Interno Bruto, a manobra de chantagem funcionou.

O prestígio de Schafik permaneceu, porém, intacto. Era o deputado mais querido do povo de El Salvador e o mais combatido e caluniado pelas forças reacionárias.

Fidel Castro tinha por ele uma grande admiração e tornou-a pública muitas vezes em Havana. Schafik era, simultaneamente, um homem de ação e um ideólogo.

Não esqueço os seus ensaios políticos sobre grandes problemas do nosso tempo, nem as intervenções que ouvi em conferências internacionais. Ajudou-me a compreender melhor a América Latina.

Mais de uma vez, em conversa, lamentou não conhecer Portugal. Esteve quase a concretizar essa aspiração no ano passado, por ocasião do Encontro “Civilização ou Barbárie”, em Serpa, mas o projeto foi adiado. Escrevi-lhe então e tinha a esperança de o reencontrar.

Não virá. A morte abateu o combatente internacionalistra de maneira fulminante no regresso da Bolívia onde fora representar o FMLN na posse de Evo Morales.

De Schafik Handal se pode dizer que lutou e viveu como um revolucionário exemplar.

* Miguel Urbano é jornalista e escritor português

A trajetória de um líder

Filho de imigrantes palestinos, Schafik Jorge Handal nasceu na cidade de Usulutan, em El Salvador, em 14 de outubro de 1930. Aos 14 anos iniciou sua vida política quando se incorporou à greve nacional dos braços caídos, que derrotou o ditador Maximiliano Hernandez Martinez. Em 1940, se integrou ao Partido Comunista.

Por causa de suas atividades políticas, em 1952 é exilado e vive por 4 anos no Chile, onde estudou na escola de direito do país e participou ativamente do movimento estudantil universitário. De volta ao seu país, lutou ela democratização do regime político. Novamente parte para o exílio, desta vez na Guatemala.

Em 1963, regressou à El Salvador e permaneceu na luta pela democracia. Depois de décadas reivindicando mudanças democráticas através da via política (impedidas por fraudes eleitorais) o Partido Comunista decide se armar. Em 1980, o PC se une às forças revolucionárias, que culminam na fundação da Frente Farabundo Martí para a Liberação Nacional (FMLN). Schafik então secretário- geral do PC, teve papel importante para esta articulação.

Em 1991 coordena a comissão da FMLN que negociou e assinou um acordo de paz. No ano seguinte, integrou uma comissão nacional para garantir o cumprimento dos acordos de paz. Por duas vezes seguidas foi eleito coordenador-geral da FMLN.

Em 1997, 2000 e 2003 foi eleito deputado da Assembléia Legislativa de San Salvador. Em março de 2004, foi candidato à presidência do país. Schafik faleceu em 24 de janeiro. Sua última aparição pública foi durante a posse do presidente da Bolívia, Evo Morales.