Lema para o segundo mandato será ‘nenhum direito a menos’

Da Agência Carta Maior Por Verena Glass Passadas as eleições e confirmada a vitória de Lula, os movimentos sociais, que deixaram para os momentos finais do pleito a declaração efetiva de apoio ao presidente – uma reação estratégica à dicotomia Lula-Alckmin transformada em explícito enfrentamento de classe -, iniciam agora um processo de avaliação política do que será o segundo mandato e de quais as perspectivas reais de emplacarem suas agendas e demandas.

Da Agência Carta Maior
Por Verena Glass

Passadas as eleições e confirmada a vitória de Lula, os movimentos sociais, que deixaram para os momentos finais do pleito a declaração efetiva de apoio ao presidente – uma reação estratégica à dicotomia Lula-Alckmin transformada em explícito enfrentamento de classe -, iniciam agora um processo de avaliação política do que será o segundo mandato e de quais as perspectivas reais de emplacarem suas agendas e demandas.

Em entrevista à Carta Maior, o membro da coordenação nacional do MST, Gilmar Mauro, analisa as possibilidades concretas que se desenham a partir das pistas oferecidas até agora pelo presidente, e faz um diagnóstico da possíveis estratégias a serem adotadas pelos movimentos populares. Leia a seguir os principais trechos da conversa

Carta Maior – O apoio oferecido pelos movimentos sociais a Lula no segundo turno teve muito o caráter de uma posição contra a volta do PSDB ao poder. Foi também um reconhecimento a avanços no primeiro governo Lula?
Gilmar Mauro – O MST, assim como os demais movimentos sociais, teve uma consciência de classe muito grande ao apoiar Lula no segundo turno. Porque não havia opção. Ou era Lula ou a possibilidade de retomada do projeto neoliberal através do Alckmin. Por isso achamos que era necessário sim tomar partido naquele momento. Agora, sendo bem franco, no primeiro mandato nós é que estávamos mal de representante. A elite estava bem. Tanto Lula quanto Alckmin desempenharam o papel de gestor da lógica capitalista perfeitamente. No caso de Lula, buscou-se o superávit através de grandes investimentos no agronegócio, e isso significa exportação de renda líquida, porque não tem impacto no desenvolvimento econômico. O ajuste fiscal interno beneficiou o grande capital financeiro às custas de parcos investimentos sociais, porque grande parte do orçamento público vai para o pagamento dos juros. Do ponto de vista do que se fez concretamente para os setores mais pobres, os resultados são pequenos. Em contrapartida, Lula não criminalizou os movimentos sociais e pelo menos manteve o diálogo.

CM – E qual deve ser o caráter da relação com o próximo governo?
GM – Se eu pudesse resumir numa frase, eu diria que a nossa relação vai ser “pauta, luta e negociação”. Um grande slogan geral que deveria marcar a posição dos movimentos sociais em relação a Lula é “nenhum direito a menos”. Essa é demanda fundamental para o próximo governo, não permitir que direitos conquistados pela classe trabalhadora sejam rebaixados. Isso inclui reformas que signifiquem retrocesso.

CM – O MST disse que não apresentou demandas neste processo eleitoral em troca do apoio à reeleição. E agora?
GM – Deve haver algum tipo de reunião ainda antes do presidente tomar posse para o novo exercício. Não tem nada articulado ou confirmado, mas acredito que poderá acontecer algum tipo de encontro sim. Se não agora, obviamente no início do mandato, não só conosco como com os outros movimentos sociais. Quanto ao MST, é bem provável que façamos uma apresentação de pontos mais gerais. No tema da educação, dá para avançar, dá para criar escolas secundárias nos assentamentos e comunidades rurais. Do ponto de vista da reforma agrária, tem que haver a atualização dos índices de produtividade. Até porque, para o grande agronegócio, que se coloca entre os setores mais avançados da economia nacional, não faz sentido ter como referência índices que foram estipulados na década de 70. E as desapropriações de terra e assentamentos dos acampados. Mas é preciso criar um novo modelo de assentamento, que não só esse modelo do Incra, aplicado de norte a sul; quem sabe na forma autogestionária, localizados pertos dos grandes centros, como as comunas da terra em São Paulo. Temos que buscar um uma política assistência técnica, voltada para a agroecologia. Precisamos de uma política especial de crédito, porque na pequena agricultura há uma diferenciação enorme entre os que estão integrados à grande agroindústria e os que estão entrando agora, descapitalizados, completamente sem condições de enfrentar um mercado competitivo.

CM – Sobre a atualização dos índices de produtividade, mecanismo que diz se uma área é produtiva ou não e que poderia disponibilizar mais terra para a reforma agrária, uma nova ferramenta de avaliação está na mesa do presidente apenas aguardando a sua assinatura. Foi um compromisso assumido com o MST em maio de 2005. Acha que agora sai?
GM – Não acredito em Papai Noel. Ele também assumiu um compromisso de assentar um número X de famílias e não cumpriu. Portanto, o movimento social – e o MST em especial – têm que reforçar a luta social. Muito dos problemas da reforma agrária têm a ver com um entulho autoritário que não foi alterado no primeiro mandato. Desde os índices de produtividade até os grandes problemas com o Judiciário.

CM – Varias avaliações tem apontado para uma guinada à esquerda do discurso de Lula neste segundo turno. Concorda? Esse discurso deve se transformar em postura política no segundo governo?
GM – Pelo menos em termos de discurso e retórica, a partir da primeira semana do segundo turno acabou aquela idéia do “lulinha paz e amor”. Obviamente ele se deu conta de que há um preconceito muito grande por parte de setores da classe dominante, que era preciso, pelo menos na retórica, se aproximar de bandeiras históricas não só dos movimentos sociais, mas do próprio PT: as privatizações, o caso da Bolívia, que acho que foi um tema muito bem tratado por Lula. A própria situação de chegar quase empatado no primeiro turno obrigou Lula a efetivamente caminhar um pouco mais à esquerda. Acho que, num segundo momento, quando a vitória foi se consolidando, o “paz e amor” foi voltando de novo, e a perspectiva de alianças com setores da direita para garantir a governabilidade no segundo mandato se ampliou.

CM – E a perspectiva de alianças com setores populares?
GM – Acho que o resultado da urna é evidente. Se Lula quiser aprender com isso, acho que vai ser muito importante. Porque mesmo tendo feito o que fez no primeiro mandato pelo grande capital, viu-se que um setor da classe dominante tem um preconceito de classe feroz, e que no final das contas o apoio mesmo, o mais significativo, veio dos pobres deste país. Se isso significar alguma coisa para Lula, vai ser importante e vai contar com nosso apoio.

CM – Para além das pautas pragmáticas, como enxerga a possibilidade, para os movimentos sociais, de emplacarem suas pautas políticas?
GM – Sendo bem sincero, Lula não vai mudar a política econômica e não vai adiantar adotarmos a questão como pauta de reivindicação. Isso terá que ser tratado como luta política, luta de classe, a ser feita com outros setores da classe trabalhadora. O nosso enfrentamento ao neoliberalismo será um enfrentamento de classe. Não temos força política pra mudar o modelo adotado pelo governo, mas o enfrentamento é uma construção que depende de um conjunto de articulações. Por isso temos que garantir o “nenhum direito a menos”.

CM – O MST irá se posicionar sobre a composição dos ministérios “agrários”, Agricultura (MAPA) e Desenvolvimento Agrário (MDA)?
GM – Quem compõe o governo é o presidente. Nós nem no primeiro mandato interferimos na escolha de ministro ou de cargos relacionados ao Incra, essa parte não nos toca.

CM – Mas estão correndo rumores na imprensa de que Lula poderia dar o MAPA a Delfim Neto. Vocês tem uma opinião sobre isso.
GM – O Delfim, desde os anos 60 quando ainda era professor da USP, defendeu a tese, que prevaleceu no campo brasileiro, de uma modernização sem reforma na estrutura fundiária, garantindo que a agricultura brasileira cumprisse quatro funções: produzir para exportação, produzir matéria prima para o mercado interno, liberar mão de obra do campo para a cidade, e produzir alimentos para o povo brasileiro. E uma quinta idéia, a de que o campo precisava produzir renda para o desenvolvimento industrial urbano. Esta tese do Delfim foi aplicada efetivamente no país, e gerou uma enorme desigualdade social, enorme concentração de propriedade de terra, pobreza e exclusão social. É um modelo completamente esdrúxulo que não tem nenhuma preocupação com o ser social. Com todo este passado, um Delfim na agricultura no mínimo vai ter bastante resistência, não só do MST como de outros setores.

CM – Lula tem adotado um discurso desenvolvimentista para o qual tem buscado apoio de todos os setores e forças políticas. Como avalia este movimento?
GM – Eu acho pouco provável um projeto nacional desenvolvimentista, porque nem setores da burguesia há no nosso país. A nossa burguesia fez lutas internacionais, mas não no sentido de garantir a autonomia brasileira, para um projeto nacional. Fez lutas como forma de viabilizar uma melhor associação com algum tipo de capital internacional. Existe uma interpretação equivocada, até de alguns teóricos de esquerda, de achar que existe um capital bom e produtivo, e um ruim, aquele que derruba bolsas, por exemplo. O capital financeiro é a somatória do capital bancário e do industrial.

CM – Nos últimos dias, as tensões internas no PT tem aflorado publicamente através de disputas conceituais de parte de sua liderança. Qual a sua avaliação sobre as relações PT-governo-projeto nacional?
GM – Acho que a tendência é a criação de um novo grupo político no comando do novo governo. Minha impressão – não tenho conversado com ninguém dentro do governo -, é que, pela configuração atual esse novo grupo – Marco Aurélio Garcia, Tarso Genro, Dilma Roussef e Ciro Gomes, que é uma figura que sai fortalecido desse processo – tende a ser hegemônico dentro do novo governo. Não sei se incluiria aí alguma figura do PMDB. Mas eu diria que este novo núcleo duro tem uma proposta mais clara. Por exemplo, o Tarso é um social-democrata assumido, e vai defender esta posição dentro do governo. Acho que uma proposta social-democrata dentro deste governo é um avanço, tendo em vista o governo anterior. Nesta lógica – não é que seja social-democrata – sou partidário de tudo que significar avanço na perspectiva social.